
Ver AQUI textos meus sobre obras de Sérgio Luís de Carvalho.
Extracto deste O Segredo de Barcarrota:
«Nessa noite, Frei Miguel de Santa Cruz viu o diabo surgir-lhe junto ao altar da igreja de Nuestra Señora do Soterraño fora das normais aparições de domingo e vestido como se fosse um frade com um hábito castanho e branco. O diabo, como sucede com as coisas do outro mundo, tem sempre vários rostos e alguns até que são familiares a quem o consegue ver. Podia surgir-lhe como rústico, meretriz, tecelão, perneta, fidalgo, viúva, alcoviteira, narigudo ou menestrel. Podia aparecer-lhe como camaleão, gato branco ou burro manco, como vagabundo ou cardeal. O que o demo não perdia nunca, fosse como fosse que surgisse, era um adocicado odor a ervinhas fumegantes, um leve linguajar ciciado, uns belos e profundos olhos negros capazes de enfeitiçar qualquer mortal e a mão direita deformada, resultado, segundo parece, de uma antiga peleja com S. Jorge durante a qual o santo o ferira com a lança.
Frei Miguel estava junto ao altar-mor limpando o pó a um livro de cantochão grosso, respeitoso e calhamaçudo...
(como convém a livro sacro)
... e apanhou um susto tão grande com essa sua visão extra-dominical que até deu um pequeno grito e quase deixou tombar o dito livro no chão da estreita ábside.
"Eu sei, velho, eu sei, não é costume veres-me em dia de semana, não é? Eu prefiro azucrinar-te o juízo depois da missinha de domingo, é bem verdade, que nessa altura ainda a igreja cheira a incensório e a turíbulo e não ao fedorento suor dos teus paroquianos. Mas que queres? Nem eu posso escolher tudo como desejo. É um abuso..."». (p.p. 97, 98)