Nos joelhos do silêncio nasce a palavra iluminada. Dessa textura de solidão, de desamparo, irrompe, soberana, a esperança no futuro. Heliodoro Baptista é um arquitecto da luz que brota da grande mãe humilhada: África. Porque «os continentes são da mesma raça» e «os homens do mesmo barro», a aldeia e a estrada deste poeta moçambicano são também o nosso sítio e um caminho nosso. Tanto mais que a palavra que caminha é de expressão portuguesa.
Mia Couto, que prefacia este livro, escreve que «Nenhum silêncio cala a poesia. A única verdadeira prisão de um poeta é não haver luz. Essa luz que constrói a vontade de futuro. E essa luz está dentro dos poetas.». Heliodoro diz que «Depurar a escrita, a casca das palavras, é ensinar ao leão que temos no peito, a comer, sempre primeiro, o fígado, mas especialmente o coração.». Digo eu que só a poesia entende o coração. E esse entendimento tem-no este livro.
A voragem da palavra quando há fome de viver
Ajoelhado no chão africano, a prece do poeta tem a raiva da insubmissão e o arrebatamento apaixonado pela terra: «Moçambique expatriou-se. É possível / encontrá-lo num mapa por fazer. / Ou, numa esquina do mundo, a tocar / viola com os dedos dos pé», porque as mãos lhe foram usurpadas. Sempre país dos outros, território a quem «enforcaram o céu e o sol», é uma terra, «um lugar de abandono, / Naufragado: sem rios nem mares», onde não há nem mortos nem vivos, onde se construiu «o limbo da estupidez».
Porém, Heliodoro é o poeta que sabe que o poema é uma arma carregada de futuro. E, «sonhador subversivo de verve em riste», «Coaxa o poeta em frenesim demencial. / Ele, ontem lagartixa, é já desenvoltura.». Entende-se porque escolheu algumas palavras de Gabriel Celaya, para introdução da sua própria poesia. Diz este autor que a poesia «Son gritos en el cielo, y en la tierra son actos.(...) canto respirando». É pela palavra que o poeta moçambicano respira. É com ela que se liga à vida. É com ela que reaprende o amor: «Queremos confiar no amor (melhor, na paixão!) / sem nada perguntar: apenas saber, pedir e receber / um pouco do que damos. Que não nos roubaram!». E assim, num diálogo de sabedoria, o poeta abarca o mundo para revelar a esperança: «Nos meus escuros acrílicos impera o pincel; / só a alegre voz ressumbra: Bebe o mel do fel!».
Os titãs do poder: há os políticos e há os poetas
Perseguido e aprisionado na sua terra, nela persistiu, teimosamente, sem nunca a abandonar. Mas a poesia faz-se de pão ázimo, e em Heliodoro isto é manifesto: «Recordo o tanto mal que me fizeram/ como se bebesse um misterioso vinho. / Até à última gota da garrafa.». Contra os poderosos, tem o fel que não guarda, pois tem também a palavra que o depura: «Batem à porta; uma pancada com odor perverso; /pombos em voo, se pintam de êxtase do poente. / Já não há nada debaixo do sol, excepto este verso, / fugaz calorescência, impressão digital de mim».
Mia Couto diz que Heliodoro dá visibilidade aos recantos sombrios da alma moçambicana. Com efeito, ele parece estar «onde o coração do povo chora / águas das lágrimas da chuva», numa cumplicidade com o povo que «está nas mãos / dos que fazem orgias com as barrigas da fome». E esclarece que «Se os governos não decapitam o povo / é porque, sem ele, nem se designavam: / até os abutres bateriam em retirada.». O poeta conhece «homens e mulheres que, na água / afugentam até os maiores crocodilos.». Sabe que «Hoje, os cães passam e a caravana ladra.». Por isso, «solta a profecia da indulgência e do amor. / Não devemos ter medo nem da pobreza; jamais / da prisão e do exílio.».
Perante os opressores, o «Desfecho» só pode ser assim: «Como em outros poetas, também em mim, anuí: / não há a probabilidade de me render. / E se o horizonte oscila, em seu remexer, / me cago no tédio, para todos e para ti!».
Nos Joelhos do Silêncio, Heliodoro Baptista, Editorial Caminho, Lisboa, Junho de 2005
© Teresa Sá Couto