quarta-feira, 28 de julho de 2010

Um loquaz Papagaio

Eis uma leitura imprescindível nestas férias: O Papagaio de Flaubert, escrito por Julian Barnes, traduzido por Ana Maria Amador e acabado de dar à estampa pela Quetzal.

Uma viagem pela vida, psicologia e obra de Gustave Flaubert, numa narrativa originalíssima, arejada, bem-humorada, que casa o pitoresco e o reflexivo de forma soberana. «Um romance magistral sobre literatura, talento, comboios, compotas de groselha, ursos, ficção, vestidos de mulher, George Sand, política, século XIX, absurdo, morte, solidão, escritores, crítica literária — e beleza.». Em leitura, atesto: uma surpresa deste Verão, um tesouro literário de 238 páginas a que nenhum leitor ficará indiferente.

Extractos:

«Depois vi o papagaio. Estava numa pequena alcova, verde-vivo e de olho petulante, com a cabeça inclinada num ângulo interrogador. "Psittacus", dizia a etiqueta no extremo do poleiro: "Papagaio que G. Flaubert pediu ao Museu de Ruão e que esteve na sua mesa de trabalho enquanto escreveu Un Coeur Simple, onde tem o nome de Lulu, o papagaio de Félicité, a personagem principal do conto." A fotocópia de uma carta de Flaubert confirma o facto: o papagaio, escreveu ele, estava na sua secretária há três semanas, e começava a irritar-se de o ver. Lulu estava em óptimas condições, as penas tão onduladas e o olho tão irritante como deviam estar cem anos atrás.». p.p.17, 18
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«Os livros não se fazem como os filhos, mas como as pirâmides, com um plano longamente pensado, e pondo grandes blocos de pedra uns em cima dos outros, à custa de esforço, tempo e suor. E não serve para nada! Fica assim erguida no deserto! Mas domina-o de uma maneira prodigiosa. Os chacais mijam-lhe na base, e os burgueses trepam-lhe ao topo.»  p.43

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«No princípio fiquei ferido; no princípio importei-me, senti desprezo por mim. A minha mulher ia para a cama com outros homens: deveria preocupar-me com isso? Eu não ia para a cama com outras mulheres: deveria preocupar-me com isso? A Ellen era sempre gentil comigo: Deveria preocupar-me com isso? Gentil, não por se sentir culpada de adultério, simplesmente gentil. Eu trabalhava muito; ela era uma boa esposa para mim. Eu não tinha amantes porque não estava interessado; além disso, o estereótipo do médico sedutor é repugnante. Ellen tinha amantes porque, penso eu, estava interessada. Éramos felizes; éramos infelizes; tenho saudades dela. “Levar a vida a sério é magnífico ou estúpido?” (1855)». p. 203


Verão com Patrícia Melo

Mencionar a escritora paulistana Patrícia Melo é referir-se a originalidade, o inusitado, a desconstrução, a acutilância, o humor, a ironia e o tempero de um delicioso cinismo, tudo vertido em narrativas alucinantes e magnéticas. Jonas, o copromanta é um título editado no final do ano passado pela Campo das Letras, o sétimo título que a editora nos trouxe da autora . (ver Aqui).
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Personagem extraordinariamente bem construída, como é apanágio da autora, Jonas é um funcionário da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, leitor obsessivo, espírito estóico, criptólogo que, tendo por referência a escrita copta usada no Egipto até ao séc. XIII, perscruta diariamente as suas fezes, tentando desvendar o significado das formas fecais ao boiarem na retrete, hieróglifos que desenha num caderno para estudo apurado, e que são apresentados ao longo das páginas. Além da leitura de fezes e prever o futuro - a “dejectosofia” -, Jonas tem outro enigma para resolver: a razão de ver-se clonado, com a vida plagiada, num conto de Rubem Fonseca, o escritor brasileiro Prémio Camões, que é, assim, feito personagem nesta narrativa. Noto que Rubem Fonseca executou o guião para cinema da obra O Matador - livro que deu visibilidade a Patrícia Melo -, em 2003, com o título O Homem do Ano.

Extracto:

Quem possui dons divinatórios é por natureza um decifrador, um apaixonado, um jogador nato. Portanto, é fundamental, quando se vai prever o futuro, dominar também o principal axioma da criptografia, que é considerar todas as possibilidades. É uma luta. Nós e eles. O futuro e nós. O segredo e a revelação. O significado e o signo. A forma e o conteúdo. Eles se defendem e nós atacamos. Avançamos sobre Neco Juscelino e códigos. Li num manual de criptologia que uma simples oração como esta última, de apenas trinta e cinco letras, tem cinquenta nonilhões de formas de possíveis rearranjos. Um mar sem fim. Três os. Quatro emes. A lógica pura não dá conta de tudo. Por isso, precisamos ser imaginativos, dois es. Sem criatividade, três is, ficamos sem chão, dois as.
Tarde da noite, meus olhos perderam o foco. Dormi com as letras dançando em meus sonhos.
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Por sua vez, Mundo Perdido recupera a personagem Máiquel, o assassino a soldo de O Matador. O reino dos homens não tem segredos para Máiquel, tampouco o inferno do qual é seu ilustre representante. Neste Mundo Perdido, o criminoso regressa dez anos depois, foragido da polícia, para procurar a filha Samanta que não vê há uma década, levada por Erika, a ex-companheira, que fugiu com Marlénio, pastor evangélico de uma das muitas seitas bizarras que pululam no Brasil. No encalço da filha, percorre o país, passa por acampamentos de sem-terra, contacta com quadrilhas de tráfico de droga, entra e sai da Bolívia, ensejos para se conhecer a putrefacção social. Embora Máiquel pretenda deixar a sua antiga profissão de matador, a rede de morte envolve-o e configura-o, e ele comete vários assassinatos, com a destreza e frieza costumeiras, mas desta vez em nome da sobrevivência. Por isso, Máiquel é um anti-herói (ou herói brasileiro?): errante sem futuro, num mundo de violência e morte, que «aguenta o tranco» e sobrevive na loucura de que tem consciência, vertentes do carácter dual da personagem e a sua grande intenção romanesca: a loucura de uma sociedade sem esperança e ciente disso:

Estrada é bom pra pensar. Você engata a quinta, os pensamentos nascem do nada, de um buraco negro, você vê uma propaganda de seguro de vida para toda a família, uma família na mesa de jantar, sorrindo, papai, mamãe e filhinhos, e você pensa que a melhor hora de atacar é essa mesmo, quando todos estão se empanturrando, e depois os pensamentos continuam, um atrás do outro, e, quando você vê, você já está lá, pensando coisas, pum, o dia em que eu vou morrer, vermes, podridão, fim.

Embora sujeito de uma existência decadente, Máiquel nunca está só. Mulherengo, à sua volta estão sempre mulheres que o disputam, num fenómeno assim explicado: «As pessoas adoram encontrar outras pessoas afundadas na mesma merda que elas. Esse é o segredo dos alcoólicos anónimos, e das porcarias anónimas em geral

Por outro lado, a narração em jeito de discurso directo de Máiquel abre a porta ao calão, usado sem pejo, à crueza da palavra, confere vigor ao romance que se lê de um fôlego, num crescendo de intimismo com a personagem e, gradativamente, também em dualidade, o leitor sente repulsa e simpatia pelo “malandro” aparentemente sem escrúpulos, mas apaixonado por um cão vadio e doente, que mete dó de tão feio, logo baptizado de Tigre, que ele cuida com tolerância e afeição desmedidas, - porque «cachorro é gente e gente é cachorro» – e que leva consigo nos seus caminhos infernais. Se a ternura e o humor contagiantes das inúmeras passagens, nos desatam sorrisos, é igualmente certo que amplificam o sentido trágico de vidas gastas em «mera fila para morte», deixando-nos um travo amargo de inquietação.
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© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 23 de julho de 2010

As Artes Entre as Letras dedicado a Albano Martins

Chamada de atenção para o jornal  As Artes Entre As Letras, editado no Porto, que dedica o seu número ao poeta Albano Martins, no ensejo dos 80 anos do poeta, a completarem-se no próximo dia 24 de Julho, e dos seus 60 anos de vida literária, que se assinalam este ano.

(clicar na imagem para aumentar)
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É uma bela edição, este número 30 do jornal quinzenal (sai à quarta-feira). Na homenagem a Albano Martins, à volta do homem e da obra, juntam-se, com textos, Guilherme d' Oliveira Martins, Miguel Veiga, António Oliveira, Salvato Trigo, Fernando J.B. Martinho, Jorge Velhote, Bernardette Capelo-Pereira, Helder Pacheco, António Rebordão Navarro.
Editam-se três poemas inéditos de Albano, datados e na sua caligrafia, e um anexo de 4 páginas com inéditos de Albano dedicados a Helder Pacheco.
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*Ler aqui um texto de Guilherme d'Oliveira Martins sobre o percurso de Albano Martins.
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Ver textos meus sobre a vida e a obra de Albano Martins na etiqueta correspondente.

sábado, 17 de julho de 2010

Poesia de Manuel de Freitas

«Pode-se evitar tudo menos as evidências / – se estão nus os olhos por elas /apedrejados», escreve o poeta Manuel de Freitas em três versos que encerram características marcantes da sua poesia: a crueza da observação, a lucidez da palavra avessa a jogos retóricos ou meros exercícios vocabulares, que grassa em tanta da dita poesia que teima em fazer-se em Língua Portuguesa.

«Dificilmente alguém poderá rematar a leitura de um poema de Manuel de Freitas com aquele “não percebi nada” que, se o snobismo não fosse endémico no meio intelectual, dedicaríamos a muita da poesia que passa por “grande”, escreve José Miguel Silva no posfácio do A Última Porta, colectânea de poemas de Manuel de Freitas, acabada de editar pela Assírio&Alvim. Na belíssima capa, um desenho de Adriana Molder com a sua inconfundível técnica dos retratos a tinta-da-china sobre papel esquisso e a procura do branco com uso de água com lixívia.
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A obra de Manuel de Freitas é composta por poemas que fogem de lugares ledos, apesar do «estupor bucólico de certos dias». Trata-se de uma poesia que se detém em lugares onde se reúnem pessoas com «a sincera mentira dos seus gestos», com a «ilusão de se estar vivo», para colher e abrigar «numa espécie de voz /esses estilhaços» de existências caídas, excluídas, que erram nas ruas de várias cidades, que se vazam em copos nas tabernas, ou nos bares nocturnos onde se vive a «mentira de se estar vivo». No centro dos escombros, parte integrante deles, lúcido, atestando que a angústia é um dano colateral de quem vive, está o sujeito poético que, também ele, se confunde com o autor: «Dois homens, numa taberna, /enquanto chovia. O terceiro /era eu: aquele que escreve /e não escreve este poema.».
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A voz de Manuel de Freitas «não desemboca numa depreciação da vida mas numa espécie de amor rancoroso pela mesma, um amor desesperado e sem saída», resultado de um «sentimento de quem sabe que ama apenas uma sombra, e que apenas sombras podemos amar», diz José Miguel Silva. Contaminada pela morte, a vida – a que o sujeito poético não «apetece chamar-lhe “vida”» – é «o nada»: «A vida, devo-o ter dito já, também pode /ser isto – a violenta dor de alma, /a dor simples e gasta de ser isto apenas: //a alma nenhuma.». Quanto ao amor, «não sei o que é o amor», diz o sujeito poético que sabe que «nada ficará», pois «a morte escreve demasiado bem». A literatura, essa, será uma voz para futura memória da existência que tem a gritar unicamente o nada: «O mais estranho não é a literatura, / o solene esgar da poesia. / Mais estranho, sempre, é sobreviver /a isto, fingir que não, sorrir. // Enquanto o olhar negro negro /de um gato testemunha a tua morte /e se despede melhor do que tu/ da música e dos dias e da música. // Qualquer coisa assim.».

Transcrevo na íntegra o poema Errata, e um extracto do poema BWV 988
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Onde se lê Deus deve ler-se morte.
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.
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Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.
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Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.
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Onde se lê Manuel de Freitas de ser
Com certeza um sítio muito triste.

(poema Errata, p.131)

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Talvez tudo fosse diferente
se o mundo tivesse começado tão bem
como as variações Goldberg.
Não sei, não quero saber, não faço ideia.
[…]
O amor? Talvez, quando um cadáver
se recria e afaga penosamente
a morte de que de uma maneira ou
de outra se morre. Quem me dera ser
menos realista, menos real,
menos permeável ao desgosto.
Mas a verdade é esta: partiste
a meio da noite, fodemos pouco e mal
e quando a janela me guilhotinou
já um táxi te levava
para longes terras da cidade em pânico..
É tudo – sabes? _ tão dolorosamente simples.
A mão que não quer esperar-me,
o rumor sórdido dos bares,
a certeza de que a vida, a vida,
não deveria ser exactamente assim.
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Reúno, numa espécie de voz,
esses estilhaços. Sei que não vale
a pena, sempre o soube.
Há os que se despedem e os que não.
E, indiferentemente, progridem
as diferentes coisas. Carteiros
matinais, aviões, poetas que dão
corda à musa e escolhem
devagar o timbre da gravata.
Estão no seu direito, partilham
o bem comum, a cidadania do terror.
..
E eu, infelizmente, existo. Abro
outra lata de cerveja, sob
o olhar reprovador do gato. Sim,
gostava de ser felino – uma coisa
mansa, dolorosa, ao abrigo da tormenta.
[…]
(poema BWV 988, p.p73,74)
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Nota (1):  É conhecida a posição de José Miguel Silva sobre o que deve ser a Poesia; desafio à leitura de um seu texto e respectiva discussão, AQUI.

sábado, 10 de julho de 2010

A Chave premiada de Rui Herbon

(versão do texto da Apresentação Pública, a 25 de Maio último, editada no sítio da Orgia Literária em 09 de Julho)

Prémio Branquinho da Fonseca de Conto Fantástico, 2009, A Chave é o novíssimo título de Rui Herbon. Em epígrafe, versos do poema Xadrez de Jorge Luis Borges – Deus move o jogador que move a peça. / Que deus atrás de Deus o ardil começa / de pó e tempo e sonho e agonias? – fazem-nos prever a influência borgiana e lobrigar a urdidura do conto com as declinações do jogo que é a vida onde todos somos jogadores e jogados, peões no imenso acaso que nos governa.
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No centro da narrativa está um jogador e um jogo: Michel Lemercier, um xadrezista francês de renome, com livro publicado sobre o métier, enredado numa só partida de xadrez que lhe ocupa dezassete anos de vida (de 1958 a 1975). O mistério chega-lhe de forma «enviesada, oblíqua» sob o aspecto duma bela e enigmática mulher, alta, esbelta, longos cabelos pretos, olhos grandes, com voz «grave e obscura» a evocar o «rumor do fogo», de nome Lucrezia, e pela qual se sente imediatamente enfeitiçado. Não é a Dama Pé de Cabra da narrativa de Alexandre Herculano, tampouco as fatais Cleópatra e Medusa ou a estonteante Lucrécia Bórgia, mas o leitor é, logo na primeira página, catapultado para todas elas; trata-se do início da negociação do fantástico com o leitor, lançada a ambiguidade essencial nesse tipo de narrativa, mantida durante todo o conto a construir e fortificar a dúvida entre o real e o irreal.
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Tratando-se de uma narrativa breve, célere e concentrada, o texto lança mão a diversos recursos industriosos como o de um narrador que sabe tudo e mostra-o pelo que cala no momento certo, em cortes cirúrgicos que nutrem a atmosfera do enigma; ainda no jogo com o leitor, porque na inversão do esperado, a relação do jogo de xadrez com o jogo da vida não é feita alegoricamente, mas evidenciada directamente no texto: «o xadrez é a vida», «Dois princípios opostos debatendo-se sobre um tabuleiro cósmico: branco contra preto»:
apenas um lance, pelo que aquela jogada adquire uma relevância absoluta. A vida inteira gira em torno desse lance, e a sua execução converte-se no objectivo básico, na razão final de cada jogador. A vida, portanto, transforma-se numa partida de xadrez, e o xadrez deixa de ser uma abstracção para se converter em vida. (p. 53)

Sempre na construção da ambiguidade, o texto vai alternando, numa espécie de camadas, elementos realistas com situações do dia-a-dia, a conferir verosimilhança à narrativa, e fraturas da racionalidade com elementos do Fantástico a tecerem a magia (um peão de prata, que Michel recebe de Lucrézia, e um minúsculo estojo de xadrez composto por peças feitas por um ourives florentino, no séc. XVI, que a mulher transporta na sua mala). Assim, A Chave radica-se num jogo dual com que se pretende explicar o mundo e o indivíduo, um jogo entre enigmas que procuram ser racionais e aquela «espécie de escândalo da razão» – referida por Borges no conto “O Aleph” – a registar «um processo não acessível aos homens».

Construindo-se a acção central, a mulher, amadora do xadrez, propõe ao jogador uma nova concepção do jogo, e, não obstante o desdém manifesto num encolher de ombros, o xadrezista aceita o jogo do acaso que a mulher lhe propõe: executar um lance duma partida de xadrez iniciada no séc. XIV, entre duas famílias poderosos e rivais, os Bianco e os Zwart (branco e preto como as pedras do xadrez), que depois de 200 anos a digladiarem-se em lutas e vinganças fratricidas decidiam que o xadrez fosse o campo de batalha, que fosse a mente e a inteligência a combater e não o músculo e o aço; jogariam apenas uma partida, cuja duração se mediria em termos geracionais, um lance em cada meio século, estando, pois, naquela altura, cumpridas catorze jornadas. É o jogo do tempo desatado pela mulher que, depois deste primeiro encontro, desaparece para reaparecer dezassete anos depois, com a beleza intacta, como se o tempo não tivesse passado por ela, a dizer ao jogador que ele já tinha feito o seu lance e a fazê-lo «compreender a ordem oculta que regia a sua própria vida».
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Para o tempo do jogo, o texto constrói a psicologia do jogador em princípios aproximados dos expostos por Dostoievsky, exactamente em O Jogador: «a alma do jogador exige sensações até à fadiga definitiva», escreveu o romancista russo, e o jogador do conto de Rui Herbon parece movido por um estranho capricho, pela sede de risco e pela obsessão: durante três anos isola-se do mundo, afasta-se da alta competição para preparar a partida; obcecado com o mistério para o qual não divisava sentido, investiga, muda progressivamente o seu carácter, torna-se taciturno, «enche a casa de tabuleiros de xadrez, desenvolvendo em cada um deles dezenas de posições alternativas, e os seus dias convertem-se numa irracional partida múltipla, numa confrontação desmedida entre ele e o infinito»; imagina o prémio prometido e os objectivos daquela estranha partida de xadrez, especula possibilidades esotéricas daquele prémio, procura explicações mais racionais, desenvolve desde teorias fantasiosas às mais prosaicas, tudo formas da narrativa introduzir rupturas, desvios, jogos mentais da personagem que lhe dão frustração perante a impossibilidade de conhecer a verdade.
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Ainda no poema Xadrez, Jorge Luis Borges escreveu: «E quando os jogadores tiverem ido, / Depois do tempo os ter já consumido, / Decerto não terá cessado o rito.». Trata-se do tempo da longa memória, esse mesmo que desfila neste A Chave, o do labirinto paciente desse novelo secreto que molda o universo. É feita de Tempo, a chave desta narrativa. Como é a escrita; e nesta, Rui Herbon tem-nos dado grandes jogadas.

Rui Herbon, A Chave, Parceria A. M. Pereira, 2010
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Nota: versão do texto que serviu de base à Apresentação Pública

© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Nova edição de Gineceu

Cristina Nobre Soares lança hoje a segunda edição de Gineceu, uma casa de silêncios de 17 mulheres abrigadas no mesmo número de curtas narrativas, mais duas do que na edição anterior. Nesta dilatação se vai cumprindo o enunciado pela personagem Laura: Eu só quero que alguém escute o meu choro, a minha existência. A presente edição, ainda com a chancela da Papiro, tem na capa a fotografia da escultura de “Isabel”, do conjunto das esculturas de Bolota, nome artístico da ceramista Isabel Maria de Azevedo Claro, sobre estas mulheres da escrita de Cristina (ver vídeo, no final deste texto). Não obstante tratarem-se de pequenas narrativas, as personagens femininas demoram-se no espaço que as portas da escrita abrem. Com efeito, se se trata de mulheres retidas numa baixa condição social e radicados em lugares portugueses (com referenciais da emigração lusa, da Guerra do Ultramar e da Revolução de Abril), o seu universo psíquico atinge qualquer mulher de qualquer lugar.


São mulheres que se exaurem na banalidade rotineira dos gestos, por isso gestos secos continuamente a fechar cortinas, que choram por dentro, que olham para “as costas da felicidade” e para o chão, sem capacidade de joeirar sonhos. Por isso, Helena fica a “quatro passos da janela” e Rosário cruza o xaile de renda, envolvendo-se na teia ímpia, e urdida com esmero, do destino, e todas afogadas na solidão, cumprindo o seu “papel de espectro patético”.
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No seu claustro de silêncio, fechadas no lamento do fado, algumas das mulheres estioladas no abafar da frustração, aninhadas no luto da saudade, têm na maternidade o único sentido das suas vidas, dito assim sobre Irene:
outra agulha. Outra barriga cheia. Outra vez que não conseguira fugir ao corpo que a puxava a meio da noite. Mas dessa vez, escondera os vómitos no abafar da água da torneira aberta e a barriga que logo se fez saliente, na cinta apertada. Até ser tarde demais para que fosse de novo. E a mesma parteira que lhe desmanchou os filhos, agarrou-lhe as pernas para que ela parisse aquele. Que lhe saiu num grito imenso, prenhe de culpa, parido de alívio. (p.39, da primeira edição).
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Simples e despretensiosa, com vocabulário, concomitantemente, doce e cru, a expressão escrita veicula eficazmente a voz interior das mulheres, íntima e confessional, seguramente capaz de estabelecer diálogos de cumplicidades com leitores homens e mulheres.
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© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Margarida com Mulher Ao Mar

Mulher Ao Mar é um título de que se tem falado muito, e justamente falado bem. É o livro de estreia de Margarida Vale de Gato, ela que nos tem brindado com traduções de excelência – é dela a tradução de Edgar Allan Poe no Obra Poética Completa, livro de beleza magistral editado no ano passado pelas edições Tinta da China.

Mulher Ao Mar reúne poemas narrativos lúcidos, limpos de artifícios, intimistas, dialogantes, interventivos, irónicos, de escrita lesta, rítmica, rigorosa, depurada e plástica.
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A abrir, uma Glosa, à maneira da poesia do Cancioneiro, a evidenciar as temáticas e os caminhos do olhar poético, assumidamente feminino, que encontramos ao longo dos restantes poemas; Mais enxergo três meninas/debaixo de um laranjal, /uma na roca a fiar, /outra sentada a coser, /a mais fermosa de todas /está no meio a chorar, lê-se no mote da «Glosa  da Nau Catrineta», cujas glosas explanam «três irmãs mouras» a fiar, costurar e carpir a alma e os dias, enxergadas por um olhar feminino que lhes desvela a condição.
Mulher no mar da melhor escrita, para descobrir em 44 poemas. Transcrevo, na íntegra, o poema Intercidades:

galopamos pelas costas dos montes no interior
da terra a comer eucaliptos a comer os entulhos de feno
a cuspir o vento a cuspir o tempo a cuspir
o tempo
o tempo que os comboios do sentido contrário engolem
do sentido contrário roubam-nos o tempo meu amor
.
preciso de ti que vens voando
até mim
mas voas à vela sobre o mar
e tens espaço asas por isso vogas à deriva enquanto eu
vou rastejando ao teu encontro sobre carris faiscando

ocasionalmente e escrevo para ti meu amor
a enganar a tua ausência a claustrofobia de cortinas
cor de mostarda tu caminhas sobre a água e agora
eu sei
as palavras valem menos do que os barcos
.
preciso de ti meu amor nesta solidão neste desamparo
de cortinas espessas que impedem o sol que me impedem
de voar e ainda assim do outro lado
o céu exibe nuvens pequeninas carneirinhos a trotar
a trotar sobre searas de aveia e trigais aqui não há
comemos eucaliptos eucaliptos e igrejas caiadas
debruçadas sobre os apeadeiros igrejas caiadas
meu amor
eu fumo um cigarro entre duas paragens leio
o Lobo Antunes e penso as pessoas são tristes as
as pessoas são tão tristes as pessoas são patéticas meu
amor ainda bem que tu me escondes do mundo me escondes
dos sorrisos condescendentes do mundo da comiseração
do mundo
à noite no teu corpo meu amor eu
também sou um barco sentada sobre o teu ventre
sou um mastro
.
preciso de ti meu amor estou cansada dói-me
em volta dos olhos tenho vontade de chorar mesmo assim
desejo-te mas antes antes de me tocares de dizeres quero-te
meu amor hás-de deixar-me dormir cem anos
depois de cem anos voltaremos a ser barcos
eu estou só
Portugal nunca mais acaba comemos eucaliptos
eucaliptos intermináveis longos e verdes
comemos eucaliptos entremeados de arbustos
comemos eucaliptos a dor da tua ausência meu amor
comemos este calor e os caminhos de ferro e a angústia
a deflagrar combustão no livro do Lobo Antunes
comemos eucaliptos e Portugal nunca mais acaba Portugal
é enorme eu preciso de ti e em sentido contrário roubam-nos
o tempo roubam-nos o tempo meu amor tempo
o tempo para sermos barcos e atravessar paredes dentro dos quartos
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meu amor para sermos barcos à noite
à noite a soprar docemente sobre velas acesas
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barcos.


Margarida Vale de Gato in Mulher Ao Mar, p.13, Mariposa Azual, 2010