(texto editado dia 22 de Fevereiro de 2010, no sítio da Orgia Literária)
Em Londres, o novíssimo poema longo de Nuno Dempster, desfila a humanidade imperfeita e a aventura de viver nessa imperfeição; libertam-se vozes, intelectualiza-se a emoção, redimem-se ruínas e mostra-se que «num pint de cerveja» e num poema «pode conter-se o universo».
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Poema sobre a errância humana, Londres é o «cruzamento / dos mais insuspeitados caminhos / e as estradas que sustentam / o planeta na sua teia passam todas por aqui», o ponto de encontro da humanidade chegada de avião ou «nave» – a «Barca do Inferno de Gil Vicente» –, gente que não conhece Deus e só conta consigo mesma na aventura turbulenta de existir. São os «incansáveis cavaleiros na Terra», com o carrego da sua tragédia, que desembarcam no clarão desta escrita, porque a verdade não pode ser dita doutra maneira. São eles que aqui se invocam, é a vida deles, e o seu espírito, que aqui se comunga; uma «tarefa de barco» feita compromisso de escrita de Nuno Dempster: «e chamo: / – Ei, aonde ides? Esperai, esperai, bebei. // Nunca desejei tanto como hoje ser um de vós. / Por mais trágico que se torne o destino, / não me importava de sê-lo continuamente convosco, // eternidade sem Deus, // a eternidade calorosamente humana que guardais». (p. 15)
Ancorado na noção de que existir é ser personagem, na ideia de palco onde a humanidade desfila sob orientação dum «dramaturgo lúcido e honesto», este poema aproxima-se da poesia dramática, a qual tem em Shakespeare insigne representante; se, em Como Vos Aprouver, o autor inglês se detém na ideia da representação e da artificialidade da vida, retratando com pessimismo as sete idades do homem – «O mundo é um palco / E todos os homens e mulheres simples actores: / Têm as suas saídas e entradas, / E, em vida, um só homem tem vários papéis»(1) –, Nuno Dempster distende aquele princípio, conferindo singular unificação a um texto que denuncia o arruinamento humano: nesse mundo concentrado que é Londres, «é possível olhar os actores / que desfilam rumo às suas vidas conturbadas», mas cada um de nós só pode representar uma vez, condenados a assistirmos à nossa própria condição.
Olhar os outros – «o olhar procura impaciente o sinal de outra humanidade. / A sede de mundo é inextinguível» – ir com eles e ir neles suscita outro princípio da poesia dramática: a despersonalização do sujeito poético que apresenta estados de alma pensados e não sentidos, porque os compreende; o que sente com a imaginação a alma das outras personagens, fazendo delas vozes íntimas (e aqui ecoa a poesia de Konstantinos Kavafis, ainda que com sentidos diversos): «em que pensará a hospedeira de bordo? / A dor amaciou-lhe o rosto e tornou-o belo»; «Aonde ides, aonde ides, / ó raparigas celtas, ó filhas de viquingues?»; «de que murmúrios nasce a penumbra da vossa intimidade?»; «Irei em vós?»; «Não sei para onde me levam. / Para a vida, decerto para o sonho que guardam / e os sustenta e lhes dá vigor, / em enormes copos de cerveja. / Chamam-lhes pints. / Um pint é mais de meio litro de afrodisíaco.».
Com espinhosa lucidez – porquanto «A descoberta da humanidade / é um acto cansativo e doloroso, // e a lucidez não serve de nada, / excepto para morrermos / todos os dias pelos outros» –, a penosa lucidez dos olhos abertos – «Vêem como eu vejo / o fluir da multidão diversa? // Vêem quantos rostos a formam, / tão vária que em todos sigo?» –, Nuno Dempster cata na bruma todas as linhas para as esculpir na escrita, o que é, aliás, marca do autor, ao mesmo tempo que mostra que vermo-nos nos outros é também fundamento de solidão; e se a solidão medita, a meditação encontra a consciência das limitações, das impossibilidades, adensando-se o sentido trágico da vida: «Assalta-me não ser o que vejo, / não me diluir no que olho.». A escrita surgirá, assim, contra todas as impossibilidades: «nos olhos vai a claridade dos poemas, / a essência do absoluto impossível». Neste programa do olhar irrompe, fortíssima, a atitude indagadora e questionadora das convenções, a crítica sobre a realidade, a delação social e económica, feitas matéria de reflexão:
(…) Afinal, em Lisboa, os sem-abrigo cobrem-se com o Público,
lembraria uma turista portuguesa,
lavando as mãos diante de vagabundos intoxicados
de álcool e de fome,
provavelmente de solidão,
e sem dúvida de maldade.
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Não estou a vê-los em Portugal
agasalharem-se do frio com o Diário da República.
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Ainda que o imaginassem, não o fariam com medo
de a polícia os expulsar da casa que não têm
e de os fiscais lhes cobrarem o imposto de habitação,
e assim o meu país europeu mantém-se
na cauda dos índices de conforto.
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Eis as notícias que me chegam a Londres
da capacidade de revolta nessa parte ocidental da Península Ibérica. (…) p. 17
Em Londres, tal como na restante obra de Nuno Dempster, estabelece-se uma relação complexa entre sentir e pensar: a referida lucidez do olhar no aprisionamento da realidade não significa ausência de emoção, mas sim de emoções intelectualizadas, pelo que irrompem no texto através da recordação, através da memória. É, ainda, pela memória que se faz a confluência dos tempos – passado, presente e perspectivação futura – e se encastoam a ironia e a descrença: «Virá o tempo em que filhos combaterão os pais, / virá o tempo em que as crianças e os pássaros serão esmagados, // mas virá o dia em que a subversão do humano não mais é possível, / e das cinzas, como Hórus, / um brado se levante e proclame “Basta. Chegámos ao limite” / e alguma luz nova, ou paz inteligente, ou vontade extrema / nos obrigue a reaprender a simplicidade de Tebas.». (p. 35)
Com Londres, texto de uma notável robustez poética, Nuno Dempster confirma a sua importância nas modernas letras portuguesas. «Não é possível ser-se pessimista, / Tudo aqui é permitido imaginar, // menos horários e aeroportos», lê-se no poema marcado pelo pessimismo que se redime, fulgurantemente, na escrita, explicado, também assim, pelo próprio texto: «Tudo é possível no que escrevo, / mesmo Homero e Shakespeare confabularem / cheios de entusiasmo pela humanidade». (p. 39).
(1) William Shakespeare, Como Vos Aprouver, Campo das Letras, 2008
Nuno Dempster, Londres, &etc, 2010
Dispersão
Recordo que Nuno Dempster editou, em 2008, a sua poesia reunida com o título Dispersão e chancela das Edições Sempre em Pé. Um compêndio de uma poética singular, cuja análise trarei aqui a curto prazo. Com agradecimentos ao Nuno Dempster pelo pronto e generoso envio deste livro bem como o Londres, deixo dois poemas do Dispersão:
Gaivota de poemas
Era ainda a gaivota ideal e branca,
aquela que pairava sobre as ondas,
e o meu olhar seguiu-a vagamente,
longe, na praia, de onde o entardecer
levava os guarda-sóis e sua gente.
Seria uma gaivota de poemas,
ignorante dos restos de que as outras
gaivotas pós-modernas se alimentam.
Porém, deserta a praia e o Mediterrâneo,
acercou-se da areia e, já pousando,
devorou com as mais o lixo todo. (p.41)
A Lua
Tenho de repensar a minha vida,
disse-me, e acrescentou:
ser-se feliz é não ter esperança.
Lembrei-lhe o sol e o mar
que hoje vejo sozinho nesta praia,
e respondi não há quem viva assim,
ainda que a esperança não exista.
Mas vi-a olhar o céu,
dizendo que sorte é termos a Lua
- rege-nos as marés e o corpo -,
e que amava o seu rosto claro,
um espelho de luz na noite
onde se olhava já sem sonhos.
Nem suspeitou ser isso a esperança,
a lua e os espelhos sem mais nada,
a música que ouvíramos
e o mar além, atrás das dunas. (p. 63)
© Teresa Sá Couto