Texto editado no site Orgia Literária em 27 de Julho
A literatura contamina? Quantos dos nossos sentimentos serão uma invenção da escrita? Teremos nós originalidade para criar sentimentos próprios que não estejam escritos? O Romper das Ondas, o quarto e mais recente romance de Rui Herbon, que deu ao seu autor o Prémio Cidade de Almada, impele-nos a estas reflexões e ao questionamento do papel da actual literatura.
Num puzzle de inquietações, contra todos os comodismos literários e todos os lugares comuns, o texto mostra-nos como é necessário romper as ondas para lhes conhecer o interior, o mesmo é dizer, abri-las no silêncio estrídulo da página: «não há nada mais envilecido que a violência do silêncio», lê-se neste compêndio de indagação, que desbrava corredores escusos e sombrios do ser humano enquanto retrata uma geração citadina de «destino particular e europeu» e marcada pelas impossibilidades.
A abrir, uma música de fundo: «o adágio de Albinoni era zumbido entre obstinado e tranquilizador», contudo, «atrás da cortina monumental daquelas notas havia um sonoro interruptor de luz; um receio?». E o coração do receio fala pela voz duma jovem mulher, cujo nome só é referido, como que por acaso, no final do romance, facto nada isento, porquanto carrega a questão da procura da identidade. É uma mulher que chega a uma grande cidade, com um livro na bagagem, à espera do seu destino literário ou uma mulher que procura o «esplendor de uma voz». A música (inserida no vasto sistema de sons onde abundam rumores e ecos), a mulher e o livro são os três pilares que sustêm a complexa teia narrativa tecida com depuração e poesia.
A mulher sonha em cinemascope, e é assim que o texto avança, com o ritmo do pensamento das personagens achatado nas páginas, em fragmentos plenos de visualismo, com olhar sempre oblíquo, de dedução em dedução, pois «nada é exactamente o que parece ser», como no romance que a mulher traz na bagagem – o romance dentro do romance e ambos se contaminam –, onde «tudo ia e vinha, subia e descia, como a água, embaciando até o mais insignificante impulso para forjar um objecto conciso». Trata-se de um método que cria afecções, micro-desordens no que na vida temos por rotineiro, que age sobre objectos, acontecimentos, personagens, gestos, sentimentos, desestruturando “tudo” em «momentos que se dilatam, outros comprimem-se, outros suspendem-se».
Assim surge o crítico que vai analisar o romance da jovem mulher, e ambos protagonizam uma história de amor, um «vínculo fundado no respeito dos silêncios»: «Ele e eu, certamente, éramos como duas intrigas que guardávamos com cuidado de qualquer possível revelação», diz a mulher; a outra história de amor é a de um professor e a sua mulher, personagens chamadas ao romance, entre muitas outras com aparições mais ou menos fortuitas, como uma mulher com uma cabeça de medusa, um bêbado com ar de «soldado galhardo para produzir um arroto colossal», um estudante, mas todas a enformar a tese sobre «gente apanhada entre o cimento e a noite».
Em diálogo com o labiríntico da existência dos obstruídos, surgem os espaços, como o hotel com «tantas portas quantos os alvéolos de uma colmeia», uma espécie de réplica das casas da cidade: «pequenos conventos, pequenos cárceres»; surge o tempo, caótico, que às vezes confirma e outras desqualifica, entre recordações e avaliações, como a alcatifa vermelho berrante do hotel, «fiapos de um passado vermelho», a compendiar sensações nefastas e a reconsiderar a ausência de esperança; surge o perturbante quadro surrealista, com um sonho batido pelo uivo do vento e uma sineta, onde se juntam ratazanas, sangue e cinzas, vivos e mortos «confundidos no delírio da salvação»; surgem as linhas de força dos dois romances: «frustração, derrota e desprezo».
Noção de Voz e de Testemunha
«Você encontrava-se ali», «você mesma», diz o texto implicando o leitor na voz narrativa, levando-o a vestir a pele da mulher que o narra, sentindo-lhe os pés «intumescidos» pelo palmilhar da cidade, a Babel perfeita «para pessoas sem raízes ou enjoadas da ficção absurda da identidade», confirmando-lhe as «têmporas ardentes» de quem estudou para uma carreira inútil, atestando-lhe até a Anedonia, doença «cujos sintomas são a infelicidade e não encontrar prazer nas coisas que outros desfrutam». Com o fenómeno de linguagem que cria a ambiguidade da voz narrativa, Rui Herbon compromete, com mestria, o leitor enquanto testemunha da dimensão opaca da vida, permite-lhe transformar a sua própria experiência, a partir da experiência verbal do texto, pensar a solidão existencial através do seu reconhecimento. «Compreender, em definitivo, é render uma homenagem de entrega», lê-se sobre a verosimilhança do relato deste romance que se ajusta «às referências da época» e, como no romance da mulher, «abundam as metáforas», o discurso é «marcadamente nietzcheano» e, acrescento, dostoievskiano.
Com efeito, se o jogo dostoievskiano é um ritual de prazer e sobrevivência que apresenta à razão do homem outras razões alternativas que, confrontado com elas, não as pode ignorar, em O Romper das Ondas o leitor observa as personagens vertidas num qualquer jogo de cartas, mais ou menos clandestino, na roleta de um casino ou na da vida, projectando-se, também ele, na sua condição de jogador, não como forma de se alhear do real, mas de se ligar ao real, tentando inventar o jogo dos outros e reinventar-se. A metáfora do jogo entronca na própria construção da obra literária, com este O Romper das Ondas a lançar a reflexão sobre a procura do cânone e a fazer o leitor testemunha de todo o processo: o romance que a mulher escreve está «cheio de subentendidos», é «falso como uma pérola fabricada pelo homem», e há que fazer uma sinopse para agradar aos leitores e à crítica.
Na terceira, e última, parte, volta-se ao início, volta a ouvir-se o adágio, a mulher está novamente só, com o romance «perpetuamente inacabado», com o «futuro em branco», à espera de «um esplendor incerto» que ponha outra vez a sua vida em jogo: é a espiral do tempo que se «cinge cada vez mais ao centro», um vicioso e irremediável centro de inquietação.
O Romper das Ondas, Rui Herbon; Parceria A.M. Pereira, Lisboa, 2009
Nota: Livros de Rui Herbon: Voar como os Pássaros, Chorar como as Nuvens (Um Filme Português), Prémio Eixo-Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa 2002; Absinto (A Inútil Deambulação da Escrita), Prémio António Paulouro 2004, da cidade Fundão; Os Girassóis.
Não editados, mas premiados, Rui Herbon tem: Eterno Retorno, Prémio Afonso Lopes Vieira 2005, da cidade de Leiria, Prémio Orlando Gonçalves 2005, da Amadora e Menção Honrosa no Prémio Alves Redol 2005, de Vila Franca de Xira; A Preto e Branco, livro de contos, Prémio Nacional de Literatura Lions de Portugal 2007; Masoch, Prémio Maria Matos 2007 de Dramaturgia.
páginas de Rui Herbon:
Rui Herbon
A Escada de Penrose