sábado, 3 de janeiro de 2009

«O Medo» de Al Berto

Se não tivesse morrido precocemente, em 1997, o poeta Al Berto completaria, no próximo dia 11 de Janeiro, 61 anos. Deixou-nos uma obra poética vasta, que a Assírio & Alvim tem editada com o título O Medo. Na capa, o retrato do poeta «encenado por Paulo Nozolino em homenagem a Caravaggio». No interior, um trabalho poético feito de frémito, alucinação, medo, delírio, transumância e, dito pelo próprio, «sempre com carácter de urgência». Talvez a urgência premonitória da luta que perderia para a morte.

Rainer Maria Rilke disse: «Fiz alguma coisa contra o medo. Fiquei toda a noite sentado a escrever.». Al Berto, Ilusionista da palavra, com a qual corporiza a realidade, o quotidiano e as sensações «mais marginais», procura a noite com o «Corpo coberto de dúvidas e medo», registado assim: «então a vida abater-se-á sobre a folha de papel / onde verso a verso/ me ilumino e me desgasto.».

O título O Medo foi utilizado pelo autor na primeira recolha dos seus poemas (1974/86), pela Contexto, assim como na nova edição aumentada, em 1991, mantendo-se até hoje. Foi com este título que, em 1998, foi distinguido com o Pen Club de Poesia. O volume que aqui referimos está dividido em 15 livros, e reúne toda a obra do poeta, desde «À Procura do vento num jardim d`Agosto» (1974/75) até «Poeira de Lume» (1997). No final, Notas, Bibliografia, Índices de títulos, primeiros versos e geral. A organização é de Luís Manuel Gaspar e Manuel de Freitas.

Os sulcos da memória – a infância diluída nas páginas


Al Berto, nome literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares, viveu a sua infância em Sines, exilando-se, depois, em Bruxelas, em 1967. Aquela terra de infância é imortalizada nas suas palavras: «quando te escavaram o ventre encontraram traços adormecidos doutros povos /…/se te esfaquearem de novo, nada mais encontrarão que pequeníssimos cadáveres de saudade /…/ em ti pernoita a seiva cansada das palavras, o suco das ervas e o açúcar transparente das camarinhas / em ti cresce o precioso silêncio, ostras doentes e as pérolas dos mares sem rumo / em ti se perdem os ventos, a solidão do mar e este demorado lamento.».

Casa longínqua de todos os abandonos, é marcante o canto da adolescência perdida, uma traição do tempo que a desdenha, e que lhe deixa na boca «um gosto de salmoura e destruição» e mágoa no corpo: «procuro no fundo das algibeiras os bonecos da bola, e as cobras nos valados do Rio Moura / o sumo das amoras e o cheiro fresco do sabão… a memória envolve-se nos lençóis que secam estendidos ao sol»; «a infância permanece triste onde a abandonei / quase não vive / no entanto ouço-a respirar dentro de mim / agora tudo é diferente / recomeço a viver a partir do vazio / da treva dos dias em silêncio / por entre a pele e um feixe de magníficas veias / sinto o pássaro da velhice arrastando as asas».

A escrita, morada do silêncio, do corpo e da fragmentação

Ser nocturno, com o «corpo aberto às sementes e ao arado», a noite é para o poeta o quarto íntimo da alma, superfície onde se corporiza o desamparo, a fragilidade humana, revolta, infelicidade, pessimismo, o lugar da escrita: «e ao anoitecer adquires nome de ilha ou de vulcão / deixas viver sobre a pele uma criança de lume / e na fria lava da noite ensinas ao corpo / a paciência o amor o abandono das palavras / o silêncio / e a difícil arte da melancolia». Sobremaneira autobiográfica, a sua produção escrita é diversificada, característica da fragmentação do sujeito. Atinge, também, com o olhar quadros quotidianos que nos surpreendem.

Transcreva-se uma das composições inesperadas: «depois do jantar / as mulheres falam muito /os homens estão quase sempre calados /atentos /perseguem-nas com olhares ternos /os dedos movendo-se hesitantes em redor dos copos / elas falam sem cessar riem / perdem o fôlego comem bolos / voltam a rir cada vez mais forte / bebem anis sabendo que os homens as observam / silenciosos amam-nas furtivamente no escuro das casas /importando-se pouco que elas se embriaguem / devagar / as mulheres falam muito / têm o riso arguto nos lábios acesos pelo anis / sempre que os homens as desejam / noite adiante… calados».

Na «imprevista meteorologia das paixões», fala-se do cio, da boca, da necessidade de fecundar o leitor, como uma urgência de existir, como uma negação da morte: «penso na morte / mas sei que continuarei vivo no epicentro das flores / no abdómen ensanguentado doutros-corpos-meus / na concha húmida da tua boca»; «penso voltar / e sei que mentira desperta já em mim / recosto-me /… / comboios barcos que vão para onde? / esperem por mim / eu vou».

texto editado em Orgia Literária a 02.01.09

 
© Teresa Sá Couto

3 comentários:

Luís Sampaio disse...

Bem Haja, Teresa, que nos vai sempre lembrando daqueles que serão os únicos a enriquecer este país: os escritores.
Obrigado

Isabel Victor disse...

Teresa, amo; amo mesmo AlBerto ...


absolutamente incendiário. Magnífico



aBraço


iv



(criei um elo no "Caderno de campo". Imperdível este blog. Quero estar por perto ... segui-lo)

Unknown disse...

o meu poeta de eleição. procuro pessoas que tenham contactado com ele, pois preciso de relatos para um trabalho que vou começar a fazer. obrigada!