Em plenas comemorações dos 400 anos do nascimento do Padre António Vieira, surge-nos um livro soberbo que inquire, minudente, 47 sermões vieirinhos, no encalço do universo feminino dos séculos XVII/XVIII: «O Padre António Vieira e as mulheres» de José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas, que acaba de arrecadar o Prémio SHIP – Monografia 2008, instituído pela Sociedade Histórica da Independência de Portugal, com o valor pecuniário de €1.250,00 e um troféu representativo da SHIP. Confiro que é um justíssimo prémio para um documento essencial da História das Mentalidades, acrescido de um incomensurável prazer de leitura.
Bem organizado, permitindo uma consulta eficaz, o livro explana o estudo sobre o mito barroco do universo feminino – mas também apresenta uma esplendorosa e vasta incursão pela psicologia do homem de Seiscentos – em 5 grandes capítulos que, por sua vez, se organizam em subcapítulos e estes em alíneas. Ao todo, são 233 páginas de investigação rigorosa e profusamente documentada, marcada pela paixão com que foi feita pelos autores, paixão que contamina o leitor a ponto de a eleger como uma das mais singulares obras, porquanto alia o saber ao infinito gáudio provocado a quem o recebe.
Não quis o Autor da natureza que a mulher se contasse entre os bens móveis. O edifício não se move do lugar onde o puseram; e assim deve ser a mulher; tão amiga de estar em casa, como se a mulher e a casa foram a mesma coisa. Assim ordenava sobre as mulheres, com postura misógina, o incansável Padre António Vieira, na sua rejubilante, teatral e moralista parenética, deixando-nos para a eternidade registos sobre a condição da mulher no seiscentismo, que nos instigam à reflexão sobre a psicologia machista, revelada em palavras, motejos e actos, que persiste neste século XXI.
Maria, a redentora e Eva, a pecadora
Dissecando o sermonário vieirense, a presente monografia mostra-nos que no mundo androcêntrico de Vieira, «a mulher é construída como um ser capaz do melhor e do pior». Por um lado, Maria, a redentora, por quem o jesuíta tem extrema devoção, a utopia, o exemplo espiritual para todas as mulheres; por outro, Eva, «a mãe de todos os viventes», a tentadora, a pecadora, a que desobedeceu a Deus e arrastou consigo o homem, a responsável por ter aberto a «porta do mal na história da humanidade». É nesta dicotomia mariana e eviana, o positivo e o negativo, que Vieira, munindo-se dum «rico e variado elenco de mulheres», aborda o universo feminino, empenhado na persuasão dos ouvintes/leitores, para salgar a terra, eliminando-lhes os vícios.
Na caracterização do universo feminino, anotando-se a segregação da mulher, Vieira aponta-lhes um rol interminável de vícios que, por serem observados nos costumes, mostram-nos a insurreição das mulheres que ousavam certas liberdades numa sociedade que as agrilhoava. Assim surge a acusação ao carácter movediço das mulheres, que Vieira aponta como a sua natureza itinerante que dá azo à tentação, «o gosto de sair», de «andar mais fora do lar do que dentro, encontrando-se aí a causa da sua perdição e da perdição dos homens, pois acerca da mulher cabe dizer que é “tão vagabunda nos olhos como nos passos”».
Defendendo o «recolhimento» ou a «domesticação» da mulher, Vieira apela a que elas sejam submetidas a intensa vigilância, mesmo nas suas idas à igreja por utilizarem o terço «como “terceiro” dos sacrilégios»; intenta-se contra a argúcia feminina que cria «pretextos para sair e enganar os maridos», pois as mulheres são «mestras no pecado da hipocrisia e na procura de artimanhas que sirvam para satisfazer os seus prazeres pessoais», dizendo-o Vieira desta maneira: «Quantas vezes a mulher faz um voto para cumprir na igreja e acaba por encontrar um devoto».
Dissecando o sermonário vieirense, a presente monografia mostra-nos que no mundo androcêntrico de Vieira, «a mulher é construída como um ser capaz do melhor e do pior». Por um lado, Maria, a redentora, por quem o jesuíta tem extrema devoção, a utopia, o exemplo espiritual para todas as mulheres; por outro, Eva, «a mãe de todos os viventes», a tentadora, a pecadora, a que desobedeceu a Deus e arrastou consigo o homem, a responsável por ter aberto a «porta do mal na história da humanidade». É nesta dicotomia mariana e eviana, o positivo e o negativo, que Vieira, munindo-se dum «rico e variado elenco de mulheres», aborda o universo feminino, empenhado na persuasão dos ouvintes/leitores, para salgar a terra, eliminando-lhes os vícios.
Na caracterização do universo feminino, anotando-se a segregação da mulher, Vieira aponta-lhes um rol interminável de vícios que, por serem observados nos costumes, mostram-nos a insurreição das mulheres que ousavam certas liberdades numa sociedade que as agrilhoava. Assim surge a acusação ao carácter movediço das mulheres, que Vieira aponta como a sua natureza itinerante que dá azo à tentação, «o gosto de sair», de «andar mais fora do lar do que dentro, encontrando-se aí a causa da sua perdição e da perdição dos homens, pois acerca da mulher cabe dizer que é “tão vagabunda nos olhos como nos passos”».
Defendendo o «recolhimento» ou a «domesticação» da mulher, Vieira apela a que elas sejam submetidas a intensa vigilância, mesmo nas suas idas à igreja por utilizarem o terço «como “terceiro” dos sacrilégios»; intenta-se contra a argúcia feminina que cria «pretextos para sair e enganar os maridos», pois as mulheres são «mestras no pecado da hipocrisia e na procura de artimanhas que sirvam para satisfazer os seus prazeres pessoais», dizendo-o Vieira desta maneira: «Quantas vezes a mulher faz um voto para cumprir na igreja e acaba por encontrar um devoto».
No retrato social da época aparecem mimos como este, tirados de Vieira:
«os juízes não admitem as mulheres quando acusam o seu marido de adultério, dizem os juízes que não as admitem porque (…) “vendem a suspeita por coisa certa”. Mas eu penso que não se admitem porque, sendo inúmeros os maridos adúlteros, todos os juízes estariam ocupados em dar sentença contra eles e quando são muitos os que cometem o delito costumam dissimular o castigo as leis humanas para não assolar os povos.»
Com a mesma agudeza retórica, o jesuíta mostra-nos possuir uma espantosa sabedoria da psicologia feminina ao apontar-lhes muitas comportamentos indecorosos, fruto de um carácter perverso, encontrados no viver quotidiano, como o «apetite desmedido», a ambição, a curiosidade, a vaidade, o egoísmo, entre outros, todos apetites para a leitura desta monografia.
«os juízes não admitem as mulheres quando acusam o seu marido de adultério, dizem os juízes que não as admitem porque (…) “vendem a suspeita por coisa certa”. Mas eu penso que não se admitem porque, sendo inúmeros os maridos adúlteros, todos os juízes estariam ocupados em dar sentença contra eles e quando são muitos os que cometem o delito costumam dissimular o castigo as leis humanas para não assolar os povos.»
Com a mesma agudeza retórica, o jesuíta mostra-nos possuir uma espantosa sabedoria da psicologia feminina ao apontar-lhes muitas comportamentos indecorosos, fruto de um carácter perverso, encontrados no viver quotidiano, como o «apetite desmedido», a ambição, a curiosidade, a vaidade, o egoísmo, entre outros, todos apetites para a leitura desta monografia.
Nota sobre os autores:
José Eduardo Franco é historiador, doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris em "História e Civilização". Tem uma vasta obra de investigação, e é considerado um dos maiores especialistas portugueses sobre a História dos Jesuítas. Actualmente é Presidente da Direcção do Instituto Europeu de Ciências da Cultura P. Manuel Antunes.
Maria Isabel Morán Cabanas é Professora Titular da Faculdade de Filologia da Universidade de Santiago de Compostela, onde lecciona na licenciatura e em cursos de doutoramento e tem inúmeros trabalhos publicados na área da história e crítica da literatura portuguesa e fez a sua tese de doutoramento sobre o "Cancioneiro Geral" de Garcia de Resende. É membro do Graall (Grupo de Análise de Aspectos Linguístico-literários na Lusofonia), da Universidade de Santiago de Compostela.
O Padre António Vieira e as Mulheres – O mito barroco do universo feminino, José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas; Editorial Campo das Letras, Porto, 2008
© Teresa Sá Couto
José Eduardo Franco é historiador, doutorado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris em "História e Civilização". Tem uma vasta obra de investigação, e é considerado um dos maiores especialistas portugueses sobre a História dos Jesuítas. Actualmente é Presidente da Direcção do Instituto Europeu de Ciências da Cultura P. Manuel Antunes.
Maria Isabel Morán Cabanas é Professora Titular da Faculdade de Filologia da Universidade de Santiago de Compostela, onde lecciona na licenciatura e em cursos de doutoramento e tem inúmeros trabalhos publicados na área da história e crítica da literatura portuguesa e fez a sua tese de doutoramento sobre o "Cancioneiro Geral" de Garcia de Resende. É membro do Graall (Grupo de Análise de Aspectos Linguístico-literários na Lusofonia), da Universidade de Santiago de Compostela.
O Padre António Vieira e as Mulheres – O mito barroco do universo feminino, José Eduardo Franco e Maria Isabel Morán Cabanas; Editorial Campo das Letras, Porto, 2008
© Teresa Sá Couto