quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Novo livro de Henrique Normando

Titula-se não acordes o gato e é o novíssimo livro de poesia de Henrique Normando. O lançamento está marcado para  o próximo dia 27 de Fevereiro, no Ateneu Comercial do Porto, pelas 16H30

(clicar na imagem para aumentar)

Este novo título de Henrique Normando (pseudónimo de Manuel H. Martins de Campos) segue-se ao Esfinges, primeiro livro de poesia do autor, publicado em Outubro de 2009. Formando de Mestre João Hogan e Maria Gabriel, Henrique Normando cria palavras com o olhar artístico, com a ductilidade das tintas; o resultado é uma poesia que investe no real, explorando-lhe os mais diversos sentidos, e, a partir dele, solta-se em movimentos e urdiduras  inesperadas, sempre à procura das novas potencialidades da palavra.
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«O conteúdo deve sobrepor-se à forma e ao estilo, pelo que a Poesia não deve reduzir-se a um mero jogo de palavras», defende H. Normando; uma asserção que rejubila leitores (e, no, caso, a crítica literária) cansados da poesia que se esvazia no burilado de formas, que se esforça na pungência do ornato.
não acordes o gato é, por tudo isto, um livro que nos acorda e desafia. Para seguir atentamente, e conferir. 

Poema do novo livro:

O Fenómeno da Luz
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.A luz dos teus olhos
É o enigma do comprimento de ondas e partículas
Que estranhamente se desprendem de forma descontínua
Até me transformarem num espectro
Que timidamente se aproxima
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É a luz que me ofusca e me dissolve
No mar até à linha do horizonte
É a luz da lua receptiva
Que se reflecte no azul de forma esquiva
Como imagem entrecortada e derivante
.
É a luz agitada do amante que peca
E que não se propaga em linha recta
.
É o momento mágico
De um envolvimento de partículas
Que estão para além das leis da física
A luz revolvida pela maré que se prolonga
Num êxtase sublime em cada onda


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Caminhos poéticos de Nuno Dempster

(texto editado dia 22 de Fevereiro de 2010, no sítio da Orgia Literária)


Em Londres, o novíssimo poema longo de Nuno Dempster, desfila a humanidade imperfeita e a aventura de viver nessa imperfeição; libertam-se vozes, intelectualiza-se a emoção, redimem-se ruínas e mostra-se que «num pint de cerveja» e num poema «pode conter-se o universo».
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Poema sobre a errância humana, Londres é o «cruzamento / dos mais insuspeitados caminhos / e as estradas que sustentam / o planeta na sua teia passam todas por aqui», o ponto de encontro da humanidade chegada de avião ou «nave» – a «Barca do Inferno de Gil Vicente» –, gente que não conhece Deus e só conta consigo mesma na aventura turbulenta de existir. São os «incansáveis cavaleiros na Terra», com o carrego da sua tragédia, que desembarcam no clarão desta escrita, porque a verdade não pode ser dita doutra maneira. São eles que aqui se invocam, é a vida deles, e o seu espírito, que aqui se comunga; uma «tarefa de barco» feita compromisso de escrita de Nuno Dempster: «e chamo: / – Ei, aonde ides? Esperai, esperai, bebei. // Nunca desejei tanto como hoje ser um de vós. / Por mais trágico que se torne o destino, / não me importava de sê-lo continuamente convosco, // eternidade sem Deus, // a eternidade calorosamente humana que guardais». (p. 15)

Ancorado na noção de que existir é ser personagem, na ideia de palco onde a humanidade desfila sob orientação dum «dramaturgo lúcido e honesto», este poema aproxima-se da poesia dramática, a qual tem em Shakespeare insigne representante; se, em Como Vos Aprouver, o autor inglês se detém na ideia da representação e da artificialidade da vida, retratando com pessimismo as sete idades do homem – «O mundo é um palco / E todos os homens e mulheres simples actores: / Têm as suas saídas e entradas, / E, em vida, um só homem tem vários papéis»(1) –, Nuno Dempster distende aquele princípio, conferindo singular unificação a um texto que denuncia o arruinamento humano: nesse mundo concentrado que é Londres, «é possível olhar os actores / que desfilam rumo às suas vidas conturbadas», mas cada um de nós só pode representar uma vez, condenados a assistirmos à nossa própria condição.

Olhar os outros – «o olhar procura impaciente o sinal de outra humanidade. / A sede de mundo é inextinguível» – ir com eles e ir neles suscita outro princípio da poesia dramática: a despersonalização do sujeito poético que apresenta estados de alma pensados e não sentidos, porque os compreende; o que sente com a imaginação a alma das outras personagens, fazendo delas vozes íntimas (e aqui ecoa a poesia de Konstantinos Kavafis, ainda que com sentidos diversos): «em que pensará a hospedeira de bordo? / A dor amaciou-lhe o rosto e tornou-o belo»; «Aonde ides, aonde ides, / ó raparigas celtas, ó filhas de viquingues?»; «de que murmúrios nasce a penumbra da vossa intimidade?»; «Irei em vós?»; «Não sei para onde me levam. / Para a vida, decerto para o sonho que guardam / e os sustenta e lhes dá vigor, / em enormes copos de cerveja. / Chamam-lhes pints. / Um pint é mais de meio litro de afrodisíaco.».

Com espinhosa lucidez – porquanto «A descoberta da humanidade / é um acto cansativo e doloroso, // e a lucidez não serve de nada, / excepto para morrermos / todos os dias pelos outros» –, a penosa lucidez dos olhos abertos – «Vêem como eu vejo / o fluir da multidão diversa? // Vêem quantos rostos a formam, / tão vária que em todos sigo?» –, Nuno Dempster cata na bruma todas as linhas para as esculpir na escrita, o que é, aliás, marca do autor, ao mesmo tempo que mostra que vermo-nos nos outros é também fundamento de solidão; e se a solidão medita, a meditação encontra a consciência das limitações, das impossibilidades, adensando-se o sentido trágico da vida: «Assalta-me não ser o que vejo, / não me diluir no que olho.». A escrita surgirá, assim, contra todas as impossibilidades: «nos olhos vai a claridade dos poemas, / a essência do absoluto impossível». Neste programa do olhar irrompe, fortíssima, a atitude indagadora e questionadora das convenções, a crítica sobre a realidade, a delação social e económica, feitas matéria de reflexão:

(…) Afinal, em Lisboa, os sem-abrigo cobrem-se com o Público,

lembraria uma turista portuguesa,
lavando as mãos diante de vagabundos intoxicados
de álcool e de fome,
provavelmente de solidão,
e sem dúvida de maldade.
.
Não estou a vê-los em Portugal
agasalharem-se do frio com o Diário da República.
.
Ainda que o imaginassem, não o fariam com medo
de a polícia os expulsar da casa que não têm
e de os fiscais lhes cobrarem o imposto de habitação,
e assim o meu país europeu mantém-se
na cauda dos índices de conforto.
.
Eis as notícias que me chegam a Londres
da capacidade de revolta nessa parte ocidental da Península Ibérica. (…) p. 17

Em Londres, tal como na restante obra de Nuno Dempster, estabelece-se uma relação complexa entre sentir e pensar: a referida lucidez do olhar no aprisionamento da realidade não significa ausência de emoção, mas sim de emoções intelectualizadas, pelo que irrompem no texto através da recordação, através da memória. É, ainda, pela memória que se faz a confluência dos tempos – passado, presente e perspectivação futura – e se encastoam a ironia e a descrença: «Virá o tempo em que filhos combaterão os pais, / virá o tempo em que as crianças e os pássaros serão esmagados, // mas virá o dia em que a subversão do humano não mais é possível, / e das cinzas, como Hórus, / um brado se levante e proclame “Basta. Chegámos ao limite” / e alguma luz nova, ou paz inteligente, ou vontade extrema / nos obrigue a reaprender a simplicidade de Tebas.». (p. 35)

Com Londres, texto de uma notável robustez poética, Nuno Dempster confirma a sua importância nas modernas letras portuguesas. «Não é possível ser-se pessimista, / Tudo aqui é permitido imaginar, // menos horários e aeroportos», lê-se no poema marcado pelo pessimismo que se redime, fulgurantemente, na escrita, explicado, também assim, pelo próprio texto: «Tudo é possível no que escrevo, / mesmo Homero e Shakespeare confabularem / cheios de entusiasmo pela humanidade». (p. 39).


(1) William Shakespeare, Como Vos Aprouver, Campo das Letras, 2008

Nuno Dempster, Londres, &etc, 2010

Dispersão
Recordo que Nuno Dempster editou, em 2008, a sua poesia reunida com o título Dispersão e chancela das Edições Sempre em Pé. Um compêndio de uma poética singular, cuja análise trarei aqui a curto prazo. Com agradecimentos ao Nuno Dempster pelo pronto e generoso envio deste livro bem como o  Londres, deixo dois poemas do Dispersão:


Gaivota de poemas

Era ainda a gaivota ideal e branca,
aquela que pairava sobre as ondas,
e o meu olhar seguiu-a vagamente,
longe, na praia, de onde o entardecer
levava os guarda-sóis e sua gente.
Seria uma gaivota de poemas,
ignorante dos restos de que as outras
gaivotas pós-modernas se alimentam.
Porém, deserta a praia e o Mediterrâneo,
acercou-se da areia e, já pousando,
devorou com as mais o lixo todo. (p.41)




A Lua

Tenho de repensar a minha vida,
disse-me, e acrescentou:
ser-se feliz é não ter esperança.
Lembrei-lhe o sol e o mar
que hoje vejo sozinho nesta praia,
e respondi não há quem viva assim,
ainda que a esperança não exista.
Mas vi-a olhar o céu,
dizendo que sorte é termos a Lua
- rege-nos as marés e o corpo -,
e que amava o seu rosto claro,
um espelho de luz na noite
onde se olhava já sem sonhos.
Nem suspeitou ser isso a esperança,
a lua e os espelhos sem mais nada,
a música que ouvíramos
e o mar além, atrás das dunas. (p. 63)

© Teresa Sá Couto

sábado, 13 de fevereiro de 2010

Erotismo e liberdade


Depois da colectânea de 69 Poemas de Amor, editada em 2008 pela 4Águas, Casimiro de Brito acaba de publicar Amo agora, escrito em parceria com Marina Cedro, pela mesma editora algarvia. Desta vez, o poeta, ficcionista e ensaísta investe num diálogo sensual e erótico com a compositora e cantora argentina, e o resultado são 106 páginas que falam do interdito e prescrevem a transgressão, um hino à escrita capaz de inventar e cantar «a voz da fonte muda», o enigma do desejo no grito libertário da palavra. 

São variações musicais do amor, ou da sua invocação, num diálogo envolvente e provocante, em vários passos com sexualidade explícita, mas ganhando, sobretudo, na alusão, sugestão e no jogo sedutor da imaginação. A ligação à memória possibilita recolher emoções vividas na intimidade partilhada ou no vazio das ausências do objecto amado, permitindo um enredo emocional com fácil comprometimento do leitor:

(…) Silenciosa /escucho /tú voz (p.8)

(…) Ouço a tua voz /ao nascer do dia /e vejo brilhar /nas árvores que murmuram /um canto antigo /um ardor orvalhado /cristalino /acabado de nascer (p.9)

Bem organizados, inscrevendo-se nas páginas de números ímpares os poemas de Casimiro de Brito, e nas páginas pares, em castelhano, os poemas de Marina Cedro,  os textos estão dispostos em gradação, como o ritmo do desejo à procura do corpo desejado, para nele e com ele se fundir, ritmo a traduzir, também, a perseguição do mistério e a vontade, ainda que gorada, de o deslindar:

(...) te coso a mi corazón para /tender entre tú y yo /una distancia /que no me duela tanto /y se me parte el pecho /de tanto amor (p.100)

(...) És fonte fechada /ó irmã /nascente selada /ó esposa mais bela /que mil rios /mais secreta /que mil fontes (p.101)
Doblegué /mis entrañas /a tu cuerpo /para hacerme /víscera de tu sentir /y encarnarme en /tu sexo (...) p.102

(...) os nossos sexos voam /um dentro do outro // Inventam /um jardim das delícias /comum // Apenas /te peço /que me deixes morrer /em paz /dentro /de ti. p.103

Curioso é, ainda, não haver distinção psicológica entre homem e mulher, nem supremacia de um dos sexos, mas sim equivalência, na linguagem erótica e na comunhão da sede de beber da mesma seiva: o prazer original numa aventura por todos os sentidos e em liberdade vocabular.
Ver uma boa parte de poemas deste Amo Agora, na página de Casimiro de Brito, bem como informações sobre Marina Cedro.

Nota final:  com agradecimentos ao autor, que me enviou pronta e generosamente os seus livros,  possibilitando-me apresentá-los aos leitores, recordo que Casimiro de Brito lançou também há pouco o belo e importante  En la vía del maestro – Un viaje con Laozi. Ver outras ligações para a escrita de Casimiro de Brito, na etiqueta com o seu nome.

© Teresa Sá Couto

domingo, 7 de fevereiro de 2010

No encontro com «O Outro»

Os europeus e os Outros. O caminho, a marcha das civilizações. A história da dominação, do desprezo, a nova era global das migrações e o «nascimento de um novo Outro não-europeu, que também é estranho perante outros não-Europeus». A xenofobia, essa «doença dos apavorados que padecem de complexos de inferioridade, assustados só com a ideia de confrontação no espelho da cultura dos Outros.».

Estes são os motes do pequeno e interessantíssimo livro O Outro de Ryszard Kapuscinski, editado no ano passado pela Campo das Letras. Considerado por Gabriel García Márquez “o verdadeiro mestre do jornalismo”, Kapuscinski apresenta-nos seis textos proferidos noutras tantas conferências nos anos de 1990 e 2004.

«Somos responsáveis pelo caminho. Frequentemente temos a consciência de percorrer um caminho só uma vez na vida e de nunca mais lá voltarmos», escreve Kapuscinski neste livro que nos surge como epílogo de uma vida dedicada a desvendar o Outro; o autor, que faleceu em 2007, deixou-nos um precioso e vasto acervo a dar conta da «Experiência de vários anos de viagens pelo mundo» esculpida em «reportagem literária» (ver AQUI e AQUI)

Segundo o autor, se a raça, a nacionalidade e a religião definem o outro, constata-se que «os nossos Outros terceiro-mundistas estão a ganhar maior protagonismo na história contemporânea e actual», devido à «invasão» aos países desenvolvidos, nomeadamente desde os anos oitenta do séc. XX, o que obriga à redefinição do mapa-mundo multicolor e complexo. Estarão os europeus preparados para esta coabitação?, aventa-se. Com efeito, hoje há a consciência da presença dos Outros - que «têm ainda a percepção do direito à existência e uma identidade própria» -, o peso da sua diversidade no nosso quotidiano; aceitar a multiculturalidade é um progresso que, todavia, esconde ameaças, assim nomeadas: «a enorme dinâmica e a ambição das culturas recentemente reconhecidas podem ser aproveitadas por nacionalistas e racistas para guerrearem contra os Outros»; «a defesa de uma cultura pode ser pretexto para a propagação do etnocentrismo, da xenofobia e da hostilidade com os Outros. Na teoria do desenvolvimento autónomo de culturas, o reconhecimento do direito inalienável da diferença – assim é, por vezes, interpretada a regra de multiculturalidade – pode esconder uma intenção separatista, uma negação da  necessidade e do proveito de intercâmbio, uma arrogância e uma fobia relativamente aos Outros» (p.50).

Aprender com a História, recordar a dominação europeia com o seu balanço trágico e sanguinário, determo-nos no exemplo de períodos em que o pensamento europeu tentou aproximar-se do Outro pela compreensão, construirmos quotidianamente pontes de diálogo, constituem a tarefa imensa do caminho, já que vivemos num «mundo frágil, demagogo, desorientado, fanático e cheio de más vontades.».
Num pequeno livro, uma viagem à História das relações entre os habitantes do globo e uma reflexão lúcida para projectar o futuro.

O Outro, Ryszard Kapuscinski, tradução de Wlodzimierz Józef Szymaniak e Isabel Ponce Leão, Editorial Campo das Letras, 2009


© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

«não se brinca com facas» lançado em Faro

não se brinca com facas de José António Barreiros tem agora apresentação de honra em Faro, por Nuno Júdice. Recordo que o romance foi lançado em Lisboa, no passado mês de Dezembro, com apresentação do poeta António Osório e do cineasta Luís Filipe Rocha.


(clicar na imagem para ampliar)

José António Barreiros, que em 2007 nos tinha brindado com as curtas e magníficas narrativas do Contos do Desaforo, traz-nos um romance intimista que explora os corredores recônditos do Ser onde corre a solidão, a abulia, o desamparo. Com promessa de que voltarei a este romance com uma minha leitura, deixo um extracto:

    (...) Com o comboio aos solavancos regressara ao seu lugar, procurou na mala um livro, que não abriu. A paisagem insistia em marcar presença diante dos seus olhos, desfilando, rápida, inversa relativamente à marcha do comboio, tornando-se logo instantaneamente passado, escapando-se pela ponta do vidro, chicoteando-lhe os olhos. O seu lugar era de costas face ao sentido da marcha, o presente, alongando-se em duração, levava por isso mais tempo a entrar no futuro, até fugir-lhe do ângulo extenso do seu olhar. Podia mudar de lugar, mas não mudou. O eficaz executivo tinha-se, entretanto levantado para desembarcar, absolutamente pragmático, colado à porta um minuto antes de a porta se abrir, a vida numa folha de Excel. Agora em redor de si, ninguém. Se pudesse fumar, mas não podia. Restava-lhe dormir mas não tinha sono, os olhos recusavam-se a fechar, dotados de vontade própria. (p.p.100, 101)

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

"En la vía del Maestro – Un viaje con Laozi", Casimiro de Brito

(Texto editado dia 01 de Fevereiro no sítio da Orgia Literária)

Pagar a portagem «para o outro lado» com um poema: assim nos chega o poeta Casimiro de Brito no recente En la vía del maestro – Un viaje con Laozi (Na via do mestre – Uma viagem com Laozi), uma via de «escalada interior, / alpinismo puro», vertida no mais puro e depurado silêncio vocabular. É um caminho de despojamento e incerteza, pois só este é válido; são respostas aos 81 versículos do Tao te-King de Lao Zi que o poeta fez ao longo de vinte anos.

Edição bilingue, a presente obra tem tradução espanhola de Montserrat Gibert, chancela da editora espanhola Olifante e patrocínio do Instituto Camões, Instituto Português do Livro e das Bibliotecas e do Ministério da Cultura. Com 72 anos cumpridos no passado dia 14 de Janeiro, e mais de meia centena de títulos publicados e espalhados pelo mundo, o poeta fala-nos da «água transitória» que somos, de envelhecimento, de experiência de vida, de morte e negação da morte pela palavra, já que a morte não existe no silêncio da poesia.

A partir da nascente antiquíssima do Taoísmo, Casimiro de Brito desenvolve um programa de identificação cósmica do poeta com a natureza para cantar a «baga frágil que vai de viagem», a «árvore ardida», faz o balanço de todo o caminho passado, desvenda «a cal intensa de que é feito um homem», prepara-se para o fim do caminho com o espírito do vale, como Tao o enuncia: recebe todas as águas que nele afluem.

Água, ar, terra e fogo são os quatro elementos genesíacos que consubstanciam um vastíssimo, plástico e rítmico sistema de metáforas da caminhada humana, concomitantemente metáforas da criação artística, a teia do «doloroso prazer da escrita». E se, também na sua teia, «a morte que se aproxima devagar / e não sabe fazer outra coisa», o mesmo faz a palavra contra a morte, transubstanciação da aranha a segregar o seu fio e a tecer a sua teia:

Flexíveis são as aranhas
Que tecem a partitura
Do enigma inicial. Arte
Antiquíssima – tal a do vento
Esculpindo a pedra; arte efémera
Como os terraços da espuma;
Tão próximos do nada. (p. 98)

Ciente de que o caminho acaba, pois é «frágil a madeira / que nos ossos do homem apodrece», o sujeito poético caminheiro desta via reconhece que o «sal do desejo» o cegou e só o «branco mais vazio», o branco da luz do «não-desejo» lhe anunciará o segredo. Cabe-lhe decifrar o enigma, buscar o princípio desconhecido cujo «segredo está na combinação / do barro e do ar»; o objectivo é a harmonia que só começa quando cessar o medo e o desejo, «quando o sangue reconhece a paz das árvores»; o método é a destruição de todo o conhecimento adquirido, o retorno à «mãe das coisas», devolver-se às «águas que passam», render-se «à doce / vigília da chuva»: «a pouco e pouco aprendo a desprender-me / do corpo e da sua ilusão», diz, para atingir o «Doce desconhecimento da grandeza de quem nada recebe / nem conserva», ou, ainda:

(…) assim fossem vazios os meus dias –
vazios e sem retorno como as sandálias
que vagueiam no verão sem saber
se caminham para o norte ou para o sul. (p. 92)

Na conjugação com o Todo para alcançar o Absoluto, o «pescador de palavras», o coleccionador do «rumor da cal», o que ouve a «flauta rouca», funde-se no feminino vocabular de «águas», «loucura», «mãe», «matéria», «seda», «morte», «terra», «dor», «carne», «flores», «bocas», «gota», «maré», dando sentido aos masculinos «o fruto», «o sábio», «o mar», «o corpo», para concluir: «nesse dia deixei de ser osso / separado das dez mil coisas».

Aprender com a Natureza é a divisa: o homem é um rio, e na natureza os rios continuam o caminho indiferente aos homens que «deslizam insaciáveis com o desejo / virado para o céu» e «a boca na terra / de quem vive apenas / este momento»; as águas «ignoram / a dialéctica do caminho: bebem o chão / e basta»; há que louvar as águas que não fazem ruído, e imitar o Mestre que se recolhe «nas folhas discretas / do seu palácio», no silêncio da sua mente, e o poeta no silêncio da sua escrita. Aprender com a Natureza é libertar-se da casca, cantar «o pó», «a semente mínima / do animal humilde que lentamente / envelhece tão lentamente como a sua / escrita esta breve passagem / pelo vasto vazio do ar azul / em volta». Esta será a Lei do Mestre e a lei do poeta: «quanto mais leve / mais densa a sua lei». Uma lei que gera poemas belíssimos, como este:

(…) Invocado o espírito do solo
e dos cereais regresso como parti, sem
bagagem. A árvore dos meus ossos
Inclina-se vagarosa sobre a terra
onde sempre mantive o pé jamais o reino;
onde fui um filho pródigo, um braço
nómada. Alimento-me dos últimos figos,
das emoções derradeiras. Em breve o pó
será pão bastante – uma folha de água
se tiver sorte. A mais não aspiro.
Deito-me em repouso como se fosse enfim
o chão trémulo que nunca deixei de ser. (p. 170)

Na «cerimónia vagarosa do pó», com a aproximação da boca do silêncio, a morte, há que beber na boca secreta doutro silêncio, esse sim imperecível: a palavra. Parece clara a perspectiva heideggeriana da palavra enquanto morada do Ser: ao longo de toda a obra, ela surge como essencial à travessia, o «ovo perfeito», a urgência de «loucas abelhas laboriosas», como no poema a seguir transcrito, pois «Não há outro fogo outra via / nas hastes cansadas do entardecer»:

A teia essencial não é um mapa,
um cenário de luz onde eu possa
desenhar-me como se o pó da viagem
em ouro se pudesse converter; essencial
é ver o que vai nascendo, o rumor do chão
como se ele fosse uma nuvem fugidia
que se ajoelha dentro de mim; ou a sombra
dela, a doce respiração que ilumina
as loucas abelhas laboriosas
que são as coisas e os seus nomes. (p. 54)

Casimiro de Brito que escreve – em A Arte de Bem Morrer (Roma Editora, 2007) – que «Quando a natureza do homem se dilui na morte / há um saber mais vasto, uma matéria que aspira / à dispersão dos seus componentes», que a «obra permanece, jamais a alma», e que pede ajuda ao poema para «encontrar um sentido neste segredo / que todos bebemos / e não se esgota», continua a libertar, em direcção aos seus leitores, a concha da palavra perpétua: «Uma concha que me preserve», para «morrer-me», «uma nave / onde eu possa viajar / todos os dias em distante embriaguez».

Casimiro de Brito, En la vía del Maestro – Un viaje con Laozi, Olifante, 2009

© Teresa Sá Couto