sábado, 30 de março de 2013

Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo, Nuno Dempster


 Texto editado no sítio da Orgia Literária , a 26.03.2013.
«Entremos pelo mito de Inês dentro». Chame-se o irreal, o que se quer «do exílio da rainha degolada», e desvie-se o poema para a verdade do presente. O poema longo Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo, de Nuno Dempster, sabe que as palavras criam realidades e mostra-nos que o que «Interessa é o olhar com que fitamos»: um olhar que liberte a alma de que fala o mito, limpo da ilusão mundana e de denúncia da vida informe dos homens.
 
Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo compreende um conjunto de poemas, na justeza e vivacidade do decassílabo, mosaicos unidos pela memória e pelo olhar, entretecidos por um vaivém incessante, pelo que devem ser lidos como um poema longo. A indústria desta escrita conta com o efeito estético da clareza vocabular, recorrente em Nuno Dempster, que dá ao poema dinamismo, fluidez, estremecimento, desagregação, inquietação; as palavras são depuradas e rigorosas ou, mais exactamente, como é dito pelo autor no poema «Poética», incluído no seu livro Dispersão, Poesia Reunida, de 2008, as palavras são «tão exactas /quanto é possível ser exacto um pássaro /que não é bem pássaro», e «da experiencia íntima se libertam /e iluminam e falam as palavras, /e tão cuidadosamente que esse pássaro /torna a ser, daquela imagem, o pássaro /que voa, verdadeiro, no poema.» (p.235).
 
 
 Na construção da verdade, imaginar é ver e ver é conhecer: o sujeito poético vê «cenários apagados» de um tempo longínquo, imagina a vida interior da qual a História só «escreve equações», ouve diálogos que não vêm em «nenhuma das crónicas do reino» e recria a «poesia, /que se gera no sentido inverso à vida: /Inês num paraíso que não há, /caminha virtual entre poemas.». Se ver é conhecer, conhecer é agir: o que interessa de Pedro e Inês ao poema é a sua condição de clandestinos, porquanto «tudo nos garante que na vida/ foram somente humanos e, por isso,/ menos sentimentais do que se sonha» (p.32); soltam-se os mecanismos para dar voz ao grito, à «urgência da denúncia» que bate nas «têmporas» do mito e do poema: o intenso presente resgata Pedro e Inês da «meia luz da lenda», «o sol devolve-os ao quotidiano» presente, o poema move-se de um tempo para outro, de um lugar para outro, de um corpo para outro: «Pedro e Inês estão vivos e caminham/ pelas ruas urbanas, são a imagem / que salva da tristeza quem não vive /como eles se entregaram: doidamente.» (p .30).

Heresia há seiscentos anos, o amor louco, trangressor, surge no presente como impossibilidade: «Pedro e Inês são o exemplo de que só /um grande amor exige amor maior, /e assim a perfeição da vida humana, /não o quotidiano que nos rouba /a existência de modo tão anónimo./”Pois”, respondo. “Percorram a cidade / e entrem em um dos prédios suburbanos /à hora do jantar. O cheiro a fritos /é coisa que não liga com amor /de príncipes. Se tanto, Pedro e Inês /são um casal de amantes sem história /que chegou de autocarro e ninguém viu.” (p.31).

Do par dos amantes do mito, é Inês, «ícone do Mito», «razão do Mito», a «nossa Matriz», que detém uma espiritualidade superior, uma verdade oculta que o texto aclara: Inês, a quem deveria passar «pelos olhos uma sombra, /como sucede a todas as mulheres /em dias negativos para o amor», representa «a vida sucessiva das mulheres», é a mãe infeliz que, «ajoelhada, chora pelos filhos/e por ela», numa prece onde «também estão as outras/mulheres que morrem por amar», Inês «é o exemplo da morte delas todas: habitam o poema, reclamando: /”Testemunhem-nos sempre com revolta». (p.49). Se o poema se assume como voz de revolta, também incita o leitor à reflexão de que sem se repensar o amor não haverá espanto: «Senta-te no silêncio das arcadas /místicas da abadia. Frente a Cristo, /vai pensando nos ossos de Pedro e Inês / […] /Medita então na morte dos amantes / […] e pensa o grito /que alguém deixou no livro dos profetas. /Sai então do mosteiro, observa a praça /[…] Onde estão Pedro e Inês? Ninguém os vê./ Um a seguir ao outro, a morte teve /a carne luminosa dos seus corpos /e hoje os ossos antigos nada dizem: /o presente é o largo do mosteiro/ e a lojista ao fundo que dispõe /a tralha de recuerdos sempre iguais, /e nada irá surgir ali que espante.» (p.57).

O próprio eu acaba por ser envolvido nas malhas do olhar severo e amargo que resulta do conhecimento da realidade, característica que atravessa toda a poética de Nuno Dempster. «Criei-te de alegrias e tristezas: /de tantas circunstâncias, tantas coisas. /Já não és senão como te sinto.», escreveu Konstandinos Kavafis. Em Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo, a memória desenha sombras que já não são as das figuras do mito, mas as de uma interioridade avassalada pelo desencanto, pela descrença, pelo niilismo: «com as palavras nuas deste tempo, /forma-se o desencanto dos poemas/ e vai-se refractando a luz da lenda, /até sobrarem só coisas vulgares», ou, ainda, «As lendas são ingénuas como sóis /em um caleidoscópio adolescente […]/Agora que perdi todo esse encanto /em ondas sucessivas de descrença […] /Pedro não a acompanha, não o vejo,/afastou-se de Inês que vai morrer, /não sabemos ao certo porquê. Usa-se, /na história dos compêndios escolares, /a mesma manha impune das notícias: /esconde-se a verdade em verbos ocos /e mata-se nas frias madrugadas.» (p.46). O futuro é, assim, uma figura de ausência, interrogação e até dissolução, esta presente na diáspora com peso de exílio: «quem sabe um dia emigrem como povo /e fiquem pelos livros sem voltar».

Ainda no contexto dramático da existência, o poema, com olhar largo, nomeia os assassinos do amor: a vida, a guerra, a indiferença, o desprezo, a falta de esperança, a descrença, o desencanto: «[…] já nem se ouve o grito degolado /com que a vida termina de repente. /Há muito se tornaram em costume. /Assim Inês, assim os outros todos /que a História não regista. Todavia, /vivemos sobre mortos que nos gritam /quando acordam. Ines e Lorca gritam /(“se le vio, caminhando entre fuziles”), /grita ainda no Prado o homem de Goya, /longos versos de Sena aos fuzilados. /Revolvo-me ao ouvi-los, Inês bela. /Não conheço justiça que os redima, /e, com eles, os outros mortos todos /que nenhum deus salvou da madrugada.» (p.50). «Seiscentos e cinquenta anos passados,/ tudo pode mudar-se», diz-nos o texto que, estribado na memória, cumpre com mestria a viagem pelo real transportando a consciência de que a literatura pode e deve ser inovação. A partir de agora, qualquer incursão artística ao mito inesiano tem de passar, obrigatoriamente, pelo poema Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo, de Nuno Dempster.

Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo, Nuno Dempster, Edições Sempre-Em-Pé, 2011
Outros textos meus sobre livros de Nuno Dempster, AQUI
 
© Teresa Sá Couto