domingo, 28 de junho de 2009

Cumplicidades em «Percursos de Vida»

José António Salcedo abre-nos a sua casa e mostra-nos «Percursos de Vida». Percursos dele, mas também percursos nossos. A dádiva está num álbum surpreendente com fotografias e textos do autor numa relação de cumplicidade que atinge em torrente o receptor-leitor. Se uma imagem tem sempre um espelho e um mapa, a estas juntam-se-lhes os textos e, assim, cumpre-se o círculo do enleio.

Conivências, ensinamentos, incentivos do autor que diz: «libertar a alma é sempre um pouco penoso. Vou ter de enfrentar alguns medos e realidades. Vou ter de enfrentar a forma como cresci ou não. Vou ter de perceber se consigo mesmo voar e se ainda sei dançar.».

Impulsionados pelo «pajaro Dunes», que dança no daguerreótipo, partimos no adejar de sensações. Assim se faz a arte: ela absorve a alma de cada um para lha devolver, iluminada, extasiada e purificada. Assim se faz magia.

Com equipamento de produção fotográfica Nikon e um computador portátil Macintosh, José António Salcedo apresenta o seu olhar da realidade e realiza o paradoxo: sendo a fotografia a forma objectiva de representar o real – daí o nome das lentes objectivas –, e de a estatizar, aprisionando-a num momento, nestas fotografias sobressai o movimento. Para isso contribui o forte poder evocativo e a polissemia das imagens que suscitam movimentos cognitivos de reconhecimento e recriação. Outrossim, a escolha maioritária do preto e branco ou a dita «cascata de cinzentos» contribui para a vertigem de sentidos – o preto e branco instiga mais cores que a cor, porquanto permite ao observador imaginá-las segundo o seu mundo interior. Pretendem-se percursos de intimismo e tudo conflui, coerentemente, nesse sentido.

Na Introdução, à laia de prefácio, o autor explica a união da fotografia e da escrita: «através da fotografia vou observando e sentido a vida, através da escrita vou compreendendo a vida e, através dela, as pessoas», «tocando as pessoas e deixando-me tocar», acrescenta-se. A organização temática em três grandes partes – «Vida em redor», «Vida para dentro» e «Vida para a frente» – consolida o objectivo. Assim, em «Vida em redor» pretende compreender-se um sentir que se preenche com visões de um homem que «adora fotografia porque adora a vida, mas uma criança que utiliza a fotografia para chegar às almas.».

O contexto esotérico da luz captado pela objectiva é uma das linhas de força de todo o trabalho e o grande motor da reflexão. Em «A vida é como esta imagem» regista-se o momento fugaz em que o sol desenha percursos de luz e sombra, «portas abertas, portas fechadas, portas na luz, portas na sombra…a velha na luz, a criança a entrar na luz…».

Paul Almasy (19o6-2003) disse que Quando se analisa uma imagem e se começa a pensar nela, esta torna-se problemática e portanto interessante... . A partir de algumas fotografias que captam “a vida da madeira”, o autor incrementa a meditação: «As pessoas e as relações são feitas de tábuas de madeira»; «podem ter nós ou concavidades, farpas ou não, periodicidades ou lisuras, grão fino ou grosso, ser construídas em apenas um ou em mais lanços (…) As relações entre as pessoas empenam, se estiverem expostas ao frio ou ao calor». Conclui-se que, como a madeira que se quer que resista ao tempo, as relações entre as pessoas para se manterem exigem cuidados regulares: «as relações entre as pessoas alteram-se com o tempo. Umas vezes vão-se desfazendo, outras vezes ficam mais rígidas. E estragam-se se não forem tratadas periodicamente».

Também a metáfora dos graffiti surge associada às relações entre as pessoas: A vida também é graffiti e «os gatafunhos que desenhamos e trocamos uns com os outros» às vezes até ficam quadros bonitos.

Em «Vida para dentro» incita-se a mudar de perspectiva: «o fácil é olhar, o difícil é ver. E a melhor forma de ver não é pelos olhos, mas sim pelo sentir. O consciente é um instrumento de sobrevivência, rudimentar; o inconsciente somos nós, inteiros.». O objectivo é sempre fotografar almas, «como as ervas que captam água e a dirigem para o seu centro». Surgem fotografias do autor no centro onde renasce, no reencontro com as sequóias e zonas ardidas da floresta junto ao Pacífico, incentivando-nos a procurar esse nosso centro de vida: «também a floresta recicla os seus recursos, de forma controlada. (…) Foi este modelo de crescer que as sequóias me ensinaram: sempre pronto a dar nova vida, mesmo a partir de um pedaço de casca».

Há que ir com a «Vida para a frente», «Sometimes and then sometimes», com momentos ora de felicidade, ora de tristeza. O segredo é estar atento à Luz que surge através de aberturas. Mesmo que o céu oprima no seu cinza-chumbo, surgirão surpreendentes «frestas de luz que vêm dançar num sorriso». A fotografia atesta o milagre, o texto tenta dar-lhe sentido.

Na explanação das aprendizagens da luz, o nevoeiro surge como superfície de revelação. A fotografia da Ponte da Arrábida assim o demonstra: «muitas vezes o nevoeiro permite-nos esquecer detalhes sem importância e concentrar na essência das coisas.»;«Esquecer é mais difícil do que aprender…e o nevoeiro ajuda a esquecer.».

A mensagem de optimismo reitera-se de forma clara: a fotografia de uma janela gradeada na rua da Alfandega mostra que «Muitas grades são inúteis, mas nada como olhar de frente para elas para nos apercebermos até que ponto o são».

O álbum é uma apologia dos irreverentes que querem ser felizes. Um brilho para os olhos quentes e, através deles, para a alma: «por que será que todos os sonhos são tão cheios de calor?». No Epílogo, lança-se outra questão: «E agora como vai ser o futuro?». Com partilhas destas, certamente o futuro jamais será uma casa de solidão.

Percursos de Vida, José António Salcedo, Álbum de fotografias, Campo das Letras

© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 25 de junho de 2009

«Mulher e arma com Guitarra Espanhola»


Texto pronunciado na sessão do lançamento, a 18 de Junho de 2009, na livraria da Assírio & Alvim  da Passos Manuel.


Dez mil dólares. É esta a munição e o disparo de Mulher e Arma Com Guitarra Espanhola, o último livro da trilogia Dennis McShade, pseudónimo de Dinis Machado, escrita entre 1967 e 1968, agora reeditada pela Assírio & Alvim. À maneira do humor “machadino”, são dez mil dólares para o fim de uma saga escrita num ano por vinte contos de réis.

E se o leitor, que leu os anteriores Mão Direita do Diabo e Requiem para Dom Quixote, se prepara para mais um tomo irrepetível, não divisa, todavia, a surpresa da nova leitura, nem que acatará com um sorriso a sentença maynardiana: «o homem que se surpreende não é adulto». Tanto mais que o espanto terá novo episódio no perturbador Blackpot, um inédito a editar no fim do ano.

Por causa de dez mil dólares, o escrupuloso assassino profissional Peter Maynard embaraça-se numa organização nazi americana; para os descobrir, recebe o Contrato; devido a eles, desenvolve novas estratégias de sobrevivência; na peugada deles, confronta-se com a sua consciência; motivada por eles, a palavra detém-se na realidade, num engajamento social, filosófico, político e até lírico: «as palavras servem para muita coisa. Com elas, podem encher-se sacos de silêncio.».
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Tudo isto é muito estranho para um policial? É. Mas é precisamente devido a esta genial estranheza que estes livros de bolso, a disfarçar a fina literatura, não envelhecem.
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Dinis Machado apostou transformar o policial negro e «a transformação operou-se», como o próprio escrevia na Nota do Editor: «o género policial, que se bastava com uma só face da realidade, quantas vezes apenas aparente, tende a desdobrar-se em vários planos, procurando pistas de vida em todas as direcções que a vida tem».

Se toda a realidade está na mente do observador, em Peter Maynard, o intelecto é a vigília. De forma assombrosamente natural, surge uma estética literária a evidenciar a autonomia de Dinis Machado face às regras dos policiais que, aliada à autenticidade – na sua visão da natureza humana e das mutações do mundo – legitimam o valor artístico da obra e conferem-lhe o carácter vanguardista, que se mantém, quarenta anos depois.

Como o título deixa lobrigar, neste Mulher e Arma Com Guitarra Espanhola impera o feminino: Peter Maynard, o «mão direita do diabo» que usa pistola e silenciador, que tem um negócio privado e a vaidade de escolher os contratos que faz, recebe o contrato «Nora», mulher de um malandro, «homem de uma baixeza quase integral» e um fatalismo “dostoiewskeano”, que contrata um assassino profissional para a eliminar, o qual desaparece com o adiantamento de dez mil dólares sem executar o trabalho.

Um «problema de alcova», marca pusilânime do homem, o que agasta Maynard, que defende que «Para andar direito na vida, qualquer homem precisa da sua costela espartana»; feminina é, também, a arma espanhola que o ataca, uma navalha de ponta e mola com uma longa tradição em questões passionais e vinganças; a comandar as operações está, desta vez, uma mulher, e até Sinatra no gira-discos é destronado pelas guitarras de Segóvia e de Yepes. E, claro, há sempre a presença de Olga, a única mulher do mundo com a qual Peter Maynard tem «questões de pele eternamente por resolver», nos braços da qual se sente mar. Indubitavelmente, Maynard encerra uma tese, agora engenhosamente robustecida, sobre o feminino, nos seus múltiplos e insondáveis enigmas: mulher, o céu e o inferno, o alento e a debilidade, o afago e a traição, Penélope e Circe.
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O conflito de uma consciência

Paradoxais e inéditos são, ainda, os monólogos maynardianos, desta vez difundidos por sonhos. Maynard, «um assassino profissional específico. Um assassino profissional com consciência. Um conflito vivo» que, por isso, tem uma úlcera que «vai e vem. Como os barcos», é levado «pela outra úlcera, a que não pára e vive nos miolos. Uma merda chamada cosa mentale pelos intelectuais sofisticados.».

O drama interior da consciência em monólogo consigo irrompe em fragmentos dispersos e desfigurados do real, ordenados caoticamente, prenhes de sentidos “sem-sentido”, à maneira de Kafka. E porque a consciência de Maynard tem um compromisso activo com o mundo, os monólogos fluem no questionamento da existência humana, dão eco à consciência funda de alienação e angústia, juntam, no teatro do absurdo, pantomina em palco, as nostalgias, a futilidade, o erotismo, o irracional, a dor, o riso, o grotesco e tudo o que em nós acorda o número do palhaço.

Em jogos cénicos, onde convivem o drama humano e o humor irónico e satírico, surge-nos Maynard, no bar vermelho de bebidas vermelhas chamado «As vinhas da Ira», onde os convivas têm nomes de escritores como Zola, Baudelaire, Marx, Neruda, onde até Aristóteles é amigo de Picasso, onde Maynard escolhe ser Confúcio ou Branca de Neve, revê a infância, a morte do pai, e confronta-se com os seus fantasmas; ou Maynard no fundo do poço, no eterno combate contra a parede que o quer esmagar, que é, afinal, o combate contra a escuridão da existência, como o é, ainda, o veiculado por esta literatura iluminada.


* Nota: Disponível há cerca de dois meses, este Mulher e Arma Com Guitarra Espanhola é o ensejo para um conjunto de actividades de homenagem a Dinis Machado, falecido em Outubro último: o livro foi oficialmente apresentado dia 18 de Junho, na livraria da Assírio & Alvim e, no final do mês, as honras mudam-se para o Bairro de Dinis Machado, com tertúlia na Fnac do Chiado. O texto que aqui se edita foi o pronunciado na sessão do lançamento.

Nota: Este texto está editado, desde dia 22 de Junho no renovadíssimo site Orgia Literária.
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© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 22 de junho de 2009

«Palinódias, Palimpsestos» de Albano Martins

São infinitos os caminhos da palavra, mas também são inextinguíveis o poder criativo e depuração de Albano Martins. Palinódias, Palimpsestos comprova-nos que é precisamente o carácter inesgotável da palavra que nos permite agasalho e apaziguamento, porque quando tudo nos falta e nos sentimos murados, resta-nos ainda a palavra com a sua garupa.

«Não ponhas o dedo /na ferida. Deixa /a dor respirar /em segredo», diz-nos o poeta, num poema minimalista, de quem aprendeu com o silêncio a faísca certeira da luz. E é por essa torrente luminosa de paz interior que nos atinge, que Albano Martins é um dos maiores poetas vivos de Língua Portuguesa.

Como o título indica, o livro propõe a reflexão sobre a poesia enquanto arte que labora com o material mais esquivo, mas por isso mesmo desejável: a palavra que abre caminhos que se desmultiplicam (palinódias), sempre inquieta, ora escondendo-se, ora deixando-se transparecer, em proximidade com Palimpsestos: Nem sempre as palavras /dizem o que diz /o seu sentido. São /às vezes máscaras /perfeitas, outras /como sudários, rostos /esculpidos no mármore /das lágrimas. São /umas vezes /parábolas; outras, /palinódias, /Palimpsestos.

Num exercício íntimo, intenso, os poemas procuram lugares onde o poeta e a palavra se interceptem, se reconheçam e se fundam: vim /para saber /se eras tu /a quem dei /o meu nome. São caminhos de identidade que Albano percorre há mais de meio século dando-nos dele regularmente notícias e, agora, neste seu “relatório”, mais depurado do que nunca.
Com jovialidade e energia raras, enfrenta-se a rasura, para que a escrita se perpetue e com ela os ecos do silêncio, tessitura da palavra, mistério e razão da criação:

Que não. Que não sabes,
dizes. Também
a água não sabe, e nunca
diz não, e nunca
se desdiz.

Rigoroso, no conteúdo e na forma, o poeta revela o trabalho árduo que o relacionamento com a criação exige. A disposição dos versos nos poemas obedece a uma perfeição geométrica, contribuindo para o desafio da multiplicidade de leituras. E assim se atesta que o amor, todo o amor, tem de ser vivido de olhos bem abertos:

Dormir, sim,
quando o silêncio
dói. Mas nunca
se dorme quando
o amor
é uma insónia. Ninguém
ama de olhos
fechados.

Cumprir-se a missão para se cumprir o ser, sempre com persistência, apesar dos escolhos, é uma das grandes lições que o poeta nos dá e com ela robustece-nos a existência:

Lembra-te: ainda há pouco
havia à beira
do caminho
algumas pétalas. Agora
há lama e nela
afundas os sapatos. E outro
caminho não conheces. E outro
também não há.

Poro a poro, a pele das palavras

Maestro das sensações, Albano acompanha o ardil da palavra, corteja-a para lhe saber o sentido, o seu próprio sentido, o seu /sentido próprio, conhece-lhe os movimentos, os segredos, despe-a, ama-a e, cúmplices, poeta e palavra, que dizer uma é dizer outra, constroem a história da paixão:

Se a mão
desliza
sobre o papel,
se a pele
reconhece
a pele, o dedo
encontrou
o seu anel.

Na urdidura da conquista, cabe ao poeta o papel de encontrar sempre uma forma para jogar o jogo da sedução com o Tu, a palavra. Mas a sedução de Albano, com ímpar sentido de partilha, atinge, também, outro Tu: o leitor que, enredado na dádiva, passa a deter o poema moldando-o ao seu "tu" interior".

«Como a palavra, Só o dardo /conhece o alvo. Só o dardo /sabe o nome /da ferida. /O seu lugar». E o lugar das palavras de Albano, sabe-o o poeta, é aquele em que a pele das palavras, das que ele libertou, encontra outra pele que passa a ser a sua casa. Deixem-se outros poemas:

À maçã
não lhe perguntes
quem é.
Outra forma
não há
de lhe reconhecer
o sabor
***
Arrefece,
dizias. É o frio,
disse eu,
que te acaricia
a pele. Que nela se aquece. Que nela
se esquece.

***
Sim, dizias tu, mas em seguida
corrigiste: talvez. Esta
é a única palavra
que não tem casa. Que mora
no intervalo
entre o som e o silêncio

***
Não digas
beijo, diz a boca. Não
digas rio, diz a fonte. Diz
apenas.


Palinódias e Palimpsestos, Albano Martins; Editorial Campo das Letras, Porto 2006


© Teresa Sá Couto

(to Artur)

«A Palavra Perfeita» de Albano Martins

A Palavra Perfeita é o título no novíssimo livro de homenagem ao poeta que há mais de cinquenta anos homenageia as palavras: Albano Martins. Com a chancela da Quasi, o pequeno, simples e branco livro colige as comunicações do ciclo de conferências sobre a obra de Albano Martins, promovido pelo Clube Literário do Porto, em 14 de Abril de 2007.

São seis comunicações de admiração e afecto, como só podem ser as palavras de todos os que se encontram com as palavras do poeta, mas também com a generosidade e rectidão deste homem beirão que, na linguagem do silêncio, se descreve assim: «Pertenço a esta/ geografia, ao lume branco /da resina, ao gume /do arado…».

Ao poeta e amigo Albano Martins, deixo o meu agradecimento por este livro que me chegou com uma dedicatória assinada exactamente no dia dos meus anos; tocaram as saudades e com elas o alerta das minhas promessas sempre adiadas de uma ida ao Porto. Do sul, em resposta às saudades, reedito neste meu espaço o meu texto sobre o seu último livro de poesia, o superior e imperdível Palinódias, Palimpsestos.


Maria Helena Padrão, Bernardette Capelo-Pereira, Fernando J. B. Martinho, Manuel Ferreira Patrício, Maria do Carmo Castelo Branco e Maria Lúcia Lepecki assinam os magníficos textos de homenagem. No final, o agradecimento do poeta, que espelha a amizade incondicional que ele sabe ter dos amigos. Um homem do sul, que se radicou em 1969 na cidade de Raul Brandão, «ancorada entre névoas e fráguas», mas também vaidosa do colorido do seu casario em tramas de poesia, que ele aprendeu a amar e que mostra, orgulhoso, da janela da sua casa, «do outro lado do rio».

Sobre si, diz-nos Albano Martins, em palavras que todos sabemos serem as palavras perfeitas que o definem:

Sou um homem do sul, da claridade sem mácula, dos horizontes largos, lavados, varridos pelos ventos da Estrela e da Gardunha. A minha infância é uma écloga de pastores, boieiros e ganhões. Cresci entre fetos, fenos, juncos; entre o coaxar das rãs, o trilho dos pardais, a cegarrega das cigarras, o grasnar dos corvos, o canto dos ralos, das rolas e dos grilos, o arrulho dos pombos nos beirais dos telhados. Andei aos ninhos, como todos os rapazes da minha idade. Percorri, em sobressalto, as veredas e atalhos dos campos, os labirintos dos bosques, os meandros das sarças; persegui perdizes no recolhimento estival das searas e armei ciladas aos tordos nos terrenos lavrados, sob as árvores; colhi amoras nas sebes perfiladas à beira dos caminhos e sorvi o pólen açucarado da flor das acácias. Tive uma infância feliz. Perfumada. Em redor da casa cresciam eucaliptos e castanheiros e, lá ao fundo, depois das hortas e dos lameiros, a ribeira desdobrava o seu perfil de enguia líquida, em cujas águas se dessedentavam salgueiros, choupos e amieiros. Quem conhece a minha poesia sabe que esta é uma reserva que trago escondida no bornal e me serve de sustento na “lôbrega jornada”, como dizia Antero.


© Teresa Sá Couto

domingo, 21 de junho de 2009

Prémio e eleitos

O escritor Rui Herbon acabou de me atribuir o Prémio Lemniscata no seu a escada de Penrose.


Alguns dados sobre o Prémio

O selo deste prémio foi criado a pensar nos blogs que demonstram talento, seja nas artes, nas letras, nas ciências, na poesia ou em qualquer outra área e que, com isso, enriquecem a blogosfera e a vida dos seus leitores.

Lemniscata: curva geométrica com a forma semelhante à de um 8; lugar geométrico dos pontos tais que o produto das distâncias a dois pontos fixos é constante. Lemniscato: ornado de fitas; do grego lemniskos, do latim, lemniscu; fita que pendia das coroas de louro destinadas aos vencedores. (in Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora)

De acordo com as regras, aqui vão os meus eleitos galhardos:
À Cláudia Sousa Dias e ao seu há sempre um Livro
À Isabel Mendes Ferreira e ao seu Piano
À Cristina Nobre Soares e ao seu Deserto do Mundo
Ao José Alexandre Ramos e ao seu que farei quando tudo arde
Ao Jorge e à sua Babel
Ao Bruno e ao seu Contracultura

Novidades Editoriais

História, literatura e actualidade: são estes os campos dos novíssimos lançamentos da Campo das Letras. Deixo, para já, estas breves notas.
Assinado pelo historiador António do Carmo Reis, chega-nos a «Nova História Universal». Trata-se de um compêndio de Nova História, porquanto é a «leitura do nosso tempo» sobre toda a História, sobre a «Vida da Humanidade no tempo e no espaço», desde 9000 – começo do Neolítico – até ao séc. XXI, ano de 2007. «A História é a escola do cidadão», disse Georges Duby; segundo o historiador, na introdução, este novíssimo título procura «o fio condutor da História – de toda a História que, sendo a de todas as Civilizações (cada qual com seu andamento e sua trajectória), é o drama de uma só Humanidade. Nesse esforço de síntese, procuramos saber quem somos – para assumir a nossa Cultura de cidadãos do Mundo».

Na capa de Margarida Baldaia, a ilustração «A primeira Viagem» de Cristóvão Colombo aludindo ao início da globalização, marca indelével da nossa Idade Contemporânea e reconhecimento de que a «História Continua». Para já, este documento de síntese da História, com escrita rigorosa, lesta e depurada, afigura-se imprescindível em qualquer lar e em qualquer escola.


No campo da literatura, contamos com «O Personagem na obra de José Marmelo e Silva». Um título saudado pelo seu carácter imprescindível, já que José Marmelo e Silva (1911-1991), incompreendido no seu tempo que, consequentemente, lhe ostracizou as letras, foi autor de uma obra fortíssima e inquietante, que está criticamente por explorar. Ver texto meu sobre uma obra do autor, AQUI.

São seis ensaios organizados por Arnaldo Saraiva que, segundo refere na nota introdutória, «permitem caracterizar bem a galeria de personagens das narrativas breves de Marmelo e Silva: personagens preferentemente jovens e preferentemente masculinos, geralmente em relação difícil ou traumatizante com personagens femininos”típicos” (a ingénua, a dissimulada, a puta); frustrantemente fixados em espaços limitados e limitantes, de que alguns fogem ou tentam fugir, como o da família, o do campo, o do internato ou o da caserna (e da Beira, da Madeira, de Coimbra, de Lisboa, de Aveiro, do Porto…); confrontados com valores, hipocrisias e preconceitos patriarcais, autoritários, religiosos ou sexuais, contra os quais podem inglória ou dramaticamente rebelar-se.».

A assinar os ensaios estão Maria de Fátima Marinho, na obra «Sedução»; Paula Morão, em «O Sonho e a Aventura»; João Camilo, em «Adolescente Agrilhoado»; Celina Siva, em «Anquilose»; Tânia Moreira, em «O Ser e o Ter»; Cristina Costa Vieira, em «Desnudez Uivante».


Na inquietação da actualidade, marca de um «planeta que não gira bem», temos o Ensaio «Planeta Sexo – Turismos sexuais, mercantilização e desumanização dos corpos», dito assim pelo autor, Frank Michel, antropólogo e professor universitário, com tradução de Vítor Dias:
«Metamorfose do capitalismo selvagem, o turismo sexual prospera sobre as ruínas das desilusões do “desenvolvimento” e do “progresso” e assemelha-se frequentemente a uma invasão do Sul pelo Norte. Ele permite aos ocidentais que, aqui ou ali, perderam a batalha da colonização, restabelecerem posições firmes nas suas antigas (e novas) possessões, com uma conquista em vista: a dos corpos.»

São duas grandes partes espraiadas por 214 páginas para, sem contemplações, se abordar o “mercado mundial” do turismo e sexo, para reflexões sobre «a crise de identidade sexual no Ocidente», a comercialização da mulher, o tráfico sexual no mundo – com «as crianças na tormenta» da dominação –, a «herança colonial nas mentes e nos corpos», «Africas», Marrocos, Cuba, «as raparigas de leste», o Sudueste Asiático e, na conclusão, o desassossego de uma pergunta: «A caminho de um turismo sexual de massas?».


© Teresa Sá Couto

Trilogia maynardiana

(clicar na imagem para aumentar)

Uma perversidade nunca vem só. Pois. E a Assírio&Alvim lança o cartaz/convite para anunciar a apresentação da Trilogia Maynardiana, no próximo dia 29 de Junho, na Fnac do Chiado, com outra imagem para nos baralhar a imaginação da figura de Peter Maynard.
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Lá estarei com o meu companheiro desta magnífica saga, o inextinguível José Xavier Ezequiel.
Estão todos convidados. Evidentemente.
Teresa Sá Couto

O meu texto da Apresentação, titulado Peter Maynard – Beretta e consciência,  editado n' A Phala

sábado, 20 de junho de 2009

O desaforo da escrita de José António Barreiros

Há um homem por detrás de um fragmento de vidro. Olha fixamente a realidade e, cansado de a ver, congemina o que fazer com ela. Pela acção do olhar fixo, o fragmento de vidro estilhaça-se em dezasseis fulgurantes luminescências de um caleidoscópio chamado Contos do Desaforo. O homem da singular urdidura é José António Barreiros e o livro que aqui referencio é de 2007 e é a sua estreia nas paisagens que «a imaginação escreve e a fantasia ilustra».

«Só escreve quem vê. Só vê quem afasta (e se afasta)», diz Gonçalo M. Tavares no prefácio, referindo-se ao método utilizado por José António Barreiros. E é esse jogo de movimentos de proximidade e afastamento da realidade que encontramos nas curtas narrativas que ousam xeque-mates de desaforo contra o lugar comum e a apatia. São dezasseis olhares insubmissos pintalgados de humor insuperável, para uma leitura imperdível.

«A única coisa de que preciso para ser feliz é de tempo. Muito tempo», lê-se no primeiro texto, distinto dos que se lhe seguem, pois é esculpido em jeito de justificação ao leitor sobre «a necessidade de contar». E são de tempo as narrativas, de tempo e dos arranques sem razão de que é feita a vida que é feita de tempo. Mas o que tem para nos contar o autor? Conta-nos que todos somos, num qualquer momento, intrusos no nosso lugar, que todos temos um armário, com mais ou menos gavetas, «imóvel e disponível» e uma vontade desmedida de desarrumar o mundo para, à nossa maneira, o podermos arrumar nas gavetas do nosso armário, assim aprisionando a realidade, fugaz e passageira, ou a ilusão dela.

«Um dia, o céu e a terra unir-se-ão numa cratera fatal. Até lá, eu escrevo isto, pensando na eternidade, como se nisso acreditasse», diz o autor e explica a «escrita obsessiva e simultaneamente necessária e inútil»: «Sem ela eu não teria um mundo que vivesse, devorado pela monotonia do óbvio, pela materialidade do evidente. E, no entanto, descontado um ou outro encantamento que isso provoque, nada mais volátil do que as palavras que aqui ficam, como um perfume que um momento de rua faz evanescer. No fundo, é uma escrita de nada, manuscrita em folhas de coisa nenhuma. Mas haverá mais substância no real do que esta, que não existe?»

Afastando-se da realidade para a apreender - «estar longe é isso mesmo, é verem-se apenas as grandes coisas» - José António Barreiros edifica o «sonho de uma casa de papel» e o leitor constrói a ilusão de nela se encontrar. É a luta com o tempo e a necessidade de se ser algo nele.

A semelhança com o real é mera ilusão

«Cruzo-me comigo em cada página, às vezes fingindo não me ver», diz o autor em nota introdutória, esclarecendo que escondeu «muito quotidiano, ficcionando-o, para parecer plausível». Munido de uma escrita elástica, capta acontecimentos correntes, personagens em trânsito, entre o ser alguma coisa e coisa nenhuma, aprisiona a fugacidade: «há, nos encontros fugazes, a força do desejo: neles se concentra a vontade de encontrar».

Também o leitor se cruza consigo ao encontrar-se com as personagens e com a ironia do olhar que capta a comédia humana:
«Fazem assim as famílias. Atestam os carros de malas e de miúdos, guardam zangas para a viagem e coisas fundamentais de que se esquecerão. Entre o parar para vomitar, que eles são pequenos, e para urinar, porque ela é velha, lá vão galgando quilómetros, para voltarem estafados de terem ido».

E lá está o encontro com a mulher que não consegue entender porque não pode deixar em testamento a parca reforma às suas galinhas, minudências afectivas incomportáveis num documento do Direito; com o professor de liceu que vem numa camioneta para Lisboa e regista a azáfama galhofeira de duas viajantes com o seu pacote de bolachas; com o réu silencioso que só nas alegações finais resolve discursar para mostrar que ao ouvir a convicção de quem o acusa convence-se do seu crime: «Se um homem se condena por não saber resistir à veemência dos que o acusam, se a verdade é a força da convicção com que é dita e proclamada, condenara-se.».

Reputado advogado criminalista, José António Barreiros saltou para o mediatismo da nossa aldeia por defender Vale e Azevedo, Pimenta Machado ou José Castelo Branco. Sobre a sua intervenção pela escrita de ficção, o autor diz num dos seus blogues que «se o editor o consentir e tiver leitores, comecei já um segundo volume». Aguarda-se. «Na representação cómica que é a vida», todos somos «arrumadores de almas», e esta escrita desafia-nos a arrumar as nossas gavetas ou a termos a ilusão disso, o que é a mesma coisa.


Outros blogues de José António Barreiros, aqui e aqui

Contos do desaforo, José antónio Barreiros; Editorial Presença, Lisboa 2007


© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 18 de junho de 2009

"Mulher e Arma com Guitarra Espanhola"

(clicar para aumentar)

Será esta a aparência de Peter Maynard, ele que se deu à perversidade de não possibilitar ao leitor nenhum indício do seu aspecto físico?

Eis, pois, outra perversidade da Assírio & Alvim, que hoje lança oficialmente o «Mulher e Arma com Guitarra Espanhola», último romance policial de Dennis McShade (Dinis Machado).
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"Dentro de momentos" estará aqui disponível o meu texto crítico da apresentação deste livro.
Ver textos dos anteriores na etiqueta Dennis McShade
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Teresa Sá Couto

terça-feira, 16 de junho de 2009

valter hugo mãe canta "governo"

Eis valter hugo mãe no caminho das palavras escritas para as palavras cantadas. O escritor integra o projecto "governo" (com antónio rafael, miguel pedro – ambos dos mão morta –, henrique fernandes – dos mécanosphère) e estreia-se como vocalista no tema «meio bicho e fogo», incluído na colectânea «novos talentos fnac 2009», agora à venda. Junto o vídeo oficial do projecto, que acabo de receber do valter. É uma belíssima animação de "esgar acelerado" (com desenhos de esgar acelerado e sara macedo).

Confiram, pois, e surpreendam-se:

GOVERNO - Meio Bicho e Fogo from 8 e Meio on Vimeo.

domingo, 14 de junho de 2009

Palavras de música e silêncio - poemas de Fernando Tordo

Não são cantigas que ele nos traz, mas é, e ainda, a música das palavras. «Quando não souberes copia» é o título do livro de estreia na poesia de Fernando Tordo.

Mas o que tem para nos dizer este homem de 60 anos e músico há mais de quarenta? O que registam as suas letras, agora cinzeladas no intimismo e no silêncio do poema? A sua poesia regista olhares e interpretações do mundo, marca do sentido global do homem. E, nas 86 páginas, poema após poema, o autor mostra que, se não se sabe contar o mundo, basta prestar atenção às próprias veias onde correm sentimentos e sensações, o medo e a esperança, o sonho e a perda: o rio interior de cada um é cópia do de todos, porque todo o homem é feito do mesmo barro.

Com o sentido da sua própria incompletude, o poeta parte no encalço de todos os homens para se construir a si, homem: «Aquele barco longe de mim/ e eu ainda mais longe de mim /por isso não sei da distância do barco até mim, a qual de mim. /Vejo-lhe o mastro, imagino-lhe o rasto, mas desconheço-lhe / o rumo. Ponho-lhe um dos de mim ao leme e com voz de bússola ordeno-lhe/ que procure outro. /Mas não me respondo /nem um nem outro /não nos conheço /e ao agarrar o leme que nos dei /afundo o barco /onde sem saber /estava o meu outro que só agora sei.».

Na procura humana, o poeta detém-se no mercado de Coyoane para lhe apreender as pessoas, a ambiência e os sentidos, como antes no mercado de Alvalade, porque «com sentidos, recordamos os /distintos rumos que atribuímos / à vida»; visita o café “El Pêndulo”, da Cidade do México, cheio de olhares de Frida Kahlo; observa a morte de Arafat e constata o mesmo silêncio: «Na Mukata ou no cemitério do Lumiar»; procura o sentido do medo em Ossétia, «no olhar daquele menino /que nunca mais encontrará o sentido /dos sentidos»; entra no comboio da sua condição, não sentado de frente para o destino, como lhe disseram, mas de costas: «teimo em dizer que vou acordado e quero saber /por qual diapasão afino /se bato de costas quando chegar /ou se esbarro de caras com o destino».

Numa escrita que se liberta do grilhão da rima, «até porque acordes não rima com liberta», assim segue a palavra solta pelos vários pontos do mundo, no rasto longínquo dos homens, ajustando contas com Deus, pedindo-lhe responsabilidades, mas, sobretudo, pedindo responsabilidades aos homens que banalizam a dor com que se constrói a indiferença. Neste sentido, esta poesia de Fernando Tordo envereda pela denúncia que desafia a uma mudança de comportamento, lembrando a que ele durante tantos anos interpretou nas suas cantigas. Correm, completos, dois desses poemas:

A linha do horizonte faz uma curva perigosa e está fora de
mão
A linha do horizonte, afinal, é um embuste linear e um
veículo mal conduzido
Quem lhe deu toda esta grandeza esqueceu-se de que lhe
estava a dar todo o poder. Ouviste, Deus?, é contigo.
Ou será que te enganaste e não percebeste que o horizonte
não é para ver de cima? Já não é a primeira vez que te
apanho em falso.
Repara nos homens.
Nas guerras.
Na fome.
Nos incêndios e nas cheias.
Queres pior?
Repara na mentira.
Queres um resumo? Repara em ti.
Já sei, já sei. Para estes casos, tu não és nenhuma entidade
superior, tu és dentro de cada um de nós.
Mas a multa do horizonte fora de mão, essa pagas tu.

****
Quantos achas que morreram no atentado desta manhã?
oito, 23?
e feridos graves?
71, quarenta e quatro? Nenhum?
Ao pequeno almoço, Manuel e Maria apostam via rádio.
Não jogam a dinheiro são pobres como a morte
apostam na morte a feijões para o jantar
à hora do pequeno almoço.
Amanhã, ligam a telefonia outra vez.
Quantos para hoje?
onze mortos e vinte e sete feridos, 18 graves, ou
cinco mortos e 39 feridos, nove graves?
O Iraque, a batota, a aposta. A sorte. O azar.
O mundo todo em jogo, Las Vegas todas as manhãs
da vida da Maria e do Manuel, surdos com as ondas
das bombas e da rádio.
Quando nos habituamos, apostamos a morte a feijões.
Quantos achas que são hoje?, quem perder faz o jantar.
Feijoada.



Quando não souberes copia, Fernando Tordo; editorial Campo das Letras; Porto, Maio 2007

© Teresa Sá Couto

quinta-feira, 11 de junho de 2009

O mundo nos seus pés - a excelência literária de Kapuscinski

Falar de Ryszard Kapuscinski é abrir a grande janela para o mundo, uma vastidão que ele traduziu numa magistral literatura de viagens. Falecido em Janeiro de 2007, com 74 anos, o jornalista e escritor da Bielorrússia deixou uma obra a ecoar pelos quatros cantos do globo, os mesmos que calcorreou para compreender a grande família humana, e dar-nos disso conta.

«Andanças com Heródoto» foi editado entre nós pouco depois da morte do autor, pela Editorial Campo das Letras, que tem a chancela de vários títulos de Kapuscinski. Com as Histórias do grego na bagagem, fica clara a síndrome incurável e contagiante da viagem: «a viagem nem começa no momento de iniciarmos a sua rota, nem termina ao chegarmos ao destino. Na realidade, começa muito antes e, praticamente, nunca acaba, porque a fita continua a rodar dentro de nós, mesmo se, fisicamente, não sairmos mais do lugar.».

Atente-se num «homem obcecado por uma ideia que não o quer deixar em paz. É vivaz, não consegue viver sem se mexer; anda sempre a mudar de sítio; onde aparece provoca inquietação e movimento!». Talvez Kapuscinski fale de Heródoto, que talvez fosse assim. Mas do homem que morreu há vinte e cinco séculos, e pioneiro na captura da globalização, pouco sabemos; sabemos porém que esta demanda inesgotável que se alimenta do próprio infinito é apanágio do repórter polaco, «atraído pelo além-fronteiras» de todos os mundos, sempre interessado em «novas pessoas, novos caminhos, novos céus», considerado um dos grandes mestres do jornalismo moderno, eleito em 1999 o melhor jornalista polaco do século XX, distinguido em 2003 com o Prémio Príncipe das Astúrias, e que presenciou 27 revoluções, viveu 12 frentes de guerra e foi 4 vezes condenado a ser fuzilado.

Escrever para existir

No presente título, Kapuscinski dá conta de viagens pela Índia, China, Ásia Menor e África, que fez com «a mala e o saco cheio de livros», entre eles o Histórias de Heródoto que o acompanha no caminhar e lhe possibilita fazer o diálogo entre os tempos, e que lhe foi dado pela sua redactora-chefe. Este último pormenor biográfico é o primeiro de vários que correm nas páginas do livro, o que o distingue dos outros títulos do autor. Como se quisesse mostrar-se ao leitor, confiar-lhe a alma do homem que conta as histórias que vê, que sente antes de ver e por ver, que enquadra a realidade abrindo-lhe novos horizontes.

Diz o autor que é na Índia que trava o seu primeiro «encontro com o desconhecido», e aprende a grande lição da humildade.
Depois do calor tórrido da Índia, ao chegar ao frio gélido da Polónia, Kapuscinski define-nos os sentidos da totalidade que se adquire no acto de viajar, como a junção de opostos dá plenitude aos seres humanos: «O mundo já não era monotonamente frio e nevado, mas duplicara-se, diferenciara-se: era, ao mesmo tempo, gelado e caloroso, branco de neve, mas também verde e florido.».

Com o mundo aberto «como um leque de temas», desata-se a escrita perscrutadora de espaços e formas de vida e tudo lido no comportamento dos povos, como no exemplo que se segue:

«O indiano é um ser descontraído, o chinês é atento e tenso. Uma multidão de indianos tem um aspecto disforme, enquanto uma multidão de chineses aparece em filas, disciplinada e caminhando ordenadamente. Sente-se que sobre a multidão de chineses há uma autoridade, um comandante, enquanto com a multidão de indianos está um areópago de infinitas divindades que não exigem absolutamente nada. Se uma multidão de indianos encontra algo interessante, pára e vai olhar e debater. Numa situação idêntica, uma multidão de chineses continua em marcha, firme, atenta às ordens (…)não tem tempo para festejar porque têm de cumprir directrizes de Mao ou de outro dirigente; em vez de venerar os deuses, pensam respeitar o protocolo e, pelos caminhos, em vez de peregrinos, desfilam brigadas de produção.».

E corre assim a escrita magistral, impressiva e impressionista:

De facto, ainda era noite fechada, quando as pessoas começaram a andar na direcção do rio. Alguns sozinhos, outros em grupo, clãs inteiros, colunas de peregrinos, inválidos com muletas, esqueletos de velhos levados às costas de jovens, outros simplesmente paralíticos, sofridos, rastejavam penosamente pelo asfalto gasto e esburacado. Juntamente com as pessoas, arrastavam-se vacas, cabras e manadas de cães magros e maláricos. Acabei por me juntar a esse estranho mistério.

E ainda, a descrição sinestésica e terrível, a ombrear com o Inferno de Dante:

Do outro lado do Rio Ganges, que aí é extenso e preguiçoso como um lago, há filas de fogueiras de lenha, onde ardem centenas, milhares de cadáveres. Quem estiver interessado pode, por algumas rupias, chegar ao bote até esse gigantesco crematório ao ar livre. Deambulam por aqui homens e rapazes meio nus, fuliginosos, que com paus enormes compõem as fogueiras. Trata-se de melhorar a circulação do ar para acelerar a queima, porque a fila dos cadáveres não tem fim e a espera é morosa. De vez em quando, esses coveiros empurram as cinzas, ainda com chamas, para o rio. Durante algum tempo o pó cinzento dança nas ondas, mas rapidamente desaparece no fundo do rio.
Diz-nos Kapuscinski que Heródoto «é um repórter de sangue puro», que toma notas do que «viu, aprendeu, ou simplesmente para não esquecer». Diz Saint-Exupéry que «Somos, uns para outros, peregrinos que, com pena, prosseguem caminhos diferentes para um encontro comum». Na síntese dos dois está Kapuscinski, o redactor e tradutor do mundo, que regista o tempo para fixar a memória, por saber que sem ela não se pode viver, que detrás do «não sabemos estende-se o território da ignorância, e ignorância quer dizer inexistência».

Andanças com Heródoto, Ryszard Kapuscinski, Editorial Campo das Letras, Porto, Abril 2007


© Teresa Sá Couto

nota: este é mais um livro em destaque na 79ª Feira do Livro do Porto

quarta-feira, 10 de junho de 2009

O país das maravilhas de Alice Vieira

Na vertigem da inovação que caracteriza as sociedades modernas, não deixa de ser surpreendente o sempiterno sucesso das narrativas populares. As crianças adoram-nas, os adultos rejubilam. Todos as adoptam, interagem com elas, recriam-nas e, assim, aperfeiçoam-nas «como um seixo rolado pela água, que pouco a pouco se torna mais polido e luzidio», como dizia Leite de Vasconcelos

«A Machadinha e a Menina Tonta, e o Cordão Dourado» são mais duas histórias tradicionais portuguesas que nos chegam da escritora Alice Vieira, ilustradas esplendorosamente por Bela Silva, num belíssimo livro cartonado, com chancela da Editorial Caminho. Mais dois daqueles seixos prontos a rolarem na água do crescimento, para que as gerações do futuro os possam polir e transmitir a outras gerações. Tem sido assim, ao longo dos séculos, a corrente alquímica, intemporal, autentica e viva das histórias populares.

Ambas as histórias são, à maneira das histórias populares de autor anónimo – passadas oralmente, o autor perdeu-se no tempo – narrativas curtas, cuja brevidade tem implicações estruturais: poucas personagens; concentração e indefinição do espaço e do tempo; acção simples e linear; fórmulas introdutórias – «A história que vou contar…», em «A Machadinha…» e «Era uma vez uma mulher…», em «O Cordão Dourado» –; recurso à repetição que facilita a memorização e concentra o leitor /ouvinte na linearidade da narrativa; têm um final feliz, uma compensação dada às personagens principais pelas suas atitudes.

A primeira narrativa conta a história de uma rapariga «Tonta, tonta» que todos diziam «fazer parte da família mais tonta à face da terra», e de um rapaz que «se tomou de amores por ela» apesar do pai o advertir: «mulher tola não faz casamento feliz». No dia de se marcar a boda, a «menina chora com medo» no meio da adega, por ter visto uma «machadinha pendurada no tecto» que iria cair e matar o menino que haviam de ter. Toda a família se pôs em «ais» pelo menino e o rapaz, dando credo às palavras que todos diziam, rompe o noivado para, anos depois, depois de ter vivido e ganho experiência do mundo, perceber que a «tolice da sua noiva» nada era «comparada com a loucura que ataca a terra inteira!». Porque a «machadinha poderia mesmo cair e matar o menino, o casal nunca teve filhos, e assim se explica, com recurso ao maravilhoso, um facto que causa dor nos casais e que é, fria e cientificamente explicado.

A segunda história, com a moralidade do exemplo, traz-nos a simbologia do número três, símbolo da perfeição e da concretização, que vem de tempos imemoriais e continua bem presente nos ditos populares como o «não há duas sem três». Com efeito, nesta história do «Cordão Dourado», é a terceira rapariga que mostra trabalhar com empenho, alegria e felicidade, e, por isso, a recompensada com um fino cordão de ouro, fino, mas “mágico” pois traz-lhe o amor e a riqueza. As suas duas irmãs desejavam melhor recompensa do que a que lhes era dada pelo trabalho doméstico prestado em casa da vizinha e, embrenhadas no materialismo não estavam preparadas para ensinamentos e recompensas.

Mostra-se que os cordões dourados são todos aqueles que se tecem com probidade, iluminados com o brilho da alegria de quem não pede contrapartidas para o bem que faz aos outros. O maravilhoso é uma forte componente da história com a vizinha a ser uma “fada” disfarçada, e o final à maneira da Gata Borralheira, agora com um Rei a fazer Rainha a rapariga que merece.

É louvável a dedicação de Alice Vieira na (re)elaboração de histórias populares – repeto esta terminologia em vez de histórias tradicionais, pois faço parte dos que defendem ser o termo “Popular” de significado mais extenso, cabendo nele toda a matéria literária que o povo entende e gosta, seja sua ou de outrem, antiga ou recente. Elas servem de entretenimento, a pessoas de todas as idades, e, mais especialmente, a crianças. O lúdico traz o ensinamento moral e a experiência susceptíveis de moldar o carácter e enriquecer o saber.

Histórias Tradicionais Portuguesas – Nova Série, n.º 1, Alice Vieira, ilustrações a cores de Bela Silva; Editorial Caminho, Lisboa, Janeiro de 2006


nota: este texto foi escrito em 2006, aquando do lançamento deste livro de Alice Vieira

© Teresa Sá Couto

terça-feira, 9 de junho de 2009

«O Sentimento do Porto» em palavras e fotografias

Cidade secular, de «alma funda e poética», o Porto escreve-se assim com Agustina: «Está ela como que inclinada numa cordilheira, com ar cativo, as faixas das ruas parecendo pendentes do casario desigual. A luz é doce sobre os telhados dum vermelho estagnado. (…) tem toda ela uma forma, uma alma de muralha.(…) Uma ravina profunda marca o entalhe do rio, cujas águas verdes da primavera reflectem o crescente da sombra dos rabelos de velas enfunadas. O sol parece baixo sobre a cidade segregada na pedreira; uma transcendência de melancolia paira e comove-nos.».

Com dois quilos de peso e um sentimento incomensurável, o Álbum de luxo «O Sentimento do Porto», da Editorial Campo das Letras, colige textos de escritores portugueses sobre o Porto, acompanhados de um trabalho fotográfico portentoso. A selecção de textos é de Arnaldo Saraiva, as fotografias do sentimento são de Luís Ferreira Alves e o Design de João Machado. Para aproveitar na Feira do Livro do Porto, onde esta dádiva estará com 40% de desconto - Livro do Dia - em 14 de Junho. Recorde-se, ainda, que a Editora está em vias de desaparecer e com ela muitos e magníficos títulos que tem publicados.

Logo na abertura do Álbum, num convite directo ao deslumbramento, Jaime Cortesão apresenta o Porto com a sua teatralidade e ardência barrocas, o espectáculo dos sentidos que tem na invicta o acervo mais importante do país, com a arte barroca a atingir o seu apogeu. Ex libris, são muitos, exteriores e interiores de igrejas – com exuberante talha dourada –, dramatizações em azulejaria branca e azul e a inconfundível Torre dos Clérigos, monumento visual que apela a todos os olhares.

Eugénio de Andrade regista o carácter da «cidade de Garrett», sólida nas suas convicções, e o seu carácter secreto: «O Porto é a cidade mais fechada das nossas cidades (daí parecer tão secreta), e eu nunca procurei ganhar a sua confiança – sou um homem do Sul, tenho de repeti-lo; quando a conheci já pertencia a outras luzes, e outras sombras». Porém, rendido à cidade, o poeta fala na troca do b pelo v, «da digestão sonolenta das tripas e do lombo assado regado a verde tinto», da «desventrada vitalidade da sua população ribeirinha, onde o descaro da linguagem se mistura ao ruído dos socos», e da descoberta que se faz da cidade, devagarinho, para se lhe apreender a «intimidade recolhida e serena que os seus nevoeiros espessos frequentemente escondem.».

Com Armindo de Sousa atende-se «o Porto primitivo» que se perpetua «na memória de visitantes e residentes», quando há oitocentos anos era «um muro fosco e diminuto, lá no alto, em torno da Pena Ventosa», quando a «cidade era o Morro da Sé». Percorrer aquele muro, guiados pelo arrepio dos ecos do tempo é a proposta do autor e do fotógrafo da pedra perene.
Alexandre Herculano transporta-nos para o seu (deles: do escritor e da cidade) romantismo medieval, numa explanação apaixonada do «Porto dos finais do século XIV» e que ainda subsiste entalhado na moderna cidade.

Acompanhados por imagens do Teatro Nacional de São João – exterior e pormenores interiores – o leitor segue pela mão de Camilo Castelo Branco que desvenda o «Porto do século XVIII» e a vivência do dia 15 de Maio, quando ainda havia Primavera na cidade, numa crítica plena de actualidade: «Quem, à face da folhinha, se vestisse de fresco em Maio, podia sair à rua trajado de holandilha ou vareja, que não entraria em casa a espirrar constipado pela súbita frialdade que o surpreendeu. A gente fiava-se dos sábios, os sábios da ciência, e a ciência dos factos repetidos. (…) Se algum sábio estivesse de pachorra para demonstrar a profundeza desta minha hipótese original, ficávamos convencidos nós de que a civilização do fumo e a dos arames eléctricos, afinal, acabariam de todo com a Primavera».

Almada Negreiros traz para «O Sentimento» o dinamismo e o colorido das gentes que se confundem com o movimento e a policromia arquitectónica das fotografias da Ribeira: «O equilíbrio dessas mulheres não tinha uma hesitação á altura de três homens da água, e em menos de três palmos de largura durante os dez metros. Acrescente-se a isto que levavam à cabeça as canastras, umas vezes vazias e outras vezes cheias até acima, em pirâmide, conforme iam ou vinham da fragata. Daquela vez não me lembro que descarregavam; apetecia-me que fossem laranjas».

Também Raul Brandão, entre fotografias do mar bravio a enrodilhar as rochas costeiras, redes e embarcações, detém-se no cenário líquido da cidade e faz brilhar o tesouro do mar que alimenta as gentes: «O fundo da catraia escorrega cheia de água e daquela vida que se debate, misturada e calcada, cheirando a frescum. É uma mescla de dorsos, de escamas, de peles com reflexos molhados, de tons escorregadios e metálicos…»

Estes são apenas ínfimos exemplos do pulsar de alma que enche «O Sentimento do Porto» de inúmeros matizes e outros tantos mistérios, em 260 páginas. Um livro apaixonante, bilingue – português e Inglês –, em dádiva também aos forasteiros, porque o amor só se vive se partilhado!

Nota: Em 1981, o Porto atingia o pico de 327 mil habitantes, para começar logo a descer para 302 mil em 1991 e para 263 mil em 2001. De notar que as quatro freguesias da zona histórica do Porto – Sé, S. Nicolau, Vitória e Miragaia – perderam metade da população entre 1981 e 2001, passando de 28 mil para 13 mil habitantes.


O Sentimento do Porto / A Feeling for Oporto, antologia de Arnaldo Saraiva; fotografias de Luís Ferreira Alves; Editorial Campo das Letras, Porto, 3ª edição Janeiro 2001


© Teresa Sá Couto

domingo, 7 de junho de 2009

Peregrinação a Macau - Poderes e saberes dos séculos XVI e XVII

Em 1555, o mercador de elite, aventureiro e escritor Fernão Mendes Pinto passava a carta de nascimento de Macau (Haojing). No mesmo ano, arrolando a magnificência do novo poderio português, Mendes Pinto dizia que «para escrever tudo era necessário que o mar fosse tinta e o céu papel» e, na Peregrinação, escreveria: «...este porto de Macao onde agora se faz a (veniaga), no qual sendo antes ilha deserta, fizeram os nossos uma nobre povoação».
Porto de portugueses na entrada da China, «fronteira múltipla, placa giratória de encontros entre diferentes espaços e mundos», o território projectou desde logo o seu carácter internacional e multicultural.Viajar por aquele tempo de poderes e de ideias que chegam ao século XXI encrostados de romantismo, mas também de realização, é a proposta do extraordinário livro «Macau: Poder e Saber – séculos XVI e XVII», de Luís Filipe Barreto, editado pela Editorial Presença.

Com o objectivo de traçar a história dos poderes e saberes de Macau nos séculos XVI e XVII, o historiador procura a História em quatro vertentes, como o afirma no prólogo: a «história interna de portugueses casados e miscigenados, de chineses de Macau e da restante China, de portugueses e outros europeus asiatizados»; a «história de parcerias em constante renovação entre grupos de chineses, portugueses e de outros asiáticos e ocidentais, de comunidades marítimas e mercantis nos Litorais da China e nos Mares do Sul»; a «história de redes e rotas, que trocam produtos e ideias, que ligam, á escala planetária, diferentes litorais, mercados e centros económicos e culturais» e, finalmente, a «história do primeiro século de vida social e intercultural de uma comunidade e território bem como das condições e dos antecedentes que a viram e fizeram nascer.».

Apoiado rigorosamente em fontes históricas chamadas sempre para o texto robustecendo-o e dando-lhe o colorido da época, «testando hipóteses e descobrindo problemáticas e documentos», Luís Filipe Barreto segue uma metodologia crítica e analítica que assenta em duas partes ou, como referido, dois livros: no primeiro abordam-se os Poderes económicos, sociais e políticos «que tecem a realidade de Macau», e o segundo livro colige criticamente textos e ideias sobre e produzidos em Macau, elaborados à época e que retratam o impacto intelectual do território nos anos quinhentos e seiscentos.

A aventura portuguesa nas portas da China

Se Macau nasceu em 1555 fruto de uma parceria sino-luso-nipónica que fez do território o «intermediário hegemónico do grande comércio internacional da prata e da seda», lembra-nos o historiador que a grande novidade asiática surgia em 1506 no Planisfério Anónimo Português, uma carta do mundo que representava a grande ousadia lusa e onde se registavam todas as novidades chegadas a Lisboa, e que contendo a mais antiga referência à terra de chins evidencia Malaca como uma porta da China e a sua posição frente à China Ming: «na legenda junto a Malaca diz: …Malaca. Em esta cidade há todas as mercadorias que vêm a Calecute. Ou seja, cravo e benjoim e linaloés e sândalo, estoraque e ruibarbo e marfim e pedras preciosas de muita valia e pérolas, e almíscar e porcelanas finas e outras muitas mercadorias; todas a mor parte, vem de fora, contra a terra de chins…».

Presentes em Malaca desde 1509, os portugueses aproveitaram a abertura do comércio marítimo para estabelecer um comércio profícuo com mercadores chineses. Refere o texto que é graças a um punhado de pioneiros, do seu trabalho de recolha de informações sobre o «Sueste Asiático insular e as linhas marítimas para o mares da China», que desfilam nas páginas deste livro, que a Coroa portuguesa resolve dar novos passos e envia embaixadas com o propósito de se «fazer uma fortaleza na China e a fazer a carga das mercadorias da dita China».

Porém, lê-se, «abertos os caminhos do mar», abriram-se «os caminhos das hostilidades» e as tentativas diplomáticas entre a China Ming e Portugal terminavam em «guerra total», em 1521. Em 1527 documentos indiciam o retomar de «laços marítimo-mercantis entre mercadores privados chineses e portugueses pois «estavam os chins desejosos de nós outros da pimenta e pau preto e puncho e incenço macho e marfim». Por outro lado, defende-se, «os grandes investidores e armadores privados chineses e japoneses foram obrigados a concluir que os investimentos corriam menos riscos em associação com os portugueses».

Para o estabelecimento de laços contribuíram as elites miscigenadas de Cochim, Goa e Malaca, apanágio dos portugueses e da sua capacidade de se misturarem com os outros povos. Começava então a surgir a formação da poderosa «parceria, informal e privada sino-luso-nipónica» que dominou o comércio no mundo. Refere-se que, também a posição oficial chinesa se alterara: considerava-se que «a potencial ameaça e perigosidade dos portugueses reside nos canhões e nas velas, isto é, no poder marítimo. Colocá-las em terra, é dominá-las: “...têm os chins os portugueses em pouco por dizer que não sabem pelejar em terra que são como peixes que como os tiram da água do mar logo morrem…”».

Também o poder Chinês vê nos portugueses um «intermediário imprescindível» e «tornam-se agora parte da solução do problema financeiro chinês», além de contar com a temível artilharia naval portuguesa para a defesa marítima de Cantão. Esta confluência de interesses, e a consequente pacificação do comércio, fez de Macau o consórcio de realização plena e o ancoradouro mais famoso do seiscentismo.

Também o credo lançado é uma importante marca de identidade da «cidade do nome de Deus, situada na ilha de Amacao, pertencente à China»: o cristianismo semeado pelos missionários jesuítas - chegam a ter poder e influência política e mercantil - fica enraizado no «húmus social», e é fundamental na construção dos laços.

São 410 páginas de uma viagem imperdível ao fascínio, que Luís Filipe Barreto oferece à História e Cultura Portuguesas.

Macau: Poder e Saber – séculos XVI e XVII, Luís Filipe Barreto; Editorial Presença, Lisboa 2006


© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Feitiços e maldições de valter

Mariana Alcoforado urdia o desamor no cárcere religioso: «picava bonecos com cara de homem, e queimava-os no forno onde fazia os assados. (…)à noite, também sem mais nada, mariana levantava-se sonâmbula e convivia com os bonecos com cara de homem, beijando-os e sentindo-lhes o corpo com os dedos trémulos, talvez por isso, eles espantados, ardessem confusos sem nunca acreditarem no ódio que ela queria sentir pelo marquês».

Assim nos surge valter hugo mãe no livro de maldições: fulgurante, dramático, visual, alegórico, enigmático. São 52 poemas em prosa, tanto breves quanto intensos, com um feitiço imperdível. Sobretudo, porque estas maldições alvejam a normalidade, a modorra, a palavra do costume. Inconfundível marca do autor, esta é uma escrita proibida para leituras sossegadas.

Linguagem expressionista

Neste livro de maldições fulgura uma vez mais uma escrita expressionista, onde ressumam Kafka e Paul Klee (pintor e poeta), nas construções alegóricas, nos processos, nos símbolos utilizados, na atitude crítica e interventiva. As palavras de cores puras conjugam-se em imagens abstractas, conjuram-se no lúgubre e no iluminado, contorcem-se num dinamismo inesperado, num emaranhado visual de alienação e intensidade psicológica.

Desfocar o real para apreender a sensação, aprender o pássaro para saber o que há «entre a terra e o chão», parece ser o método para o conhecimento: «as coisas ensinam o chão. explicam-lhe quanto há entre terra e céu, o caminho livre do voo, a vista elevada de deus. eu vejo anjos e os anjos são das coisas aladas os sonhos mais completos. erguem-se braçados de asas a educar o vento, percursos de sopro que se abrem nas dimensões, e luzem nas nossas cabeças como homens enfim pássaros. como se as árvores pudessem ser casas nossas e nada nos acordasse na força do frio ou da chuva. como se nos cumprimentássemos em pleno ar, seres tão leves atarefados com mais nada. seríamos só pulmões cheios, máquinas de pairar, alegres imprecisões ao alto.»

Gnóstico, o símbolo da árvore surge fortíssimo como coluna vertebral da aprendizagem: «tudo o que as árvores fazem é pensar. ficam generosas à espera de chegar a uma conclusão. e se morrem não é absoluto que tenham tido resposta. deram sombra, pássaros, fruto e vento, mas podem partir quietas, como quem tomba dentro de si mesmo, com felicidade pelo que já passou e nenhuma mágoa, só aceitação sábia do tempo».

Abstracção do corpo, corporização do abstracto

Também o corpo atinge a abstracção, sujeito ao processo de deformação subjectiva. Surgem homens de grandes dimensões que não cabem nas suas casas, ou nos seus corações, homens que habitam paredes movediças – a fazer lembrar as casas giratórias das telas de Paul Klee –, mulheres excisadas, crianças sem um braço no meio do peito, por isso incapazes de agarrar nos corações umas das outras. Todavia, também se dá o inverso, com a figuração de sentimentos: a maldição da dor e da saudade é configurada num grilo lambuzado de sangue que passa por um pequeno buraco do seio de uma mulher – a remeter-nos para Kafka e a metamorfose de Gregor Samsa em insecto.

Também o amor eterno surge de forma inusitada e inebriante como um corpo desprezado, mas com nota de esperança:

«inventaram um amor eterno. trouxeram-no em braços para o meio das pessoas e ali ficou, à espera que lhe falassem. mas ninguém entendeu a necessidade de sedução. Pouco a pouco, as pessoas voltaram a casa convictas de que seria falso alarme, e o amor eterno tombou no chão. não estava desesperado, nada do que é eterno tem pressa, estava só surpreso. um dia, do outro lado da vida, trouxeram um animal de duzentos metros e mil bocas e, por ocupar muito espaço, o amor eterno deslizou para fora da praça. ficou muito discreto, algo sujo. foi como um louco o viu e acreditou nas suas intenções. carregou-o para dentro do seu coração, fugindo no exacto momento em que o animal de duzentos metros e mil bocas se preparava para o devorar».

Livro de maldições, valter hugo mãe; objecto cardíaco, Vila do Conde, 2006


© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Cartografia da perda - Albas de Pedro Sena-lino

Bastam dezoito poemas para Pedro Sena-Lino cartografar a «Zona de perda» e estabelecer encontros raros com o leitor. Sufocado por «um nada imensamente tu», o sujeito poético desvela, gradativamente, o mapa da alma abandonada. «Queria morrer contigo /não queria morrer de ti», refere o longo diálogo com o Tu ausente – e a partir dele, o diálogo com o Eu –, e o Leitor, enquanto procura o projecto de sobrevivência pós perda; o subtítulo «livro de Albas», evidencia a construção de um compêndio sobre o acordar e a revelação: no escutar do silêncio que dá forma à emoção mais íntima; no acordar do leitor, alvo, emboscado e reflectido no movimento de noites e madrugadas.

Disse Goethe: «Não és mais que uma sombra na noite da terra /enquanto não tiveres compreendido esta lei: /Morre e transforma-te». Pedro Sena-Lino comprova que a Poesia é o gládio, corpo da alma, lugar onde se morre, renasce e se redime.

Segundo Roland Barthes, em Fragmentos do Discurso Amoroso, o reino da memória é uma arma de ressonância, e «a ressonância é a prática zelosa de uma escrita perfeita, a pureza de uma escuta que dói». Assim entendemos o discurso íntimo e emotivo, que nos traz Pedro Sena-Lino, erigido pela memória da perda, desde a sua origem, desde o momento do êxtase, do lugar fundo onde se ouve «morrer uma noite» e se escuta o «eco de corpos»:

chegaste donde o medo tecia os meus cabelos
donde os pássaros ardiam a voz
donde só o silêncio se desconhecia
era tão larga a morte
que não se podia ver dos meus olhos
chegaste quando o fim sangrava dos meus braços
a casa soterrou-me dos teus passos
terra de mim todo
chegaste pelo coração de água da noite
quando o mistério escorre em grito pelos telhados
e Deus se desabita
chegaste tão de dentro de mim mesmo
que agora a morte me nasce na garganta
a noite e o meu rosto são alguémque eu próprio desconheço

Roland Barthes considera o processo onde o «outro está ausente como referente, presente como interlocutor» uma «singular distorção» que origina a sensação de se estar prisioneiro entre tempos. No caso deste corpus poético, o Eu está prisioneiro entre o passado da perda, o presente insustentável, e o Futuro povoado de medo e descrença: ontem foi o amor, hoje é a perda, (tempo de todos os silêncios e ecos) e, sendo hoje «o futuro de ontem», lê-se: «com as duas mãos amanhecidas em ontem /despeço-me de ti».

Porém, neste discurso de recordação e morte, que arrasta o sujeito poético para o interior onde se define o abandono, cintila «uma sede iluminadamente branca»: «o verbo do amor é transe e transito /mas o que em nós é antigo como o sémen /procura inclinações de sede até tocar o início /vento e água e terra ansiosamente recriada /o próprio modo de Deus se encontrar //perderam-se as paredes do meu corpo /quando chegares existirá um amor /mais alba que sermos manhã /e fabricarei um mundo /onde não nos possa morrer».

À procura de mim, através de ti…

Se todo o discurso da ausência só pode ser feito por quem fica – o Eu poético –, é, todavia, a partir do Tu ausente, objecto da perda, que ele se constrói:

da minha janela vê-se uma espécie única de medo
chama-se eu mas diz-se tu
e por vezes nós quando prende a vida
a algo tão falível como a vida


No diálogo com o outro, comprova-se a angústia, reconstrói-se o que se perdeu, faz-se o luto e edifica-se a vida. E a palavra está lá para registar tudo isso:

e agora apenas as trevas pronuncio e caminho
há de nascer uma escada onde era o amor
um livro de albas que nunca foram noite
a sede de outros há-de beber a luz
que tu nunca me abraçaste.


Com estes «outros» que hão-de «beber a luz», mostra-se que a revelação do Eu não se extingue no diálogo com o Tu ausente, e um outro Tu, o leitor, parece surgir como motor da revelação e cúmplice da emoção:

um dia a noite há-de dizer-te
como o amor escrevia no meu corpo


E a esse novo Tu, alerta-se para o sentimento da perda: «subirás as escadas fantasmas da posse», conhecerás «Os sítios perdidos de tão tidos / as noites que doeram por se abraçar», «passarás pelo fogo das palavras mentidas», «sentirás a ausência de ti», «verás os selos do coração desfeitos, verás o teu nome medido em sílabas de pânico» que têm o «sabor cru dos peitos esmagados pela ausência /o som a fogo interior de tão imaginado /e andarás na memória como numa dor intrusa», «com as mãos do desejo tocarás no fim», «um dia encontrarás o amor onde ele não te encontre mais».

A esse Tu fica também a certeza de que não está só:

Quando caminhares na dor como um chão
estarás de pé na morte onde te vejo
na cal viva das paredes dos ossos
o teu abraço chegará a mim
como um rio acordado de frio.

zona de perda - livro de albas, Pedro Sena-Lino; objecto cardíaco, Março 2006

© Teresa Sá Couto