quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Novo livro da poeta Ana Paula Tavares


A poeta angolana Ana Paula Tavares tem novo livro: Como veias finas na terra, com a chancela, uma vez mais, da Caminho, colige, em 51 páginas, poemas curtos tecidos com palavras de brilho, sílabas claras, sinais perdidos nas dunas, areias, fontes, manhãs, noites de lua.

Com escrita ritualística, marca da autora, celebram-se vozes antigas da mulher africana no chão que se confunde com o seu próprio corpo, para desse chão atingir a universalidade do ser. «Aqui as pedras já não são pedras. O /sopro de vida que as /habita é um resto da fala antiga /de que são feitos os versos.», «Aqui a música pode ouvir-se na mão /curvada /búzio /sobe /o ouvido», lê-se nesta poesia que assim nomeia as suas próprias características.

São, pois, sons, sabores, texturas, desejos, cicios de perdas, de ganhos, de quimeras, que impulsionam as palavras, veias desta poesia. Para ler e sentir demoradamente. (texto meu sobre a poesia da autora, AQUI)

Poemas:

Quantas coisas do amor
P’ra ti guardei
Coisas simples como estar à espera
Manter o pão quente
Deixar o vinho abrir-se
Em mil sabores
Guardei-me das tentações
das sombras do desejo
das vozes
dos segredos

seria muito pedir-te
que me veles o sono
só mais uma vez.

***
Toda a noite chorei na casa velha
Provei, da terra, as veias finas.
Um nome um nome a causa das coisas
Eu terra eu árvore eu sinto
todas as veias da terra
em mim e
o doce silêncio da noite.

***
Detenho-me no cais
Ainda não é a hora
Eu sei
Há barcos de um lado
E comboios antigos de toda a parte
Ainda não é a hora
Eu sei
Detenho-me no cais
Eu sei não é ainda a hora
As pessoas deslizam
Acertam as suas vidas
Pelos relógios

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Citações e Pensamentos na busca do saber

É fácil encontrarmos nas nossas livrarias livros que coligem citações, aforismos e toda a sorte de textos breves dos mais diversos autores. Na internet, o fenómeno atinge o foro do bizarro, descredibilizando-se, com variantes quase intermináveis dum mesmo texto e muitas vezes atribuídos a autores diferentes. Todavia, e como em todas as coisas, há que distinguir o trigo do joio, o que é feito de forma séria e exigente, do que não o é. Procurando o trigo, encontramos os livros de citações e pensamentos, organizados por Paulo Neves da Silva que é, também, o timoneiro do Citador, lugar da internet que, julgo, dispensa apresentações.
.
Acabado de chegar às livrarias, o Citações e Pensamentos de Padre António Vieira junta-se a outros quatro tomos de trabalho árduo, dedicado e metódico, de anos, cuja edição se iniciou, finalmente, no ano passado, pela Casa das Letras que abraçou o projecto de Paulo Neves da Silva: os Citações e Pensamentos de Fernando Pessoa, em Abril de 2009, já na 5ª edição, Citações e Pensamentos de Friedrich Nietzsche, Agosto de 2009, Citações e Pensamentos de Agostinho da Silva, Novembro de 2009, e Citações e Pensamentos de Eça de Queirós, Abril de 2010 (capas na imagem; clicar para aumentar).

.Segundo Paulo Neves da Silva, a quem agradeço a disponibilidade para me contar o percurso desta sua missão maior de serviço público - dito assim porquanto é legitimado pela pertinência e qualidade das recolhas -, que começou a dar frutos em 2005 com a publicação, também pela Casa das Letras, de O Livro das Citações, uma compilação de citações por temas - com cada citação acompanhada doutra que a contradiz -, os Sabedoria Irreverente, em 2006, O Livro das Reflexões e Pensamentos, em 2007, duas edições de autor, e o Dicionário de Citações, de 2009, editado pela Âncora.

Sobre o recentíssimo Citações e Pensamentos de Padre António Vieira, acrescente-se que compreende 650 citações e 170 textos temáticos, sendo referenciados 147 sermões, resultado da pesquisa por 30 volumes da obra do genial orador seiscentista. De fácil consulta, e com uma piscadela de olho à ludicidade da leitura, os cinco títulos disponíveis são susceptíveis de guiar o leitor menos familiarizado com os autores e incentivá-lo a procurar os textos integrais; um movimento para a procura do saber que se aconselha, ainda, para as estantes das bibliotecas das nossas escolas.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Electri-cidade, Vitor Oliveira Jorge

(texto editado no sítio da Orgia Literária em 29.11.2010)

Procurar «o movimento da curva», posicionar-se no «entre», no «estar imediatamente antes / Do que vem imediatamente depois», deixar o corpo, que está no turbilhão da curva, deflagrar e tecer o próprio sudário: assim nos chega Electri-cidade, o último trabalho poético de Vítor Oliveira Jorge, que reúne, em 260 páginas, textos longos em verso e prosa poética.

Assumidamente metapoética, esta poesia busca a elasticidade do pensamento, a soberania da imagem, sendo a acção mobilizadora enunciada claramente no texto: «Criar uma espécie de tensão; partir de terra em terra; montar a tenda, repetir a cena, variar as luzes», «representar que nem um louco», «com os dentes todos pretos de tinta. Dando mordidelas textuais no ar». O resultado é a «hemorragia de versos, / Como longas escadarias, / Cada degrau pedindo outro, / Cada sala desembocando / Numa próxima, de outra cor. / Cada imagem apresentando outra imagem» (p. 97), em estilo vertiginoso, esfuziante e torrencial, patente também no desenho estrófico, com versos de tamanho muito desigual. «Por que nervo passa este movimento? / Por onde se pode começar a esquadrinhar / Esta geografia?» (p. 162). E começa-se pelo corpo, onde se ancora, fortíssima, esta poesia: o corpo antigo que é noite e quer ser iluminado, a «escaldar / de luzes e reflexos e notas e sons, que gargantas / Espalharam no ar denso ao longo dos séculos», esquadrinhado em círculos e espirais, poema após poema, muitos deles afigurando-se-nos como paráfrases de outros – e estará aqui um aspecto negativo deste compêndio, pela ideia que se nos agarra de poemas que seriam projecto ou estudo doutros, e que uma revisão e selecção cuidadas seguramente eliminariam para conferir homogeneidade à colectânea.

A explosão do corpo espraia-se por «arquitecturas» que o envolvem e que configuram o seu drama: o quarto, a cama, paredes, tectos, praças, «o enxadrezado do chão», recantos das esquinas, drama bem patente neste «A força das horas»:
[…]
as manhãs às vezes começam ao contrário, como se fossem noites atrasadas.
a cama é então um lugar de conforto e de martírio, confundidos no mesmo corpo,
na mesma penumbra.
há um desalinho no passado e no futuro.
e no presente as pernas cruzam-se sem se encontrarem.
os lençóis suam.
um peso cai das roupas estendidas,
dos dias anteriores,
da opacidade das janelas,
onde
não se roçam pombas, Nem se abrem candeeiros.
apenas fragmentos se erguem acima do colchão,
à procura […] (p. 11)
.
Passento, o corpo é enredado no frenesim da criação poética: «odor que excita as narinas», tensão de ossos, músculos, tendões, uma «máquina tremenda, uma vontade / Do corpo vivo, esticado, com luzes / Nas extremidades: / Com luzes nos pés, nas mãos, // Um corpo todo aberto, / Todo erguido no vento» (p. 137), com que se procura, afinal, uma respiração, dito assim em belíssimos versos:
.
O corpo odeia as superfícies, o corpo
Foi feito para voar. Mas o maldito peso
Prendeu-o ao solo, e o maldito tempo
Colou os dias uns aos outros. (p. 77)
.
Do corpo, em cruzamentos, entre «Trapézios», destacam-se as mãos, os pés e o centro. Das mãos saem «estradas», «escadas», «veias», «velas / que os pássaros cruzam / furando os panos», e o texto «acaba sentando-se / no fundo de si mesmo», no chão enigmático que é a folha branca do poema: «passaram-se de facto / aqui / já muitas, talvez demasiadas, coisas! // e um emaranhado de linhas / pousa no chão» (p. 85). Ostentando a sua «nudez total», está a planta do pé, o «pé terrivelmente nu sobre as superfícies». O centro é emanação, cópula, luxúria, «esperma», «vulva», a «intumescência» dos lábios, com a palavra a almejar o poder ilimitado, como uma «cerejeira coberta de frutos brilhantes e carnudos, vermelhos na sua totalidade prestes a rebentar de dentro de si mesma» (p. 133). Também assim se edificam os três elementos – cântico, culto e altar – do Grande Segredo da palavra, da «Flor» que, alucinada, «cresce sobre a coluna» para Dizer, ao mesmo tempo que foge «para dentro / de um cabelo enorme», intacta, «porque todo o seu íntimo / Está na reserva inviolável», numa conclusão a ressumar o esforço de Orfeu na sua descida ao inferno para reunir, no canto, a sua dispersão: «Subimos todos conduzidos / Pelo baixo profundo / Do Segredo»; trata-se do «Grande Desejo» – e «desejos e apetites são asas», na formulação de Novalis – de «estoirar com os balões solitários», todavia com a consciência de que se «caminha para o desconhecido», dito assim, num texto em prosa:

(...) as noites adensam-se para dentro de si mesmas mais que os dias, porque está escrito: não olharás para dentro das janelas. Podes interrogar-te sobre quem estará por detrás, por dentro, de cada janela apagada, ou acesa. Mas jamais saberás quem é. (p. 130)
Finalmente, no corpo, e por via dele, veicula-se a noção da escrita como sacrifício: «sempre com o mesmo fervor do centro» a mesma ânsia de janelas acesas em pleno dia, subir o turbilhão para se ir ter a um lugar que não se conhece, ou encontrar o objecto da demanda «como vestígio, um olhar entre dois pontos de interrogação»; é o corpo entre corpos na pista dos sacrificados; é o desejo de dispersão e aniquilamento do corpo que «assoma às varandas, para se evaporar», se diluir com a atmosfera, se volatilizar: «É o momento das janelas, do trespasse do corpo através dos espelhos. // Por que não tínhamos inventado isto antes, afinal, por que percorre-/ mos tão longo caminho sobre gumes de obsidiana, quando os pés se / podiam desmaterializar!» (p. 256).
São focagens e desfocagens de uma deambulação consciente de ter de arrostar com a solidão, e se apazigua encontrando o «Ouro» na simplicidade do seu lar, a sua toca no fundo duma rua sem saída, lugar de «paz infinita», referido num texto de carácter biográfico titulado, precisamente, «Ouro» (p.169). Na assunção da nudez absoluta, surgem textos como este:
[…]
trago-te o meu coração
Arrancado ao peito, com veemência,
Com violência
E estendo-o à tua surpresa
Como um seixo do rio, macio, suave,
Limpo. Tão limpo, tão nu.
Eis o meu Sagrado Coração
Desprevenido. (p. 70)


«As curvas são feitas para isso / Para nos colar ao momento seguinte / E como gatos espetarmos o focinho / Nessa procura obsessiva», lê-se neste Electri-cidade. «O poder de tornar as obsessões, que são experiências enérgicas do mundo exterior e interior, em formas tendentes a dispor-se numa forma fundamental, isso é o acto por excelência poético», diz Herberto Helder. Vítor Oliveira Jorge procura que a palavra – esse gesto «com que se atam sentimentos» e se desnuda a alma – seja a voz fundamental, e esculpe um canto lírico com lugar próprio na actual poesia portuguesa.


Electri-cidade, Vítor Oliveira Jorge; Edições Colibri, 2009


© Teresa Sá Couto

domingo, 28 de novembro de 2010

Novo livro de poesia de Ondjaki

Dois livros num só: Acto Sanguíneo e Dentro de mim faz Sul: o iniciático – escritas do fim da adolescência, editado há dez anos – e o mais recente livro de poesia de Ondjaki. É uma «celebração», diz-nos o escritor angolano em nota introdutória, desse «mistério chamado poesia». São pedaços da existência, fragmentos de interioridade desenhados em palavras: o «ritmo do sangue», o afecto do chão, o canto das estrelas da infância, rituais de encantamento, cicios de perdas, saudades, ecos longínquos que a memória foi transfigurando também ao longo de dez anos.

«dez anos antes ou depois, há frases que nos vão resumindo – cicatrizam-se em nós (porque o mundo /assim como sou /não me basta). Pensei também em dizer que, algures, entre estes dois livros, seguem longas linhas de uma sincera confissão. Mas depois vi que isso seria uma redundância humana.», diz Ondjaki, no presente livro.
Com várias obras para crianças, contos, romances e um texto dramático, as razões da poesia (recordo que Ondjaki  publicou também há prendisajens com o xão, em  2002, e, no ano passado,  Materiais Para Confecção De Um Espanador De Tristezaver texto meu sobre este último título) poderão encontrar-se logo em Acto Sanguíneo : «regresso  porque me dói /a parte escondida da perna  //e peço, com a mão mais direita /para escrever em ti .//regresso  porque /acima de tudo /me quero experimentar.//a mim: sanguíneo. //o actor sanguíneo.» (p.125).

Poemas:
(dentro de mim faz sul)

que língua falam os pássaros

de madrugada
que não a do amor?

escuto a madrugada
- lento manancial de céus.

os pássaros
São mais sabedores. (p.17)

***
chove.
o mundo húmido, poético
ganha outra densidade
- longe do medo.

gosto de observar a chuva

a paz
nas suas vestes

a chuva é plena de instantes intocáveis

nós somos
simplesmente humanos. (p.49)
***
(acto sanguíneo)

há uma valsa lenta neste
baixinho barulhar.
um vermelho odor, qualquer coisa de baço
no olhar.
seios brancos, um soutien escondido
um par de óculos
uma doce morosidade.

há algo de erótico na casa da idade

um suspiro estalando no ar
ou uma valsa quente
no repouso de um lar. (p.104)


ver AQUI textos meus sobre obras de Ondjaki

domingo, 14 de novembro de 2010

Blade Runner, a obra de Ridley Scott

É uma experiência e peras viver com medo, não é? É o que significa ser escravo. - Blade Runner

Esta semana, no ciclo de Film noir. Como sempre, a ficha elaborada por José Xavier Ezequiel.



sexta-feira, 12 de novembro de 2010

A épica de Gonçalo M. Tavares

Está nas livrarias Uma Viagem à India, o novíssimo romance de Gonçalo M. Tavares, com promessa de futuros brados.
É uma edição esmerada, de capa dura, branca, com sobrecapa encarnada destacando-se um símbolo gráfico: uma linha recta, vertical, que parte de um ponto, um centro, ou se dirige para ele, como a linha da vida humana do nascimento para a tomada do mundo ou do nascimento em direcção à morte. No interior, a viagem em 10 cantos, eco de Os Lusíadas, cada canto com pequenos textos numerados e dispostos nas páginas como se fossem estâncias; nas últimas páginas, Melancolia contemporânea (um itinerário) dá-nos, graficamente, caminhos daquela linha recta numa espécie de cartografia da existência. «O dispositivo é o de um poema provocantemente épico e anti-épico», escreve Eduardo Lourenço, no Prefácio.
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Bloom é o herói e anti-herói desta singularidade literária, marca iniludível do autor, e é o espelho onde, como é apanágio da escrita de Gonçalo M. Tavares, inquietantemente nos revemos. A ler, de um fôlego. Transcrevo uns extractos com a formatação que se encontra nas páginas:
.
77
.Há uma fenda entre o mais alto
da cabeça do homem e o céu; e nas minas
onde se exploram as riquezas que caíram
é evidente um outro embaraço antigo: a desligação
entre os pés do homem
e o que existe lá em baixo: o centro da terra.
Mesquinha coisa que existe entre o céu e o centro,
eis o homem. (Canto III, p.144)

38
.
O mundo é redondo, mas todos os lados são iguais.
Os homens têm fome e adversários,
e outros têm prestígio e amigos e, nesta divisão rude,
encontrarás semelhanças evidentes
com a velha Europa, a Ásia, as Américas,
África, e com todos os continentes onde existem
seres vivos. A vida é invenção de demónios:
deram-ta: deves defender-te, deves atacar
(percebes, Bloom?). Percebo, responde Bloom com a cabeça. (Canto VII, p.304)

41
.
Ninguém se encosta a si próprio tão
intensamente como quando sofre ou como
quando entra num mercado de uma
das nossas grandes cidades. O comércio
é feito de uma linguagem inesgotável:
sobra de um lado, falta de outro. O consumo,
por mais que o repitam, não é invenção do capitalismo:
os deuses formaram homens incompletos,
com estômago, frio, vaidade, como queriam outro resultado? (Canto VII, p.305)
.
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Ver AQUI textos meus sobre obras do autor.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

relâmpago dedicado a Cesariny

Já está disponível o número 26 da revista de poesia relâmpago, que é, nesta edição, dedicado a Mário Cesariny. O número chega no mês em que passam quatro anos da morte de Cesariny - a 26 de Novembro, com 83 anos. «Se se pudesse falar, nem que apenas simbolicamente, de revolução em poesia, Mário Cesariny seria, sem dúvida, um desses símbolos maiores de mudança, à semelhança de Cesário e de Pessoa, dois poetas aos quais, não sem motivo, a sua obra está ligada», escreve Gastão Cruz na nota editorial.

A belíssima edição contém fotografias a preto e branco e a cores de Cesariny, de trabalhos seus e de trabalhos inspirados na sua obra, em imagens que documentam uma época tingida pelo carisma do homem irreverente e polémico, fundador do surrealismo português, poeta considerado e pintor elogiado. «Para mim tudo é pintura», e é a pintura que melhor faz a «denúncia do desespero», disse o poeta-pintor sobre a sua forma de estar no mundo, forma essa que a relâmpago agora recupera e analisa com ensaios realizados por António Carlos Cortez, Fernando Azevedo, Fernando J. B. Martinho e Fernando Cabral Martins. Como Cesariny é, ainda e sempre, surpresa, a relâmpago dá-nos, em imagens, o original Pastor - Evangelho em 1 Prólogo e 3 Quadros.
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Cesariny tem a sua obra editada pela Assírio&Alvim, e dos inúmeros títulos destaco Uma Grande Razão - os poemas maiores, com 56 poemas, um artigo de José Manuel dos Santos, publicado no jornal O Público, aquando da morte do poeta, e uma entrevista de Maria Bochicchio a Cesariny, publicada no jornal Expresso. É deste livro que transcrevo o poema uma certa quantidade:

Uma certa quantidade de gente à procura
de gente à procura duma certa quantidade
.
Soma:
uma paisagem extremamente à procura
o problema da luz (adrede ligado ao problema da vergonha)
e o problema do quarto-atelier-avião
.
Entretanto
e justamente quando
já não eram precisos
apareceram os poetas à procura
e a querer multiplicar tudo por dez
má raça que eles têm
ou muito inteligentes ou muito estúpidos
pois uma e outra coisa eles são
Jesus Aristóteles Platão
abrem o mapa:
dói aqui
dói acolá
.
E resulta que também estes andavam à procura
duma certa quantidade de gente
que saía à procura mas por outras bandas
bandas que por seu turno também procuravam imenso
um jeito certo de andar à procura deles
visto todos buscarem quem andasse
incautamente por ali a procurar
.
Que susto se de repente alguém a sério encontrasse
que certo se esse alguém fosse adolescente
como se é uma nuvem um atelier um astro (p.p. 64,65)




domingo, 31 de outubro de 2010

"O Acossado", de Jean-Luc Godard

À Bout de Souffle, de Jean-Luc Godard, abre o mês de Novembro no Film Noir. Eis a ficha do filme elaborada por José Xavier Ezequiel. E let´s look at the film!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Albano Martins: a cartografia da luz

(texto publicado no livro 80 Anos – Albano Martins e disponibilizado no sítio da Orgia Literária em 18 de Outubro de 2010)
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.Não, ninguém se conhece, até que o toca
a luz de uma alma irmã
                                            Miguel de Unamuno

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Falar de Albano Martins é nomear a luz. Uma luz verde, «casualmente azul», «às vezes amarela», «sobretudo vermelha», líquida, com «a cor dos miosótis e do sangue», a bordar um «coração de bússola» e a mapear a doação. Uma luz rutilante, exacta e concisa, irmanada com o nosso destino desde há 60 anos, nutrida de palavras, «Sentinelas de sal e de silêncio» a cantarem «A vida / – essa invenção magnífica / da morte».

«Meus versos / são encontros da sombra com a luz», escrevia o poeta no iniciático Secura Verde, os primeiros acordes de quem se propunha cumprir o «destino como qualquer fonte», com passos que fossem «os de qualquer bicho». Assim, «o verbo se fez cor, aurora, / boreal, multímodo / girassol», e o poeta fazia do seu nome uma canção, manifesto da transumância onde o sujeito lírico e o homem se aclaravam com «o mesmo nome», e o mesmo que nos chega até hoje, sabe-o quem conhece Albano Martins.
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«Eu fujo de novo como faz o cuco», escreveu Anacreonte. Longe da Estrela e da Gardunha, radicado à beira do Douro com vista para a invicta brumosa, Albano convoca a luz, enceta a «viagem das flores sem moldura», dá cor ao tempo branco, «o tempo das cerejas e das malvas», torna audível um melro que «canta a flor das giestas / e da cerejeira», esculpe os «dias enxutos», os «Anos plácidos, / fulvos (alourados, amarelo torrado)», cintilações, inclinações do corpo, uma oração até às mãos doridas e requiem aos «gestos perdidos / no espaço da memória»; é o apelo da «Rosa-dos-ventos» da infância, onde cabem todos os lugares e todas as direcções da palavra que solta o mel das «Lendárias e luminosas abelhas», desata a «Magnólia dos símbolos», a florida e «incandescente metáfora». Edifício vivo, o ontem é eternizado na «luminosa fábula» construída com fios secretos a ligar os tempos Passado, Presente e Futuro e a desnudar o centro, o «Centro do próprio centro», a «água compulsiva». E nesse centro está o amor, leitmotiv da poesia albaniana, como na formulação de Paul Éluard: «Por amar, criei tudo o que é: real e imaginário. / Dei razão de ser, dei forma, dei calor / Dei imortal função àquela que me é lâmpada e luz».

A criação exige trabalho árduo, e Albano mostra-nos que, para abranger, a palavra – que busca «a flor do cálcio / na / luz da madrepérola» – tem de sofrer, sendo a presença da sombra uma prova incomensurável da força vital desta poesia:

Quando escurece, é preciso acender rapidamente todas as luzes da casa. Nunca se sabe quando o eclipse do sol é total. E a morte precisa de luz para ver na escuridão.

Em permanente busca interior, o amor Escrito a Vermelho tem, na obra albaniana, o «compromisso» largo e fulgente do destino humano, estabelecendo diálogo íntimo, directo e cristalino com o Homem:

Pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. E não deixar
crescer à tua porta
ervas daninhas.

É a bússola humanista de Albano Martins que brilha, total, em Rodomel Rododendro:

Repara. Há um rio correndo entre as falanges dos dedos. Navegá-lo-ás solitário, porque solitárias são as navegações humanas, todas, como inavegáveis são os rios, todos os rios da terra, anteriores ao mar. Onde tu vês a foz é a nascente que vês. Que os rios, como tudo o que é fluido e movente, nascem ao contrário.

Sobre o lugar do poeta na humanidade e o mistério da escrita, responde-nos Albano, num comentário ao poema «Santo e Senha», de Miguel Torga, com outro mistério: o «lugar onde do poeta» é na terra de todos, mas na área da sombra onde tem «a solidão por habitáculo». O poeta não mata a sede, engana-a, diz-nos, porque «a sua sede é de infinito, de absoluto, e a esta não há fontes que a saciem, mesmo as do Sonho, por mais refrescantes que sejam».

Interrogar, desvelar o real e soltar a imaginação são a «senha» e o «Lugar» de inscrição de Albano Martins, forma de vida plena na palavra plena a dar-nos lições de coerência e de autenticidade que partilha connosco, seus leitores e cúmplices de jornada.

O lugar da palavra de Albano, sabe-o o poeta, é aquele em que a pele das palavras, das que ele libertou, encontra outra pele que passa a ser a sua casa: a pele do leitor: «Como a palavra, Só o dardo /conhece o alvo. Só o dardo / sabe o nome / da ferida. / O seu lugar».

Escreveu José Régio: «Eis como tudo se reduz a pouco: literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura que ele produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço». Assim vejo a poesia de Albano Martins: um hausto íntimo que atinge a universalidade e intemporalidade humanas; uma orquestração de palavras que depois de nos deixarem «todos os jardins da terra e do mar» nos incitam e ensinam a plantar «uma flor no vazio».

«Ao amigo e ao companheiro fiel nunca traí, / nem há na minha alma nada de servil», escreveu Teógnis, traduziu-o Albano Martins, lemo-lo como efígie deste homem poeta, tradutor de poetas, farol que nos guia na nossa inevitável condição crepuscular e dote nosso de língua lusa.


Nota: este texto foi editado no livro 80 Anos – Albano Martins, pp. 315 a 319, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2010, no ensejo das celebrações do aniversário do poeta (a 24 de Julho) e 60 anos de vida literária em 6 de Agosto de 2010.


*ler outros textos meus sobre Albano Martins na etiqueta correspondente.

© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Juan Rulfo ou o assombro literário

Dois nomes de culto: Juan Rulfo e Pedro Páramo, o mágico e a «carpintaria secreta» reveladora de «insólita sabedoria», o escritor e a novela que o imortalizou. Gabriel García Márquez considerou a escrita do escritor mexicano sua matriz literária. Leitores dos quatro cantos do mundo consideram Pedro Páramo uma das maiores obras de sempre da literatura universal; também eu me inscrevo nessa multidão.
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Publicada em 1955, Pedro Páramo daria a Juan Rulfo (1918-1986) o Prémio Príncipe das Astúrias, de Espanha, quatro anos antes do seu falecimento. Muito se escreveu sobre esta novela, e muito, creio, ainda se escreverá, porquanto ela nunca se acaba. É pejada de vozes, vozes fundas da terra difundidas pelas personagens, que as fazem suas, e que através delas se buscam.
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Juan Rulfo escreveu pouco mais que essa novela e essa lhe bastaria para o nosso redondo assombro. É esse pouco que é tanto que nos acaba de chegar no tomo de 366 páginas: Juan Rulfo, Obra Reunida, pela Cavalo de Ferro, com o prefácio Breves nostalgias sobre Ruan Rulfo, por Gabriel García Márquez, tradução de Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu. Junto com Pedro Páramo, estão o llano em chamas e o galo de ouro; assim, três portentos literários, três viagens ao inefável, e ao indizível depois de Juan Rulfo.

Extractos:
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«Dormi entre interrupções.
Numa dessas interrupções, ouvi o grito. Era um grito arrastado como o alarido de um bêbado: "Ai vida, não me mereces!"
Pus-me de pé rapidamente porque quase o ouvi aos meus ouvidos; podia ter sido na rua; mas eu ouvi-o aqui, colado às paredes do meu quarto. Ao acordar, tudo estava em silêncio; apenas o cair do pó e o rumor do silêncio.
Não, não era possível calcular a profundidade do silêncio que aquele grito produziu. Como se a Terra se tivesse esvaziado de todo o ar. Nenhum som; nem o da respiração, nem o do bater do coração; como se o próprio ruído da consciência se tivesse interrompido. E quando a interrupção terminou e voltei a acalmar-me, o grito regressou e continuou a ouvir-se durante um longo momento: "Deixem-me ainda que seja apenas o direito de empurrar a cadeira do enforcado!"».
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Pedro Páramo, p.48
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***
«Cai uma gota de água, grande, gorda, fazendo um buraco na terra e deixando um empate como de uma cuspidela. Cai sozinha. Nós esperamos que continuem a cair mais. Não chove. Agora, se olharmos para o céu, vê-se a nuvem aguaceira correndo para bem longe, cheia de pressa. O vento que vem da aldeia arrima-se-lhe empurrando-a contra as sombras azuis cerros. E a gota caída por engano é comida pela terra, que a faz desaparecer na sua sede.
Quem diabo terá feito esta planície tão grande? Para que é que serve, hã?
Voltámos a caminhar. Tínhamos parado para ver chover. Não choveu. Agora voltamos a caminhar. E a mim vem-me à cabeça que já caminhámos mais do que aquilo que andámos.»
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O Llano em Chamas, p.146
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***
«Passaram os dias. Dionisio Pinzón vivia unicamente preocupado com o seu galo, que enchia de cuidados. Levava-lhe água e comida. Metia-lhe migalhas de tortilha e folhas de alfafa dentro do bico, esforçando-se por fazê-lo comer. Mas o animal não tinha fome nem sede, parecia ter apenas vontade de morrer; embora ele ali estivesse para o impedir, vigiando-o constantemente, sem descolar os seus olhos dos olhos semi-adormecidos do galo enterrado.
Contudo, uma manhã, deparou-se com a novidade de que o galo já não abria os olhos e tinha o pescoço torcido, caído sob o seu próprio peso. Colocou rapidamente um caixote sobre a cova e pôs-se a bater-lhe com uma pedra durante horas e horas.
Quando, por fim, tirou o caixote, o galo olhava-o aturdido e pelo bico entreaberto entrava e saía o ar da ressurreição. Aproximou dele a tigela da água e o galo bebeu; deu-lhe de comer massa de milho e este engoliu-a, em seguida.
Poucas horas depois, pastoreava o seu galo pelo terreiro do curral. Aquele galo dourado ainda cinzento de terra que, apesar de se alquebrar a cada instante por lhe faltar o apoio da sua asa partida, dava mostras da sua fina condição, erguendo-se cheio de coragem perante a vida.».
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.O Galo de Ouro, p.p.310,311

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domingo, 17 de outubro de 2010

Luís Norberto Lourenço na tertúlia da História

O historiador e professor albicastrense Luís Norberto Lourenço acaba de lançar o livro Auto de arrolamento dos bens existentes na egreja matriz da freguesia de Penamacor, concelho do mesmo, distrito de Castello Branco, realisado no dia 6 de Julho de 1911 (Ver aqui). Segundo informações do próprio autor, a quem agradeço, o título terá distribuição gratuita: serão entregues 11 exemplares à Biblioteca Nacional (BN), um à Torre do Tombo, um a cada Arquivo Distrital, distribuídos pelas bibliotecas , por alguns arquivos municipais e em várias apresentações públicas pelo país.
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Para muitos, Luís Norberto Lourenço dispensa apresentações, pois tem vindo, há cerca de uma década, a aplicar o conceito de terlúlia com envolvência cultural ímpar, e com o nome exacto de Casa Comum Das Tertúlias; o segredo estará na dedicação e tenacidade que corporizam um trabalho sólido estendido por apresentação de livros, declamação de poesia,  organização de tertúlias, organização de exposições (cerâmica, desenho, escultura, fotografia, pintura), concertos, visitas culturais, feiras do livro, revistas e fanzines e versátil actividade editorial.
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Entre iniciativas de sucesso, a casa tertuliana de Castelo Branco ganhou asas e fôlego, pelo que o seu roteiro contempla já Cidade Rodrigo, Mangualde, Marvão, Nisa, Penamacor, Portalegre, Porto, Proença-a-Nova, Sátão, Vila Nova de Paiva, Vila Velha de Ródão, Salamanca, Seia, Setúbal. Ver aqui o resumo das actividades da Casa Comum das Tertúlias, e facilmente se conclui ser este um local que é obrigatório acompanhar.

sábado, 11 de setembro de 2010

Os «102 Minutos» do centro do Horror

Nove anos depois do terrível 11 de Setembro, recupero um texto que produzi em 2005 sobre um livro que reconstrói, minuto a minuto, o ataque às Torres Gémeas do World Trade Center – desde o embate do primeiro avião contra a primeira torre, às 8h46, até à queda da segunda torre, às 10h28.

Mostrar o interior, do exterior que todos presenciámos na televisão, é a grande novidade do 102 minutos; os autores, dois repórteres do jornal New York Times, Jim Dwyer e Kevin Flynn, colheram testemunhos de sobreviventes da catástrofe, pesquisaram centenas de entrevistas e transcrições de comunicações via rádio e telefone para que fosse recriado, o mais fidedignamente possível, o ambiente vivido no interior dos dois edifícios.
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Este 102 Minutos, com o subtítulo A história desconhecida da luta pela sobrevivência no interior das Torres Gémeas, contém, logo a abrir, uma lista de «352 pessoas no World Trade Center» – funcionários, visitantes, elementos da Administração Portuária, bombeiros, polícias, entre outros, envolvidos na catástrofe; segue-se uma «Nota dos Autores» datada de Setembro de 2004; um Prólogo – a abrir com a primeira pessoa a chegar ao escritório no 89º andar, na Torre Norte, às 8h30, uma mulher sobrevivente e que foi entrevistada pelos autores no ano de 2003; o corpus da narrativa da tragédia em 14 capítulos, com o 1º capítulo a iniciar-se às 8h46, na Torre Norte, e o 14º a finalizar ao 102º minutos; um Epílogo – o Nível Zero às 11h00; uma Lista de 126 pessoas que, de entre os 2.749 mortos, estão mencionadas no livro; Notas e Agradecimentos.
No decurso da exposição são apresentadas diversas gravuras representando o espaço exterior das torres, e estrutura interior, além de esquemas dos embates dos aviões, todos documentos explicativos que foram editados no New York Times.
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É também feita a história desde a concepção e construção das torres, as polémicas e os riscos anteriores ao fatídico 11 de Setembro. As consequências de um choque de um avião contra uma das torres tinham sido encaradas pelos que se opunham à sua construção de tal forma que esses opositores publicaram um anúncio no New York Times com a visão sinistra de um avião a embater na fachada norte da torre norte. A Administração Portuária, proprietária dos edifícios, respondeu que «os cálculos dos seus engenheiros e as simulações em computador demonstravam que o embate de um avião provocaria estragos em sete andares, mas o edifício permaneceria de pé.». No dia 7 de Novembro de 1982 as entidades oficiais “provocaram um desastre” numa das torres, a que responderam os Corpos de Policia e Bombeiros, bem como de Serviços de Emergência Médica e Administração Portuária. Tudo isto suscitado pela eminência de um acidente ocorrido no ano anterior: «um avião de carreira argentino, por problemas de comunicação com os controladores de tráfego estivera a noventa segundos de chocar com a torre norte, sem envolvimento de terroristas». Fala-se no atentado de 1993 e no alerta de Guy Tozzoli, Director reformado do World Trade Center, feito numa audiência com a assembleia legislativa, «que a cidade deveria preparar-se para uma catástrofe do género. Porém, ninguém lhe deu ouvidos» e, mesmo com a nova administração Giuliani, não foram feitos exercícios que envolvessem entidades conjuntas no edifício. As lutas intestinas, de ordem financeira, entre a Câmara e a Administração Portuária inviabilizavam acções concertadas.
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A falta de comunicação entre entidades atingiu o ponto bizarro no 11 de Setembro: «Pelas 9h15, cerca de meia hora depois do embate do primeiro avião» perguntava-se ao chefe de bombeiros, sobre o plano de execução dos helicópteros; porém, «embora o município tivesse adquirido rádios para possibilitar a comunicação entre bombeiros e policias, os responsáveis dos dois organismos não conseguiram pôr-se de acordo quanto à escolha da frequência. Portanto nunca puseram os rádios em uso».
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Enquanto isso, cerca de mil pessoas que sobreviveram ao embate do Voo 11, esperam no cimo da torre norte, por não terem encontrado uma saída desobstruída. «O destino daquela gente fora traçado quatro décadas antes, quando as escadas foram agrupadas no centro do edifício», e eliminadas as de serviço por terem sido consideradas um desperdício. Noutro lado a entrega à morte parece surgir como libertação : Kely viu as chamas avançar pelo poço do elevador. «Pensou inalar profundamente o fumo, matar-se antes das chamas o alcançarem»; «a necessidade de respirar era tão premente que as pessoas empilhavam-se às janelas», outras mergulhavam no vazio para fugirem «de um inferno de combustível a arder (…) não tinham de abrir caminho por entre as chamas».
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102 Minutos, Jim Dwyer e Kevin Flynn; tradução de Saul Barata; Editorial Presença, Lisboa, Setembro de 2005
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© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O desejo das palavras de Leonard Cohen

Confessional, intimista, espiritual, lúcido, irónico, Leonard Cohen apresenta-se-nos em Livro do Desejo - Book of Longing, no original - com letras arrebatadoras, reconstrói memórias, detém-se em sonhos e perdas, observa a passagem do tempo no corpo e na alma, interpreta o mundo, dialoga com a vida. São poemas e textos em prosa, ilustrados com desenhos do próprio Cohen, feitos durante os vinte anos que esteve sem publicar, um «Atraso» dito assim: «Consigo aguentar bastante; não falo /enquanto as águas não transbordarem das margens /e rebentarem a represa. //Daí ter sido capaz de atrasar este livro bem para lá/do final do século XX.».
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(clicar na imagem para aumentar)
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Publicado entre nós em 2008, com justas honras mediáticas, o Livro do Desejo é uma edição bilingue, tem a chancela das extintas edições Quasi e tradução de Vasco Gato. A obra foi base do espectáculo A Song Cycle Based on the Poetry and Images of Leonard Cohen, de Philip Glass, e alguns dos poemas foram adaptados a canções. Agora, no seu regresso a Lisboa (a 10 de Setembro), este título recorda-nos que o canadiano nascido em 1934 antes de ser cantor foi poeta - com o primeiro livro de poemas, Let Us Compara Mythologies, em 1956, a que se seguiram doze livros, entre os quais dois romances - e é, indubitavelmente, essa corrente primeira a geratriz da magia que recebemos ao ouvir as canções de Leonard Cohen.
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quatro poemas:
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Corpo de Solidão
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Ela entrou no meu pé com o pé dela
e entrou na minha cintura com a neve dela.
Entrou no meu coração a dizer,
"Sim, é isso mesmo."
E foi assim que o Corpo de Solidão
se viu coberto por fora,
e por dentro se viu
o Corpo de Solidão abraçado.
Agora sempre que tento inspirar
ela segreda à minha falta de ar,
"Sim, meu amor, é isso mesmo, isso mesmo." (p.40)
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Gravidade

Nunca tentei ver o teu rosto,
Nem sequer quis conhecer
Os pormenores de um lugar inferior
Para onde teria de ir.
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Porém o amor é forte como a gravidade,
E toda a gente tem de cair.
Ao início é da macieira,
E depois do muro ocidental.
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Ao início é da macieira,
E depois do muro ocidental.
E depois de ti e depois de mim
E depois de um e de todos. (p.212)
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Metade do Mundo

Todas as noites ela vinha ter comigo
Eu cozinhava para ela, servia-lhe chá
Ela tinha trinta e tal naquela altura
conseguira fazer algum dinheiro, vivera com homens
Deitávamo-nos para dar e receber
debaixo do mosquiteiro branco
E uma vez que nenhuma contagem começara
vivíamos mil anos num só
As velas ardiam, a lua descia
a colina polida, a cidade leitosa
transparente, sem peso, luminosa,
destapando-nos aos dois
naquele chão fundamental,
onde o amor é fortuito, desatado, desencarcerado
e do mundo perfeito se acha metade. (p. 226)
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***
A inundação
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A inundação está a acumular-se
Em breve mover-se-á
Sobre todos os vales
Contra todos os telhados
O corpo afogar-se-á
E a alma libertar-se-á
Anoto tudo isto
Mas não tenho prova alguma  (p.229)

sábado, 4 de setembro de 2010

Palavras, a terra humilde de Ruy Duarte de Carvalho

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«A tarde cai na concha devoluta do meu peito /exausto me devolvo à pedra/e ao coração de um animal cansado», escreveu Ruy Duarte de Carvalho em versos dum poema contido em Lavra - poesia reunida 1970/2000, título indispensável a todos nós que ressurgiu nas livrarias depois da morte do autor, no passado dia 2 de Agosto (Ver Aqui Ruy Duarte de Carvalho por ele próprio).

Um grande homem que nos deixa um legado magistral em língua portuguesa, uma poesia de humildade, pura filigrana vocabular, com a palavra depurada até à sua essência cristalina, com o «chapinhar das frases» que narram brumas, «dias claros» e explicam o infinito. Uma poesia lúcida, daquela lucidez que nos acorda para o assombro. Uma poesia líquida, daquela liquidez que escorre ágil pelos corredores mais esconsos do ser para os inundar e fecundar. Ao lermos a obra de Ruy Duarte de Carvalho fazemos uma viagem pela viagem que ele fez: uma viagem ao silêncio da terra, das paisagens, das grutas, dos bichos, das «mulheres sentadas, das tarefas autónomas que os seus gestos tecem», aos rumores do espírito e à comoção.

«Não poderia traduzir palavras. Optei assim por traduzir a forma e descobrir palavras que acrescentadas são palavras novas», diz Ruy Duarte de Carvalho sobre o gesto que é o texto, lugar de respiração com compassos nomeados assim:

«Partir de uma palavra. Partir numa palavra. Confirmações possíveis. Fidelidade a quê? Texto, lugar do encontro. O pensamento, o tempo, a emoção, o som. Regra primeira – humildade.»

Extractos de poemas:

Eu tenho os dias claros
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Eu tenho os dias claros
de sucessivas luas de Setembro
e a noite que me impõe sinalizar
as direcções cruzadas das margens.
(…)

Entendes companheiro?
Eu estou aqui
a procurar não ir além da bárbara carícia
de um olhar sem tacto

e que nem uma lágrima machuque
a capa muito fina da lembrança
que tenho para dar-te. (p. 34)
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***
A gravação do rosto

(...)
O zinco dos telhados cobriu-me solidões
e esperanças que tu sabes.
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Esperei aqui por ti
bordei-te flores nos canteiros do céu
abri-te valas, semeei-te milhos
pari colheitas de searas vãs
abri os dedos, semeei calhaus.
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Espremi a terra e fiz-lhe água nascente
Povoei prados de criaturas doces
Ergui torres, girassóis gigantes
Dei vida e morte, vi nascer e morrer.
..
Aqui reinei, julguei, plantei videiras
caminhos, grutas de vestígios;
colhi olhares de animais bravios
deixei aos dedos aladas liberdades.
(…)
Aqui me dei, aqui me fiz,
desfiz, refiz amores.
Senti escorrer pelo corpo o pus das mais antigas chagas.
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Aqui me embebedei e vomitei o espanto.
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Aqui contei os passos
de uma distância que me não contém.
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Daqui abalo hoje, parido para o nada
apalpo a água
afago um bicho
ordeno qualquer coisa
e vou. (p.p 36 e 38)

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Poesia reunida de José Tolentino Mendonça

Está nas livrarias a 2ª edição aumentada e encadernada de A Noite Abre Meus Olhos [Poesia Reunida], de José Tolentino Mendonça, com a chancela da Assírio&Alvim. A antologia contém oito livros do autor, desde Os dias Contados (1990), com o qual se inaugurou na poesia, até a O viajante sem sono, editado no final do ano passado, também pela Assírio. É um livro de pequenas dimensões, capa dura e de grande beleza, na linha doutros que a editora tem feito, e chega na altura em que o autor lança o pequeno livro de prosas O Hipopótamo de Deus e outros textos.
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Um grande ano, pois, para José Tolentino Mendonça, padre, teólogo e poeta, que tem talhado uma poesia arrojada, inquiridora, nocturna, melancólica, pejada de vozes, plena de tensões a darem conta dos labirintos e dramas do homem actual. Uma missão fragosa da palavra - em poemas, muitos deles, muito condensados -, consciente da sua vulnerabilidade, lançada numa espécie de travessia ou peregrinação, com visão de descampados, caminhos de poeira, de fogo e de neve, túneis, muros, sempre à procura de novas possibilidades.
José Tolentino Mendonça é um nome da actual poesia portuguesa ao qual se deve dar a maior atenção.
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Dois poemas:

A estrada branca
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Atravessei contigo a minuciosa tarde
deste-me a tua mão, a vida parecia
difícil de estabelecer
acima do muro alto


folhas tremiam
ao invisível peso mais forte
Podia morrer por uma só destas coisas
que trazemos sem que possam ser ditas:
astros cruzam-se numa velocidade que apavora
inamovíveis glaciares por fim se deslocam
e na única forma que tem de acompanhar-te
o meu coração bate. (p.177)

***

Travessia


Os nossos dedos são cândidos
com brilhos impressos
e um tempo absorvido dos dois lados
Nos sinos, nos guizos, nas harpas
procuramos sem nenhuma restrição
o fogo e o gelo
a iluminação de um ramo dourado

Há um instante em que as nossas vozes
se fundem e destacam
reluzentes sobre a vida perpétua
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Atravessamos a noite com uma vontade irreprimível de cantar (p.240)

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domingo, 22 de agosto de 2010

Memórias de "Um Amor Feliz"

É considerado um dos melhores romances portugueses do séc. XX. Editado em 1986, Um Amor Feliz de David Mourão-Ferreira  narra um caso amoroso, adúltero e escaldante de um artista plástico com a senhora Y, sigla de sugestão erótica com que David inicia o romance.
História de um amor que se perdeu, o título de felicidade reporta-se, ainda, inevitavelmente, ao amor pela escrita, acto erótico e sexual de fecundação: «a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionando, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem mais disposta a por amor ser fecundada.».

Com recurso à Memória, e sempre ela como força da criação davidiana, reconstroem-se os meses de encontros arrebatadores e luxuriantes do narrador com senhora Y. O espelho está lá – o grande espelho no atelier onde se dão os encontros amorosos –, metáfora da memória, superfície da revelação, numa escrita magnificente pejada de símbolos:
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Estamos ambos de pé, estamos ambos nus, diante do enorme espelho aí à largura dessa parede: e todo eu me escondo atrás do seu corpo, assim lhe mostrando como só o seu corpo ali merece reflectir-se. Acaricio-lhe e sopeso-lhe os seios, ora um ora outro, na palma da minha mão direita, enquanto com os dedos da mão esquerda lhe modelo o pescoço, o ombro, o flanco, o ventre, o deslumbrante nascimento das coxas (…). Mas os seus olhos apenas espiam, na superfície do espelho, o reflexo do meu rosto semioculto.
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A premência de se recuperarem fidedignamente todas as sensações daquele amor proibido faz com que o narrador opte pelo longo diálogo que estabelece com a amada doutros tempos, recuperando ao ínfimo pormenor os momentos a dois, método de construção da história que terá magnetizado os leitores. Para essa cumplicidade com o texto concorre, também, a mestria das descrições sinestésicas, onde confluem o cheiro dos corpos em cópula, o sabor da pele em êxtase, o cetim da pele em torrente de arrepio, gemidos de vocábulos na cadência do tropel de cavalos, os olhos hipnotizados no outro, cada um dos sentidos sugestionando, motivando e enformando um outro sentido, num festim de imaginação: «raízes, ramos, folhas, frutos. E a gruta; e o grito. (…) Encontramo-nos, no entanto, muito mais despertos do que supúnhamos: sentimo-nos leves, límpidos, alados, lúcidos, como depois de uma trovoada».
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Metáfora doutro amor, esse sim imorredouro, está o laço a outro elemento feminino: a palavra - a escrita, a página, a Terra -, dito assim pelo autor:

(...) como se pode interpretar de outro modo esse velho lugar-comum de ter um filho, plantar uma árvore, escrever um livro? Só se em todos os casos se tratar de grandes e inevitáveis actos de amor. Com a Mulher, com a Terra, com a Língua. Mas de plantar árvores e ter filhos haverá sempre muita gente que se encarregue. De destruir árvores também; de estragar filhos igualmente. Em compensação, um livro, um livro que viva, multiplicado, durante alguns anos ou alguns séculos, e que depois vá morrendo, sem ninguém dar por isso, mas nunca de uma só vez, até ser enterrado na maior discrição ou até se ver de súbito renascido, inesperadamente ressuscitado, um livro com semelhante destino – luminoso por mais obscuro, obscuro por mais luminoso –, isso é que foi sempre o que me empolgou.

e ainda:

a maravilha que deve ser escrever um livro: a invenção dentro da memória; a memória dentro da invenção; e toda essa cavalgada de uma grande fuga, todo esse prodígio de umas poligâmicas núpcias, secretas e arrebatadas, com a feminina multidão das palavras: as que se entregam, as que se esquivam; as que é preciso perseguir, seduzir, ludibriar; as que por fim se deixam capturar, palpar, despir, penetrar e sorver, assim proporcionando, antes de se evaporarem, as horas supremas de um amor feliz. Não há matéria mais carnalmente incorpórea; nem mais disposta a por amor ser fecundada.

notas:
- Um Amor Feliz foi Prémio de Narrativa do Pen Clube Português, Prémio D. Dinis da Fundação da Casa de Mateus, Prémio de Ficção Município de Lisboa e Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de Escritores.
- a Editorial Presença tem uma edição mais recente do título, com capa diferente.


© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Um loquaz Papagaio

Eis uma leitura imprescindível nestas férias: O Papagaio de Flaubert, escrito por Julian Barnes, traduzido por Ana Maria Amador e acabado de dar à estampa pela Quetzal.

Uma viagem pela vida, psicologia e obra de Gustave Flaubert, numa narrativa originalíssima, arejada, bem-humorada, que casa o pitoresco e o reflexivo de forma soberana. «Um romance magistral sobre literatura, talento, comboios, compotas de groselha, ursos, ficção, vestidos de mulher, George Sand, política, século XIX, absurdo, morte, solidão, escritores, crítica literária — e beleza.». Em leitura, atesto: uma surpresa deste Verão, um tesouro literário de 238 páginas a que nenhum leitor ficará indiferente.

Extractos:

«Depois vi o papagaio. Estava numa pequena alcova, verde-vivo e de olho petulante, com a cabeça inclinada num ângulo interrogador. "Psittacus", dizia a etiqueta no extremo do poleiro: "Papagaio que G. Flaubert pediu ao Museu de Ruão e que esteve na sua mesa de trabalho enquanto escreveu Un Coeur Simple, onde tem o nome de Lulu, o papagaio de Félicité, a personagem principal do conto." A fotocópia de uma carta de Flaubert confirma o facto: o papagaio, escreveu ele, estava na sua secretária há três semanas, e começava a irritar-se de o ver. Lulu estava em óptimas condições, as penas tão onduladas e o olho tão irritante como deviam estar cem anos atrás.». p.p.17, 18
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«Os livros não se fazem como os filhos, mas como as pirâmides, com um plano longamente pensado, e pondo grandes blocos de pedra uns em cima dos outros, à custa de esforço, tempo e suor. E não serve para nada! Fica assim erguida no deserto! Mas domina-o de uma maneira prodigiosa. Os chacais mijam-lhe na base, e os burgueses trepam-lhe ao topo.»  p.43

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«No princípio fiquei ferido; no princípio importei-me, senti desprezo por mim. A minha mulher ia para a cama com outros homens: deveria preocupar-me com isso? Eu não ia para a cama com outras mulheres: deveria preocupar-me com isso? A Ellen era sempre gentil comigo: Deveria preocupar-me com isso? Gentil, não por se sentir culpada de adultério, simplesmente gentil. Eu trabalhava muito; ela era uma boa esposa para mim. Eu não tinha amantes porque não estava interessado; além disso, o estereótipo do médico sedutor é repugnante. Ellen tinha amantes porque, penso eu, estava interessada. Éramos felizes; éramos infelizes; tenho saudades dela. “Levar a vida a sério é magnífico ou estúpido?” (1855)». p. 203


Verão com Patrícia Melo

Mencionar a escritora paulistana Patrícia Melo é referir-se a originalidade, o inusitado, a desconstrução, a acutilância, o humor, a ironia e o tempero de um delicioso cinismo, tudo vertido em narrativas alucinantes e magnéticas. Jonas, o copromanta é um título editado no final do ano passado pela Campo das Letras, o sétimo título que a editora nos trouxe da autora . (ver Aqui).
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Personagem extraordinariamente bem construída, como é apanágio da autora, Jonas é um funcionário da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, leitor obsessivo, espírito estóico, criptólogo que, tendo por referência a escrita copta usada no Egipto até ao séc. XIII, perscruta diariamente as suas fezes, tentando desvendar o significado das formas fecais ao boiarem na retrete, hieróglifos que desenha num caderno para estudo apurado, e que são apresentados ao longo das páginas. Além da leitura de fezes e prever o futuro - a “dejectosofia” -, Jonas tem outro enigma para resolver: a razão de ver-se clonado, com a vida plagiada, num conto de Rubem Fonseca, o escritor brasileiro Prémio Camões, que é, assim, feito personagem nesta narrativa. Noto que Rubem Fonseca executou o guião para cinema da obra O Matador - livro que deu visibilidade a Patrícia Melo -, em 2003, com o título O Homem do Ano.

Extracto:

Quem possui dons divinatórios é por natureza um decifrador, um apaixonado, um jogador nato. Portanto, é fundamental, quando se vai prever o futuro, dominar também o principal axioma da criptografia, que é considerar todas as possibilidades. É uma luta. Nós e eles. O futuro e nós. O segredo e a revelação. O significado e o signo. A forma e o conteúdo. Eles se defendem e nós atacamos. Avançamos sobre Neco Juscelino e códigos. Li num manual de criptologia que uma simples oração como esta última, de apenas trinta e cinco letras, tem cinquenta nonilhões de formas de possíveis rearranjos. Um mar sem fim. Três os. Quatro emes. A lógica pura não dá conta de tudo. Por isso, precisamos ser imaginativos, dois es. Sem criatividade, três is, ficamos sem chão, dois as.
Tarde da noite, meus olhos perderam o foco. Dormi com as letras dançando em meus sonhos.
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Por sua vez, Mundo Perdido recupera a personagem Máiquel, o assassino a soldo de O Matador. O reino dos homens não tem segredos para Máiquel, tampouco o inferno do qual é seu ilustre representante. Neste Mundo Perdido, o criminoso regressa dez anos depois, foragido da polícia, para procurar a filha Samanta que não vê há uma década, levada por Erika, a ex-companheira, que fugiu com Marlénio, pastor evangélico de uma das muitas seitas bizarras que pululam no Brasil. No encalço da filha, percorre o país, passa por acampamentos de sem-terra, contacta com quadrilhas de tráfico de droga, entra e sai da Bolívia, ensejos para se conhecer a putrefacção social. Embora Máiquel pretenda deixar a sua antiga profissão de matador, a rede de morte envolve-o e configura-o, e ele comete vários assassinatos, com a destreza e frieza costumeiras, mas desta vez em nome da sobrevivência. Por isso, Máiquel é um anti-herói (ou herói brasileiro?): errante sem futuro, num mundo de violência e morte, que «aguenta o tranco» e sobrevive na loucura de que tem consciência, vertentes do carácter dual da personagem e a sua grande intenção romanesca: a loucura de uma sociedade sem esperança e ciente disso:

Estrada é bom pra pensar. Você engata a quinta, os pensamentos nascem do nada, de um buraco negro, você vê uma propaganda de seguro de vida para toda a família, uma família na mesa de jantar, sorrindo, papai, mamãe e filhinhos, e você pensa que a melhor hora de atacar é essa mesmo, quando todos estão se empanturrando, e depois os pensamentos continuam, um atrás do outro, e, quando você vê, você já está lá, pensando coisas, pum, o dia em que eu vou morrer, vermes, podridão, fim.

Embora sujeito de uma existência decadente, Máiquel nunca está só. Mulherengo, à sua volta estão sempre mulheres que o disputam, num fenómeno assim explicado: «As pessoas adoram encontrar outras pessoas afundadas na mesma merda que elas. Esse é o segredo dos alcoólicos anónimos, e das porcarias anónimas em geral

Por outro lado, a narração em jeito de discurso directo de Máiquel abre a porta ao calão, usado sem pejo, à crueza da palavra, confere vigor ao romance que se lê de um fôlego, num crescendo de intimismo com a personagem e, gradativamente, também em dualidade, o leitor sente repulsa e simpatia pelo “malandro” aparentemente sem escrúpulos, mas apaixonado por um cão vadio e doente, que mete dó de tão feio, logo baptizado de Tigre, que ele cuida com tolerância e afeição desmedidas, - porque «cachorro é gente e gente é cachorro» – e que leva consigo nos seus caminhos infernais. Se a ternura e o humor contagiantes das inúmeras passagens, nos desatam sorrisos, é igualmente certo que amplificam o sentido trágico de vidas gastas em «mera fila para morte», deixando-nos um travo amargo de inquietação.
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© Teresa Sá Couto