quinta-feira, 25 de setembro de 2008

As Uvas e o Vento de Pablo Neruda

Quando passam 35 anos da morte de Pablo Neruda, convoco um dos seus títulos imperdíveis, editado no ano passado em Portugal: As Uvas e o Vento, um compêndio poético de resistência, um documento político e ideológico contra a opressão dos povos, a apologia da luta como razão primordial da existência humana e, por isso, um canto ao amor.

Traduzido pelo nosso imparável Albano Martins, os textos revelam o poeta andarilho que, no vento das palavras, celebra a vindima dos homens. Escritos entre 1950-1953, durante o exílio, em viagem pela Europa e Ásia onde procurou «o melhor dos homens», os poemas são um hino à grande casa humana, à liberdade, sem, todavia, esquecer os que morreram por ela: «Ergamos a taça / pela musa, /pelos que não esquecemos /e pelos que reconstroem, /pelos que caíram /e continuam a viver /em toda a parte, /porque vasto é o mundo /e sempre em toda a parte /caiu o sangue, /o mesmo: /o nosso sangue.». Numa era em que o sentido da globalização cresce em igual proporção ao do individualismo, estes poemas de Neruda mostram que a luta pela fraternidade é a eterna luta do ser humano.

Prémio Nobel da Literatura, em 1971, o escritor chileno Pablo Neruda (1904-1973) – pseudónimo de Ricardo Eliézer Neftali Reyes – escreveu As Uvas e o Vento como crónicas de um viajante que, sequioso, procura o «melhor dos homens», para o cantar. O seu canto é, porém, «uma voz multiplicada que vai cantando», porquanto é constituída pela voz de todos os homens com quem aprende: «pois de que me serviam /a terra, para que se fizeram /o mar e os caminhos, /senão para ir olhando e aprendendo /um pouco de todos os seres.»

Sempre com a alma ancorada na pátria, o poeta fundador do Partido Comunista do Chile escreve a grande e emocionada caminhada pela China, Vietname, Checoslováquia, Polónia, Albânia, Espanha, Rússia, Grécia, Itália, Inglaterra, Hungria, França, e até Portugal. De todos os locais regista paisagens, ambientes, cheiros, cores, sons, faz quadros humanos plenos de densidade engajados numa poesia épica pela intenção com que projecta e medita a condição humana. Se o canto celebra a vitória dos oprimidos, recorda que há que erguer-se a taça também para guardar o sangue dos que na luta se esvaíram:

«A luta não é a água /é o sangue. /Vem de longe. / Há mortos: /os nossos irmãos caídos. /O caminho está cheio de mortos /que não esqueceremos. /E a aldeia /não é simples, /o ar não é simples, /traz palavras, /traz canções, /traz rostos, /traz dias passados, /traz cárceres, / traz muros /salpicados de sangue /e agora /doce é a aldeia, /doce é a vitória.».

Assim, fazer vinho é uma arte que requer boas uvas, e transformar as uvas em vinho não é uma arte divina, mas sim humana. Antes do bom vinho há todo o tempo das leveduras, da respiração, de dádivas, de sacrifícios, de amor. Desfazendo estas com outras metáforas, escreve Neruda:

«Como é fácil quando se alcançou /a felicidade, como tudo/ é simples. /Quando tu e eu, meu amor, nos beijamos, /como é simples ser feliz. /Tu esqueces, porém, /quanto tempo estiveste /sem me encontrar /e quantas vezes /te desviaste /até cair de cansaço. /E certamente /tu não sabias /que eu andava à tua procura /e que o meu coração se ia desviando /para a amargura /ou para o vazio. /Não sabíamos /que se seguíssemos em frente, em frente, /a direito, a direito, /sempre, sempre, /tu me encontrarias /e eu te encontraria. /Vês, assim acontece /aos povos: /não sabem, /não compreendem, /podem enganar-se, /mas seguem sempre /e encontram-se, /encontram-se a si mesmos, /como tu me encontraste, /e então /tudo parece simples, /mas não foi simples /andar às cegas.».

Portugal, «a cítara esquecida»

Testemunha que visita todas as moradas, o errante Neruda olha o Portugal oprimido atrás das janelas dos lares silenciosos, o país que se espraia na ignomínia no Tarrafal, a terra do «tempestuoso cheiro de vinhedos», da «cítara esquecida» que Camões deixou, e lança o apelo da luz:

«Mostra-nos o teu tesouro /os teus homens, as tuas mulheres. /Não escondas mais o rosto /de ousada embarcação /posta nas guardas avançadas do Oceano. /Portugal, navegante, /descobridor de ilhas, /inventor de pimentas, /descobre o homem novo, /as ilhas assombradas, /descobre o arquipélago no tempo. /…/Rompe, /as teias de aranha /que cobrem o teu fragrante arvoredo, /e, e mostra-nos então, /a nós, os filhos de teus filhos, /aqueles para os quais /descobriste a areia /até então obscura /da geografia deslumbrante, /mostra-nos que tu podes /atravessar outra vez /o mar escuro /e descobrir o homem que nasceu /mas maiores ilhas da terra. /Navega, Portugal, chegou /a hora, levanta /a tua estatura de proa /e entre as ilhas e os homens volta /a ser caminho. /Reúne hoje /a tua luz, volta a ser lâmpada: /aprenderás de novo a ser estrela.».

As Uvas e o Vento, Pablo Neruda, Campo das Letras, Porto, Abril 2007

Nota: As Uvas e o Vento é o sexto título de Pablo Neruda traduzido pelo poeta Albano Martins para a Campo das Letras. A editora do Porto lançou, ainda no ano passado, Terceira Residência, pouco depois deste As Uvas e o Vento, e tem a chancela de Os Versos do Capitão (1996), Canto Geral (1998), Cem Sonetos de Amor (2004) e Cadernos de Temuco (2004).

© Teresa Sá Couto

sábado, 20 de setembro de 2008

A blasfémia de Leninegrado

Corria o ano de 1941 e o füher decidia que Leninegrado seria varrida da face da Terra. Com os finlandeses a norte e os alemães a oeste e sul, a cidade morria de fome e frio, lenta e lancinante. De 3,5 milhões de habitantes, sobreviveram 600 mil.

Em «O Cerco», Helen Dunmore pega na frieza da História, enche-a com o sangue, a miséria, o medo, o ódio, o amor e a solidariedade de quem a viveu, e solta a reflexão sobre a condição humana. Cavada no interior da segunda Guerra Mundial, a narrativa erige o tormento humano na luta contra a própria desintegração e o mistério da sobrevivência, durante os três terríficos anos do Cerco a Leninegrado.É também uma história sobre a abnegação e coragem das mulheres que, guardiãs da vida, lutam contra a blasfémia e o aviltamento humanos. Que as palavras sejam, pois, um monumento à memória, a juntarem-se ao Memorial erguido na cidade mártir e à «Sinfonia de Leninegrado» do compositor Chostakovitch.

Anna tem 23 anos e é a heroína desta narrativa, representando a força feminina em tempos de todos os limites. É ela que leva o leitor – primeiro na azáfama com que pedala na sua bicicleta, entre o trabalho num infantário da cidade, o cultivo das leiras, o apoio ao pai e ao irmão Kolya, de cinco anos, depois nas filas de racionamento, faminta e exangue, para sustentar a família – a testemunhar inquietantemente a desdita de um povo subjugado às mãos no nazismo. A palavra é a um mesmo tempo crua e emotiva deixando-nos envergonhados pela barbárie de que o ser humano é capaz. Em quadros literariamente fortíssimos, escorre o estertor psicológico das populações em fuga:

- a debandada, «como as formigas quando se esgravata com um pau no formigueiro»: «Por que motivo alguém revolve o formigueiro com o pau, não sabemos, mas as nossas vidas e as nossas casas ficam viradas do avesso na mesma. É esse o significado da guerra: caos e enganos, e fazer coisas sem compreender porque as fazemos»;

- a devastação: «em toda a parte sente-se o cheiro a queimado; um fumo espesso, acre, sebento, desliza perto do chão, engolindo as pessoas. Casas de madeira estão a arder, ou porque foram bombardeadas, ou porque os donos lhes deitaram fogo quando fugiram. De alguma forma, lá no fundo, eles lembraram-se de que é isso que tem de fazer. Bate em retirada se tiver de ser, mas não deixes mais do que cinzas ao inimigo. Não lhes deixes comida, nem tecto.»;

- a destruição, também, dos campos, com Anna,munida da mesma decisão com que plantou a arrancar todas as plantas: «torce-as até soltar as raízes e atira-as para o caminho. Cebolas boas, cheias de vitaminas», «tira-os da terra. Tudo, todos aqueles alimentos, arrancados da terra revolvida. Seja qual for o invasor, não encontrará nada. A terra não o alimentará»; «quem alguma vez haveria de pensar que as pessoas teriam medo da lua? Agora chamam-lhe a lua dos bombardeamentos, porque é para isso que serve. Mas sempre foi uma lua de colheitas. Numa noite como esta podes trabalhar no campo como se fosse de dia».

Irrompem, ainda, quadros de mulheres onde se pode sentir-lhes «o suor do trabalho e o cheiro acre e forte do medo», juntas a dezenas de milhar a cavar as trincheiras do Luga, «cavam para escapar à morte». Depois, o colapso das trincheiras e o horror em Leninegrado, com ruas e parques apinhados de mortos pela fome e frio, sem que ninguém os recolha. Nesta luta desigual, a família de Anna ferve tudo o que possa ter nutrientes, como pedaços de couro ou cartão, para fazer sopa.

A explicação do Inferno
Com Anna, a única ainda com forças para ir à padaria buscar a ração da qual depende a família, a narrativa mostra o heroísmo da sobrevivência, o milagre de se estar vivo mais um dia. Diz-nos o texto:

«Anna prepara-se para a caminhada diária até à padaria com o mesmo cuidado que uma maratonista. Come o quarto de fatia de pão que guardou da ração e enfia no bolso outro quarto para comer no caso de se sentir tonta. Bebe um copo de água quente com uma pitada de sal. (…) Nem o pão nem as senhas de racionamento são visíveis quando ela regressa a casa pelas ruas geladas. A luz já está a desaparecer. A geada endurece e a ponta da bengala escorrega no gelo. Anna endireita-se, respirando com dificuldade. O suor escorre-lhe pelo corpo, e a ração de pão anda aos encontrões por baixo do sobretudo. Não pode deixar-se cair. Eles estão à espera dela contando os minutos que faltam para o seu regresso.» ;

«Hoje de manhã, no caminho para a padaria, deu consigo encostada a um muro, apoiando-se com a testa. O frio da pedra começava já a entrar-lhe no cérebro, acomodando-se e dizendo descansa, descansa até o frio se tornar quente e te adormecer. O silêncio da cidade envolveu-a, camada após camada. A cidade põe-lhe a mão nos lábios. Escuta. Não vês que estamos todos a dormir? Para quê esfalfares-te nesta luta, se tu também podes repousar? Vem cá. Deita-te.
Mas ela esmagou uma mão-cheia de neve, esfregando-a nos pulsos até deixar de ouvir a voz. Enganou-se a si mesma dizendo que andaria apenas dez passos e depois descansaria. Contou os passos como costumava dizer a Kolya. Um, dois, três, quatro…Quando chegou aos dez, não parou; contou mais dez passos, depois outros tantos, até chegar à padaria
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«Casa. É assim que ambos a chamam agora. A casa não é o apartamento, ou a sala aquecida pelo burzhuika. É o colchão onde de noite se enroscam, com Kolya respirando ao lado deles. Não se beijam. Ela não suspira nem pressiona o seu corpo contra o dele. Já não se desejam. (..) Ficam encostados um ao outro, encolhidos, quietos. A formação de Andrei, (médico) diz-lhe que isto acontece porque os seus corpos esfomeados se fecharam para sobreviver. Os corpos sabem mais do que eles. Se ela não estivesse ali, será que ele conseguiria dormir?».

O Cerco, Helen Dunmore, Editorial Campo das Letras, Porto, 2007

© Teresa Sá Couto

domingo, 14 de setembro de 2008

«Poemas de Deus e do Diabo» nos 107 anos do nascimento de José Régio

José Régio, pseudónimo de José Maria dos Reis Pereira, nasceu a 17 de Setembro de 1901, em Vila do Conde. Sobre o seu nascimento, diria: «Quando eu nasci, / ficou tudo como estava, / Nem homens cortaram veias, / nem o Sol escureceu, / nem houve Estrelas a mais... /Somente, / esquecida das dores, / a minha Mãe sorriu e agradeceu.».
Em 1925, ano em que Kafka publica «O Processo», e um ano antes de ser instaurada a censura em Portugal, Régio tinha concluído o seu primeiro livro: «Poemas de Deus e do Diabo». Começava o seu processo de luta singular com Deus, fazendo da palavra a arma estrídula, com que negou o silêncio da resignação. Enganou-se, porém, quando falou do seu nascimento. Não se enganou a sua mãe: com ele nasceu uma estrela imperecível que continua a iluminar a Literatura – Cultura e alma portuguesas.
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Dialogar com Deus através de Lúcifer
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David Mourão-Ferreira diz que «Régio recorre a Deus quando “incompreendido e escorraçado”. Recorre, portanto, por orgulho – e, sendo como é o orgulho uma característica eminentemente diabólica, Régio dialoga com Deus através de Lúcifer. Esta será, talvez, uma das maiores originalidades da sua poesia, a mais inquietante e a mais fecunda.».
Eduardo Lourenço defende que o verdadeiro interlocutor de Régio é o seu duplo, um sósia real: o diálogo com Deus e o Diabo é «um monólogo transparente entre Régio e Régio».
Por outro lado, o próprio José Régio, em «O Jogo da Cabra Cega», dá-nos razões do seu processo e da sua clarividência: «Vi que, ao longo dos meandros da minha corrupção e fraqueza de homem, transportava intacta a minha até então mal conhecida, mas nunca ausente, necessidade de qualquer coisa que me ultrapassasse… Assim, através do conhecimento de mim, se me revelava a humanidade. E assim se me revelou Deus!».
Com efeito, a poesia de Régio, um dos fundadores da revista Presença (1927) e o seu principal animador, desenrola-se criticamente na relação do Eu com a existência e com a existência de Deus no Eu. A relação com os outros, os que lhe volvem a cara, «Uma só cara uníssona de todas – / Com sua simples expressão ignara» é de desencanto e lastimosa constatação. A tristeza que daí advém não é, no entanto, um sentimento mole, antes vibrante porque enraivecido.
Sobre a Amizade, o sujeito assume-se desenganado. Isso deixa-o triste e despeitado, com os outros e consigo. Defende que os amigos não se perdem, todavia perdem-se. Logo, se assim é, há que aceitar que não havia amizade. Os que acreditam nela, são «patetas felizes» que «Ainda podem ter enganos, / E tristes desenganos». Conclui-se que o ser humano é débil gente que, por medo da solidão se enreda no embuste: «Nós julgamos perder / Mal se nos abre a mão; Mal a fechamos que julgamos ter. / Somos bem débil gente! / Dificilmente / Podemos encarar a nossa solidão; ou ver que só perdemos / O que jamais tivemos.».
No poema explana-se o cansaço e a frustração existencial, porém com a energia do inconformismo. Ser com nenhuns abrigos, apenas com a imensidão que Deus lhe abriu no seio, o poeta exangue, lança a tudo e a todos um longo e veemente Adeus: «Pois bem, adeus! – respondo, enfim cansado – / Tu, que até para negar-me, / Me pedes emprestado / O teu sinal de alarme, /Tu, cuja boca bruta / Nem acusar-me saberia, / Mas que eu fui descobrir, e abrir, como uma gruta / Que, tapada por terra, oculta havia, / Tu nem mereces que eu procure a mão / Que apertarei, mas só a sós comigo, / Sob o mantéu real daquela solidão / a que me condenou teu vesgo olho antigo…// Adeus, adeus, velhos amigos! / Adeus, jovens amigos! Velhos, jovens, todos…Creio / Que o poeta não tem nenhuns abrigos / Senão a imensidão que Deus lhe abriu no seio.».
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Numa Poesia pungentemente humana, é frequente o apelo de Régio ao afago da fraternidade: «Às vezes, quando o ar parece que me foge, / Me falta Deus, ou espanta a nossa condição, / Como os fiéis de outrora, a seus pés, hoje / Dobro o joelho trémulo no chão. / Nem restos de orações lhe rezo. /Espero no silêncio e na opressão, curvado, / Que Jesus Cristo ao seu madeiro preso / Tenha dó de mais um crucificado
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As palavras feitas asas da denúncia
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A expressão escrita veicula o combate pela vida feito pelo Eu poético, é reserva de ar certa que se busca quando a vida o rarefaz. O mal da sua vida surge ditado, derramado no papel, «a pena tinta em fel», atirado de novo para o mundo, «Em que entro imundo, e me levanto puro!».
As palavras são o grito que atesta a angústia, a revolva, a procura do conhecimento de si, o voo da razão da sua existência: «E as minhas asas, – deu-mas / a minha falta de ar / naquela insustentável posição / De inutilmente mendigar / o meu direito ao meu quinhão: / Vinho para me embriagar! / Para me sustentar, frutos e pão. / As minhas asas, – deu-mas / o sinistro clarão que em mim se fez / (Mal eu passava de menino…) / E a cuja luz li todo o meu feroz destino / Pela primeira vez. / (…) / As minhas asas, – deu-mas / A incompreensão inconsciente / De que me vi murado; O amor incompetente / Frustradamente dado (…) E o meu desejo insatisfeito, / De insatisfeito, inchou até aos céus. / Já Tu, meu Deus, / Cravaste o Teu pendão na terra do meu peito.».
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Na complexidade trágica do ser humano há ainda que contar com uma existência que tem que ser talhada única e exclusivamente pelo próprio. Seguir e não seguir ninguém é uma assunção de liberdade, mas também uma solidão na caminhada.
A um jovem poeta ou a outra qualquer forma de vida, diz Régio:
«Que pode, a ti, servir-te o que aprendi por mim? / Que darei eu do que ninguém me deu? / Chegar, nunca se chega! Mas, se há fim, / Cada qual ganhe o seu. // Porque tu é que és tudo! A terra a cultivar, / A mão cultivadora, o arado da cultura, / O grão a semear, / O próprio fruto, – grão da mão futura. / Pois lavra-te, és o chão! Emprega-te, és o braço! / Semeia-te, és o grão! / Floresce, frutifica, extingue-te! E, no espaço, / Pode, amanhã, nascer mais uma ideal constelação…».
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Bibliografia consultada: José Régio, Obra Completa – Poesia I e Poesia II, Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa
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nota: texto originalmente editado no site Triplov

© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Novo grito azul de Ondjaki

O «antigamente é um lugar» que habita no peito aberto da escrita de Ondjaki. Depois de «Os da Minha Rua», Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco 2007, livro com 22 contos assumidamente autobiográficos, que recriam a infância colorida em Angola, o escritor angolano surge com o romance AvóDezanove e o Segredo do Soviético, também editado pela Caminho, para nos mostrar que «as lembranças são cócegas invisíveis que ficam dentro das pessoas».
Fez bem, Ondjaki, autor também do documentário «Oxalá cresçam pitangas», sobre a vida em Luanda, em retomar o tema da infância passada naquela cidade, pois confirma-se que os gritos azuis das crianças irmãs dos pássaros cabiam em mais um tomo. É a memória e os seus afectos, transformada em tópico irradiante de sentido, e os seus efeitos no escritor e na criação literária que AvóDezanove e o Segredo do Soviético transporta. «O inchaço do coração /facilita o despalavrear. /a liberdade pode advir /de uma veia», escreveu Ondjaki no seu livro de poesia «Há Prendisajens com o Xão», em versos que ressoam fortíssimos nesta nova narrativa.

«Convoco memórias distorcidas para inventar estórias, exerço o direito de atribuir falas aos sonhos», diz o autor, na correspondência trocada com a poeta angolana Ana Paula Tavares, incluída no final do livro. Com engenhosos processos de operacionalização da memória, Ondjaki liga a vivência à palavra, funde a realidade na ficção, reconstrói o passado no presente, e trata a memória com linguagem política, porquanto resgata o «tempo dos tugas», em memórias transmitidas pelos mais velhos às crianças, detém-se na Angola livre que procura o seu caminho, promete levá-la para o futuro.

Assim surgem as figuras reais de familiares, amigos e vizinhos, encenadas na linguagem literária, em interacção com figuras inventadas. Os mesmos processos erigem lugares, soltam situações, descrevem atmosferas e contaminam os fios mais ínfimos, conferindo uma admirável coesão à narrativa; é o caso dos nomes das personagens, reelaborados no significado e significante: porque em Angola não se gosta de nomes feios, surge a AvóAgnette, mulher terna e decidida, mais conhecida por AvóDezanove por lhe ter sido amputado um dedo do pé; a AvóCatarina, para quem «o futuro está cheio de coisas difíceis a acontecerem de modo cada vez diferente» e que, por isso, gostava mais de «adivinhar o passado»; o EspumaDoMar, «camarada maluco» que teria ou não um jacaré no quintal, na casota do cão; a prestável vizinha DonaLibânia; o camarada VendedorDeGasolina; o VelhoPescador com a sua canoa BarcoÍris e «mãos antigas» que «desfaziam, com toda a paciência do mundo, os nós bem difíceis que as redes tinham». Também a predominância do tempo verbal no Pretérito Imperfeito marca o relato de um passado que se quer contínuo.

A palavra onde os sonhos acontecem

Na acção central está o sonho das crianças fazerem explodir – ou «desplodir», palavra que inventam por ser «mais uma palavra de rebentar mesmo, explodir parece uma chama devagarinho» – as obras do Mausoléu do «camarada presidente» Agostinho Neto, levadas a cabo pelos soviéticos. É a revolução dos miúdos da PraiaDoBispo com o direito de participarem na euforia da jovem nação liberta do colonialismo português, mas “ocupada” por novos estrangeiros; é a rebelião pela defesa do que é seu, das suas casas e espaços de brincadeira no poeirento Bairro Azul. É um sonho concretizado na literatura, já que o Mausoléu está lá, e as casas nem foram demolidas, esclarece Ondjaki na já referida correspondência.

O movimento narrativo é veloz, na peugada do movimento das crianças da PraiaDoBispo, com os nomes que já encontrámos no livro Os da Minha Rua – o Pi, chamado de 3,14, a Charlita com os óculos grossos que dividia com as irmãs na hora da telenovela para todas verem bem, o Gadinho, o Paulinho, o Ndalu, que é o narrador – de Ndalu de Almeida, nome verdadeiro de Ondjaki. Todos, sempre «a correr, cada um na direcção dos pontos cardeais da sua missão», com pausas para a festa do matabicho ou matabichar a correr para voltar à sua missão: ouvir o som bonito que o vento fazia «a passar de voo com curva nas árvores do quintal da AvóDezanove, figueira antiga, goiabeira, mangueira, árvore de sape-sape, arbustos, mamoeiro, pintangueira»; apanhar goiabas e mangas pelos caminhos; rir «gargalhadas redondas que quase se viam desenhadas no ar»; correr «sem os fios dos papagaios a prenderem uns nos outros – como os nós malucos na rede do camarada VelhoPescador»; bater «forte com os pés na areia para levantar a poeira»; «adivinhar barulhos»; «ficar muito quieto, tentar respirar devagarinho e de olhos bem fechados, para escutar, do outro lado dos buraquinhos do pequeno muro, o barulho das lesmas nas pedras do jardim ou a subir as folhas largas que pareciam estradas enormes para as lesmas treparem»; viver ao ritmo das grandes coboiadas com «bangue-bangue», como no «A Grande Desforra», filme mítico para estas crianças e já referido em «Os da Minha Rua».

Como no anterior título de Ondjaki, também nesta narrativa a missão das crianças tem outra grande desforra: a escrita contra o tempo, executada por um adulto que ao espelho se vê criança a retratar um jovem país repleto de soviéticos e cubanos, estes com presença importante na educação e medicina, com os consequentes choques culturais; e as crianças observam os soldados soviéticos conhecidos em Luanda como «formigas azuis», baptizados na PraiaDoBispo de «lagostas azuis», com «fatos azuis feitos de um tecido grosso que dá para fazer bons panos do chão», divertem-se a imaginar se alguém mandasse esses soldados cantarem o hino, «o sotaque e a letra que eles iam cantar», registam as reguadas da professora que não entende porque se faz uma redacção com estórias “esquisitas” e lamentam-se por não entenderem as estórias em kimbundu da AvóMaria, porque na escola nunca os ensinaram a falar nem escrever kimbundu.

«Para se ser de um lugar e de uma infância, é preciso escrevê-la», diz Ana Paula Tavares em resposta à carta de Ondjaki. Encontramos a resposta de Ondjaki, dentro da narrativa, em cada palavra, em cada metáfora, em cada silêncio, e dada directamente pelo narrador, quando promete à avó nunca se esquecer das «estórias do tempo de antigamente», de se lembrar de todas as conversas «mesmo aquelas em que às vezes não conseguiam dizer nada». Pela palavra, Ondjaki cumpre a missão de dar brilho às suas estrelas, pois, como diria o EspumaDoMar, «se não fossem as estrelas a brilhar, o céu não ia se mexer nem nada, ia ser um lugar sem graça nenhuma de olharmos para ele.».


* Texto editado no sítio da Orgia Literária em 26.09.2008

© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

O corpo e o chão em Eduardo White

«Lembro-te: alguém no amor precisa de estar nu para mostrar ao outro que está demasiado vestido.». Assim abre e fecha o pequeno, mas irascível novo livro de poesia do moçambicano Eduardo White. Com o título sonoro e desconcertante «Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva», o autor executa uma odisseia pelas pulsões primárias do corpo e do desejo: em rajadas de linguagem, em alucinações verbais despidas de qualquer pudor, penetra o corpo da mulher africana de cheiro forte, chão da África real e utópica.

São ácidos estes limões, que se acoitam e desamparam nas dulcíssimas laranjas sanguinolentas; é, sobretudo, uma poética de extrema solidão tecida com um método dramático, repleta de raiva e desespero, ou não fosse o amor matéria incerta e fugidia, pleno de exaltação e de dúvidas, de sonho, ilusão e perda. É, realmente, de nudez que aqui se fala: a nudez das intrigas que o desejo tece contra si próprio; a nudez de todas as sensações e todos os frémitos; a nudez dos sonhos e das realidades; a nudez que nos faz sentir, incomodamente, demasiado vestidos.

Nascido em Quelimane (Moçambique) a 21 de Novembro de 1963, Eduardo Costley White tem colaboração na imprensa lusófona e tem publicados, entre outros títulos, "Amar sobre o Índico" (1984), "País de Mim" (1990), "Poemas da Ciência de Voar e da Engenharia de Ser Ave" (1992), "Dormir com Deus e um Navio na Língua" (2001), "As Falas do Escorpião" (2002), "O Manual das Mãos" (2004). Já arrecadou vários prémios literários e foi considerado em 2001, em Moçambique, a Figura Literária do Ano.

Com uma poética atada ao chão do seu país, configurada com densidade amorosa e pujante erotismo que dão conta da «humana meteorologia», White foi classificado por Mia Couto como um poeta que «vive com o coração», que sempre «escreveu para dar a ver.». Trata-se de um compromisso entre o amor e a escrita explicado assim por White: «faço amor contigo como escrevo e só escrevo em plena liberdade e ouvindo os rumores, os arfares, os gritos, os rumores que implicam profundamente essa palavra».

Com efeito, se em White, «cada palavra, cada metáfora e cada imagem criam tremores de sentidos», como diz Carmen Lucia Secco, em «Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva» apresenta-se o gesto vertiginoso do corpo do amante, em idas e vindas, que se agita, encontra e esgota no corpo da amada. E a palavra – que nos faz «voyeurs, escondidos nas páginas», como bem refere Reinaldo Ribeiro, no Prefácio – lá está a dizer as «causas profundas da sede», crua, terna, incómoda e, provavelmente para muitos, chocante.

Atesta-se a impulsão do desejo, o beijo, «anel linguisticamente molhado, regado por dentro do macio apaladado das papilas, da dormência dos lábios», o beijo com o qual «pode o falo levantar-se, devagarmente arguto como um embrião a espreguiçar-se» e a «missão de suborno pelas ruas» do corpo da amada, que é também uma incursão pela Pátria; neste sentido, White cria um objecto verbal pleno de elasticidade que atende às tensões, angústias e cicatrizes de um povo, e que lhe serve de grito:

Estou louco, mascarado no nu doido que sou aqui, lambendo-te, poro a poro, pêlo a pêlo, como um faminto indigente;

Cheirar-te desde as vísceras, o cheiro forte da mulher que és quanto mais te entro, alongado, viscoso como um molusco, a apalpar-te metro a metro, tecido a tecido, e a chamar-te nomes que são feios mas que aqui levam o milagre de serem belos e acariciantes;

Este país é tão parecido contigo, (…) E as badjicas, meu amor, as badjicas amarelecidas de tempero naquele pão fortíssimo para cimentar o vácuo do estômago, a fome que de nós se não afasta, se mantém viva, nefastamente teimosa no partilhar o já pouco que cobre as nossas mesas. Meu país suburbano e só urbanizável no amor.

Para Reinaldo Ribeiro, este livro impressiona pela «crueza do desespero a que o poeta se abandona, e da sua impotência perante a imprevisibilidade do Amor.». Cartografando o amor, depois do êxtase no corpo amado há o frio da cicuta, a perda, que não é mais do que a perda primitiva, a que já estava no momento do êxtase: «Pergunto-me: que batalha foi esta tão esmagadora, arrasante de calafrios»; «Chega-me um certo cansaço, um Inverno aberto à insónia e ao crime. Amor, talvez não sintas esse cheiro a medo, este suor peganhento agarrado aos lençóis, este odor a enxofre.».

No combate contra essa morte, está, pois, a escrita, câmara de ecos universais, projecto assumido claramente pelo autor:

O amor, reparo, sangra como um aparo lento nas palavras, apagadas, tolhidas, incertas, ruídas, cercadas e assustadas. Custa-me tanto acreditar no que vejo, nestes escombros ácidos, nestes estilhaços tatuados nas paredes. O ar é pesado e envelhecido, é como um cais mórbido e paralisado, é como se babasse mapas rasgados, bússolas vomitadas, cadáveres enlouquecidos;
(...)
Então, por essa razão, te escrevo não com o fim de que morras mas que vivas eterna para mim, e escrevo-te em esperanto, mandarim, árabe, grego e em outras línguas que não sei desenhar pelo papiro delicado do teu corpo e faço-te tecido e sedas caras com os cabelos que sinto trespassarem-me a carne com maciez e alguidares de barro com argila perfumada e incensos de acácia e madressilvas e cidras que vou espremendo para a minha língua como um peregrino perdido que encontrou a fonte e a frescura da água e o repouso da sombra.

Dos Limões Amarelos do Falo às Laranjas Vermelhas da Vulva, Eduardo White; Editorial Campo das Letras, Porto, Junho 2008

© Teresa Sá Couto