Mencionar a escritora paulistana
Patrícia Melo é referir-se a originalidade, o inusitado, a desconstrução, a acutilância, o humor, a ironia e o tempero de um delicioso cinismo, tudo vertido em narrativas alucinantes e magnéticas.
Jonas, o copromanta é um título editado no final do ano passado pela Campo das Letras, o sétimo título que a editora nos trouxe da autora . (ver
Aqui).
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Personagem extraordinariamente bem construída, como é apanágio da autora,
Jonas é um funcionário da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, leitor obsessivo, espírito estóico, criptólogo que, tendo por referência a escrita copta usada no Egipto até ao séc. XIII, perscruta diariamente as suas fezes, tentando desvendar o significado das formas fecais ao boiarem na retrete, hieróglifos que desenha num caderno para estudo apurado, e que são apresentados ao longo das páginas. Além da leitura de fezes e prever o futuro - a “dejectosofia” -, Jonas tem outro enigma para resolver: a razão de ver-se clonado, com a vida plagiada, num conto de
Rubem Fonseca, o escritor brasileiro Prémio Camões, que é, assim, feito personagem nesta narrativa. Noto que Rubem Fonseca executou o guião para cinema da obra
O Matador - livro que deu visibilidade a Patrícia Melo -, em 2003, com o título
O Homem do Ano.
Extracto:
Quem possui dons divinatórios é por natureza um decifrador, um apaixonado, um jogador nato. Portanto, é fundamental, quando se vai prever o futuro, dominar também o principal axioma da criptografia, que é considerar todas as possibilidades. É uma luta. Nós e eles. O futuro e nós. O segredo e a revelação. O significado e o signo. A forma e o conteúdo. Eles se defendem e nós atacamos. Avançamos sobre Neco Juscelino e códigos. Li num manual de criptologia que uma simples oração como esta última, de apenas trinta e cinco letras, tem cinquenta nonilhões de formas de possíveis rearranjos. Um mar sem fim. Três os. Quatro emes. A lógica pura não dá conta de tudo. Por isso, precisamos ser imaginativos, dois es. Sem criatividade, três is, ficamos sem chão, dois as.
Tarde da noite, meus olhos perderam o foco. Dormi com as letras dançando em meus sonhos.
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Por sua vez, Mundo Perdido recupera a personagem Máiquel, o assassino a soldo de O Matador. O reino dos homens não tem segredos para Máiquel, tampouco o inferno do qual é seu ilustre representante. Neste Mundo Perdido, o criminoso regressa dez anos depois, foragido da polícia, para procurar a filha Samanta que não vê há uma década, levada por Erika, a ex-companheira, que fugiu com Marlénio, pastor evangélico de uma das muitas seitas bizarras que pululam no Brasil. No encalço da filha, percorre o país, passa por acampamentos de sem-terra, contacta com quadrilhas de tráfico de droga, entra e sai da Bolívia, ensejos para se conhecer a putrefacção social. Embora Máiquel pretenda deixar a sua antiga profissão de matador, a rede de morte envolve-o e configura-o, e ele comete vários assassinatos, com a destreza e frieza costumeiras, mas desta vez em nome da sobrevivência. Por isso, Máiquel é um anti-herói (ou herói brasileiro?): errante sem futuro, num mundo de violência e morte, que «aguenta o tranco» e sobrevive na loucura de que tem consciência, vertentes do carácter dual da personagem e a sua grande intenção romanesca: a loucura de uma sociedade sem esperança e ciente disso:
Estrada é bom pra pensar. Você engata a quinta, os pensamentos nascem do nada, de um buraco negro, você vê uma propaganda de seguro de vida para toda a família, uma família na mesa de jantar, sorrindo, papai, mamãe e filhinhos, e você pensa que a melhor hora de atacar é essa mesmo, quando todos estão se empanturrando, e depois os pensamentos continuam, um atrás do outro, e, quando você vê, você já está lá, pensando coisas, pum, o dia em que eu vou morrer, vermes, podridão, fim.
Embora sujeito de uma existência decadente, Máiquel nunca está só. Mulherengo, à sua volta estão sempre mulheres que o disputam, num fenómeno assim explicado: «As pessoas adoram encontrar outras pessoas afundadas na mesma merda que elas. Esse é o segredo dos alcoólicos anónimos, e das porcarias anónimas em geral.»
Por outro lado, a narração em jeito de discurso directo de Máiquel abre a porta ao calão, usado sem pejo, à crueza da palavra, confere vigor ao romance que se lê de um fôlego, num crescendo de intimismo com a personagem e, gradativamente, também em dualidade, o leitor sente repulsa e simpatia pelo “malandro” aparentemente sem escrúpulos, mas apaixonado por um cão vadio e doente, que mete dó de tão feio, logo baptizado de Tigre, que ele cuida com tolerância e afeição desmedidas, - porque «cachorro é gente e gente é cachorro» – e que leva consigo nos seus caminhos infernais. Se a ternura e o humor contagiantes das inúmeras passagens, nos desatam sorrisos, é igualmente certo que amplificam o sentido trágico de vidas gastas em «mera fila para morte», deixando-nos um travo amargo de inquietação.
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© Teresa Sá Couto