terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Os Olhos do Homem que Chorava no Rio


Há um tipógrafo que chora palavras, algures nas margens do rio Douro. Chora-as para o rio, e apazigua-se.
Há uma rapariga que, sentada na beira do rio, colhe, com «a concha das mãos dos olhos» sôfregos, palavras choradas pelo tipógrafo. Lê-as, e aprende a chorá-las, engrossando-se o caudal. E há o leitor, adicto, puxado para essa correnteza donde jamais quererá sair. Assim se cumpre o mistério: «Ler é tudo isso, afinal, e ainda gostar e continuar lendo, mesmo depois das lágrimas e dos sustos, das angústias e dos medos».

O livro Os Olhos do Homem que Chorava no Rio é um romance escrito a quatro mãos exímias: Manuel Jorge Marmelo e Ana Paula Tavares. É um livro de mistérios sobre o mistério das palavras. É impossível entrarmos nele sem que façamos, de imediato, parte dele. Ele aloja-nos na sua parte maior, a construção da nossa própria história. Um portento de originalidade. Um adejar de alma.

A escrita, como sacrifício e penitência é explanada no e pelo tipógrafo. Ele sabe todas as palavras, e todos os livros. É no rio da língua, onde empresta o coração, que as chora, «devagarinho entre soluços e pausas para respirar», lava-as, simplifica-as, liberta-as para leitores ávidos. As palavras, de todos os livros, são sempre as mesmas, remisturadas e recombinadas. Algumas são talhadas para a perfídia, outras para o colo e o mimo. É o escritor, o responsável pelos humores do rio, pela trama narrativa, por acender o lume das emoções. A rapariga que lê é o motivo último do tipógrafo. Sem ela, ele não existiria, pois «nenhuma das suas lágrimas seria lida».

A leitura como recriação é apresentada na rapariga que lê com sobressalto «as sílabas que se destacam da água, aumentando o ritmo ao fio das palavras, repete-as baixinho como se tivesse medo de as perder lê os fragmentos de histórias que completa todas as tardes». Ás vezes, «Num dia de mais palavras, um pequeno coração pode não caber no peito.». Outras vezes, «transita o corpóreo para um limbo qualquer, para um recanto inabitado onde se guardam as coisas que detêm os segredos do mundo.». São as vivências com as palavras que nos ensinam a chorá-las, a clarificá-las. Não será assim com todos os afectos?
Acompanhando quem escreve e quem lê, existe, ainda, uma «legião de Vultos», mais solares, ou mais sombrios. É por isso, que no meio das palavras, se ouvem «ecos de vozes, por vezes sombras de vozes, frases como bolhas de ar». Há que esperar pela música, o som perfeito do Adufe. Este som “mais-que-perfeito” acompanha toda a prosa poética desta história surpreendente, interlocutora com o mais fundo de nós.Resta-nos dizer que este livro imaginado só adquire a sua consistência no exterior, em nós seus leitores que lhe definimos o enredo:

Donde vêm as palavras? Que fundos têm? Que correnteza é essa onde elas se juntam e em vertigem estremecem-nos na fímbria dos nervos? Que legião de vultos é essa que vigia as águas e nos faz deitar ao rio de palavras, mais água de palavras, num caudal sempre insatisfeito?

Se sabemos que as palavras vêm do assombro, respondemos ao mistério com um círculo vicioso de mistérios. Um desafio para bravas emoções.
Este é, indubitavelmente, um livro para se ler de um fôlego. Teremos, depois, a certeza que o lemos mal, e necessitaremos de recomeçar. Há que lê-lo devagar e chorar cada palavra. Ao som da música que dele escorre, subiremos o rio, da foz até à fonte. Quantas vezes forem precisas. Quantas vezes quisermos construir a nossa história.

Os Olhos do Homem que Chorava no Rio; Ana Paula Tavares / Manuel Jorge Marmelo; Editorial Caminho, Lisboa, Janeiro de 2005

*elaborei este texto em 2005, na altura do lançamento do livro.

© Teresa Sá Couto

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

A canção do povo português na mestria de Fernando Lopes Graça


Ritmos cardíacos de funda ancestralidade, as cantigas populares são retratos da alma de um povo. À procura dessa alma antiga, e da invenção melódica do povo – uma das formas mais difíceis de invenção artística –, o maestro Fernando Lopes Graça recolheu criticamente cantigas tradicionais de todo o país. É esse trabalho que encontramos coligido na soberba Antologia A Canção Popular Portuguesa Em Fernando Lopes-Graça.
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«Restituir ao povo a sua música» é, pois, a missiva, o apelo e a urgência deste prodígio editorial, organizado por Alexandre Branco Weffort, que aqui invoco, quando se celebram 103 anos do nascimento de Fernando Lopes Graça (17 de Dezembro de 1906), considerado um dos músicos e compositores mais significativos da história da Música Portuguesa e da Península Ibérica. A Antologia crítica faz-se acompanhar de um CDROM contendo exemplos sonoros de composições referidas na Antologia e registos ao vivo da voz e de actuações do próprio maestro. Voz, estudo, paixão e mestria de um homem que, do Minho ao Algarve, passando pela Beira Baixa (Castelo Branco e Fundão) e bebendo a singularidade melódica do Alentejo, soube interpretar e imortalizar a alma sonora antiga do povo português.
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Fernando Lopes-Graça nasceu em Tomar em 1906 e faleceu a 27 Novembro de 1994, na freguesia da Parede, Cascais. Deixou uma obra imensa, comprovando-se as suas palavras: “a música é a minha única religião” e “a Academia é o meu lar musical”. Dessa sua religião nos dá conta a Antologia de 450 páginas, e o CD, dois registos complementares para prazeres de conhecimento.
Bem organizada, a Antologia crítica está dividida em 5 capítulos e repleta de fotografias de Fernando Lopes-Graça, em várias fases da sua vida, bem como de regiões do país que ele tanto palmilhou para reabilitar sonorizando. No prefácio, Mário Vieira de Carvalho faz uma contextualização histórica política e cultural da época de Fernando Lopes-Graça e traça o percurso do maestro pessoal e artístico, porquanto se interferem, nomeadamente a sua iniciação política nos anos vinte e os tempos conturbados da década seguinte que o atiram para o exílio em Paris, a partir de 1937.

É longe da pátria que o “olhar melhor a alcança” e é do exílio – onde bebe a modernidade – que Fernando Lopes-Graça desenvolve o sentimento telúrico que a sua intervenção musical posteriormente comprovaria.
A Antologia colige textos do maestro, sobre o Folclore e a Música Popular Portuguesa, resultado do trabalho de prospecção feito de norte a sul de Portugal, escritos que, por isso, mostram a intervenção na realidade, e não apenas a reflexão distanciada. A partir da terceira parte da colectânea, reúnem-se as composições de Lopes-Graça - letras e partituras -, sobre a canção popular e o seu tratamento erudito, uma relação explicada assim pelo maestro:
As canções que ides ouvir roubei-as eu ao nosso povo, que tem um grande tesouro delas: e roubei-lhas, não para as guardar para mim, mas com o propósito de lhas restituir, possivelmente com juro do roubo. (…) Não lhas restituo, porém, tal-qualmente lhas roubei: fiquei com alguma coisa delas e, ao devolver-lhas, procurei que elas não ficassem diminuídas no seu valor, antes diligenciei aumentá-las com aquele pequeno juro que está nas minhas posses despender.
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O CDROM abre com a voz do maestro, num registo ao vivo. Oferecem-se quatro caminhos informativos: um esboço biográfico de Lopes-Graça; a listagem da sua obra musical – as grandes formações instrumentais, Música Coral, Música de Câmara, Piano, Voz e piano, instrumentos diversos – com títulos e datas de formação; A Obra Literária; A Canção Popular Portuguesa, com 16 páginas para consulta e sempre com exemplos sonoros dos vários temas, referenciados na Antologia, interpretados muitas vezes ao piano pelo próprio Lopes-Graça. São incluídos também vários registos inéditos, como o do Coro da Academia de Amadores de Música, sob a direcção do maestro, captado ao vivo em 1976.
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A Canção Popular Portuguesa Em Fernando Lopes-Graça, organização de Alexandre Branco Weffort; Editorial Caminho, Lisboa 2006

© Teresa Sá Couto

domingo, 13 de dezembro de 2009

Duas lições de Ondjaki

A alegria é uma coisa bonita que se sente no coração. E é bonita porque nos faz voar. Esta é uma lição para as crianças, impressa no novíssimo livro de Ondjaki, um voo de palavras límpidas numa festa de mágicos azuis pintalgados de encarnados, laranjas e amarelos das ilustrações de Danuta Wojciechowska. O voo do Golfinho é o terceiro livro infantil do escritor angolano que escreveu o mágico, indispensável e já clássico da literatura infantil Ynari – a menina das cinco tranças, também com ilustrações de Danuta Wojciechowska, adaptado ao teatro sempre e ainda com representações de sucesso, e, já neste ano de 2009, o livro O Leão e o Coelho Saltitão, com ilustrações de Rachel Caiano.

Este O voo do golfinho traz a história de um golfinho que sentia o chamamento de ser pássaro e, nas travessuras no azul do mar, dava asas ao sonho de rodopiar no azul do céu. No ensaio dos voos, num dia de mar liso, vê-se espelhado na água, com bico de pássaro, corpo de pássaro e olhar de pássaro. Reconhecendo ter um corpo diferente dos outros golfinhos, decide ir brincar perto das nuvens onde encontra muitos pássaros diferentes, melhor dizendo, muitos animais terrestres que, como ele, quiseram e conseguiram ser pássaros, souberam conquistar a liberdade: “Tu sempre foste pássaro?”, perguntei a um deles, muito colorido. “Não. Eu era uma serpente mas sempre quis ser pássaro.”. Outro tinha sido canguru outro tinha sido camaleão outro tinha sido gato.

O facto de a narrativa ser contada na primeira pessoa, pelo herói da nova aventura do Ser, da clareza vocabular, da cor e movimento das ilustrações, faz com que a metáfora chegue sem obstáculos ao entendimento das crianças, permitindo uma adesão imediata à mensagem cheia de asas: «e se todos tivéssemos o dom de mudar de corpo ao longo da vida? E se voar fosse mesmo possível para todos os que sempre desejaram ter asas?». Convenhamos que obras desta valia traçam as rotas certas do crescimento dos miúdos, ao mesmo tempo que nos lembram a importância de se ter sempre olhos de pássaro.

O voo do golfinho, Ondjaki e Danuta Wojciechowska; Editorial Caminho, 2009


Cinco tranças de conhecimento

Com três partes se faz uma trança, com cinco tranças aprende-se a viver. Ynari – A Menina das Cinco Tranças, que não se desfazem, é mais do que um livro. São 43 páginas encantadas, a essência da vida, gotas de crescimento. É um livro pequeno, para gente menor, mas a sua missão é uma causa maior que nos envolve a todos. Afinal, nem tudo o que é menor é uma coisa pequena: o coração é pequeno e cabe “tanta coisa lá dentro”.
Escrita por Ondjaki e ilustrada por Danuta Wojciechowska este livro é dedicado a “todas as crianças angolanas e para as crianças de todo o mundo e para ti, Angola” e urde uma história que decorre na Angola profunda, entre as cubatas, o capim e o rio, iluminada pelo desejo de conhecimento de uma menina que nega a insanidade da guerra.

Ynari é a nossa heroína que tem sede de aprender. Encontra, à beira do rio, um “homem simplesmente pequeno” que a ajuda a crescer. Ensina-lhe que “existem palavras que estão no nosso coração, mas não ainda na nossa boca”. Mostra-lhe como, quando e com quem as deve utilizar. Ensina-lhe que a palavra MEDO não deve ser empregue para aquilo que não faz mal, que ADMIRAÇÃO usa-se quando o céu está “cheio de estrelas para se contar” e que a CONFUSÃO acontece quando há sonhos cheios de "muitas pessoas e de muitas palavras".

No seu papel de mestre, o homem pequeno leva-a à sua aldeia de pessoas pequenas onde é apresentada a um "velho muito velho" que inventava palavras e a "uma velha muito velha" que destruía as que eram inúteis. Lá, aprende a palavra PERMUTA, a “troca que pode não ser do mesmo tamanho, cor, ou sabor”, mas que traz felicidade a ambas as partes. Lá, aprende a palavra MAGIA, ao ver que se podem transformar armas em barro; reconstrói a palavra EXPLOSÃO, que deveria caracterizar o choque das estrelas, a sua explosãode cores:”quando se sabe ver as coisas simples da vida descobre-se que o mundo é muito, muito bonito”.
Acreditando que os sonhos a ajudam a viver e empenhada em tornar INÚTIL a palavra GUERRA, parte à procura da sua magia, da construção da palavra PAZ. Com ternura e generosidade, desloca-se a 5 aldeias em guerra e sacrifica as suas 5 tranças, deixando cada uma em cada aldeia, através de uma permuta mágica e alquímica.
A lição final, apreendida por Ynari, é que o coração também inventa palavras como a AMIZADE, e a expressão “OLHAR O OUTRO”. A mensagem de fraternidade provoca-nos um arrepio que desperta em nós a verdade e a pureza primordiais: “Primeiro somos crianças e coração bate. Depois somos caçados por nosso coração. Depois descobrimos criança no coração”.

A partir da fórmula introdutória “Era uma vez uma menina que tinha cinco tranças lindas…”, o leitor jamais se esquecerá deste livro. Ficar-lhe-á na alma, para sempre, o eco deste grito puro, tão soterrado pela competição e individualismo, a que nos escravizou a época moderna. Ondjaki diz que para escrever esta estória teve de “espremer um sonho”. Cabe-nos incentivá-lo, em todas as gotas, para que muitas se reúnam num rio pujante que nos transporte, finalmente, no seu caudal de generosidade.

Ynari – A Menina das Cinco Tranças, Ondjaki e Danuta Wojciechowska; Editorial Caminho, 2004

© Teresa Sá Couto

(a um jovem avô)

Uma invenção triangular

A semente da criação pode dar uma belíssima história. A ideia é simples e, talvez por isso mesmo, surpreendente. O Cão Triangular começou em desenhos de Evelina Oliveira. E foi crescendo, pois assim são as ideias, até que a vida pictórica do animal pediu uma narrativa em palavras, isto é, o cão triangular pedia companhia. Maria Leonor Barbosa Soares abraça o projecto e explica às crianças a alquimia: «É por isso que é bom trabalhar em colaboração com outra pessoa. Aprende-se mais depressa, fazem-se coisas que não seríamos capazes de fazer individualmente e é muito divertido. A Evelina e eu sugerimos que experimentes também.».

Assim nasce uma história sobre a diferença e a amizade, contada pelo protagonista, um cão com corpo em forma de triângulo, «azul-turquesa de dia, fluorescente ao luar, que não parece assemelhar-se a seja o que for, bonito ou feio», que teve de aprender a gostar de si e a «aproveitar ao máximo todas as capacidades e qualidades» do seu corpo diferente do dos cães comuns. Nas andanças, o cão triangular acaba por encontrar um rapaz de cara triangular, sozinho, como ele, e conhecedor do medo pelas mesmas razões que ele. Um grande pássaro amarelo e hexagonal acaba por se juntar aos dois amigos e os três descobrem que a sua força triplicava.

Evelina Oliveira - que ilustrou, entre muitos outros, o Zé do Saco de Manuel Jorge Marmelo, Zeca Afonso, o andarilho da voz de ouro e A coragem do General sem Medo, ambos de José Jorge Letria - cria as ambiências de solidão, desamparo, tristeza, alegria e afago, enche as páginas de cor, movimento, expressividade e cumplicidade com os jovens leitores, como é seu apanágio.

Coloquial, Maria Leonor Barbosa conta, de forma simples, as vicissitudes do cão na demanda da felicidade, o espanto e o júbilo da descoberta de novos amigos, degraus da sua  robustez, enceta diálogo directo com os leitores, estratégia que ora permite a identificação com as vivências dos miúdos que se sentem excluídos, ora veicula uma lição de carinho, compreensão e respeito pelos animais: «Foi um momento verdadeiramente extraordinário. Só então percebi como eu queria ter dono e como me tinha custado andar sozinho! Seria capaz de seguir aquele menino fosse para onde fosse... como um cão! Estavas à espera que eu dissesse outra coisa, não era? Mas não posso dizer melhor, acredita. Compreendi a minha realidade de cão naquele momento ou, dito de outra maneira, percebi o que queria da vida: uma matilha ou um humano em quem pudesse confiar e merecesse o meu respeito e que, por sua vez, me acarinhasse e respeitasse.».

O Cão Triangular, Evelina Oliveira e Maria Leonor Barbosa Soares; Campo das Letras, 2009

© Teresa Sá Couto

sábado, 12 de dezembro de 2009

O legado de um andarilho

(texto editado no sítio da Orgia Literária em 08.12.09)

As Voltas de um Andarilho – Fragmentos da vida e obra de José Afonso de Viriato Teles: eis um documento raro sobre um sonho agarrado à vida concreta, firmado no telurismo português e braços estendidos a outros lugares do mundo onde despontava a utopia; uma voz sobre uma das vozes da resistência ao fascismo, que rasgou as sombras e iluminou quem nelas vivia; um diálogo entre gerações sobre «o que faz falta», o idealismo, a persistência na luta pela Liberdade.

«Mais uma vez, a luz. Mas aqui, desta vez, sem misticismo. Para o Viriato tratou-se só de erguer a lâmpada sobre as extraordinárias funções do Zeca, e nisso encontrar quem nós temos saudades de ser», diz Sérgio Godinho no Prefácio titulado «A que distância está o Zeca?». E luz é o substantivo genesíaco que nomeia esta obra alagada de memória, que palavras emissárias e imagens perpetuam, para grande felicidade nossa. Na base, uma segura, minuciosa e depurada investigação da vida de José Afonso, que casa factos reais com lugares interiores, só mensuráveis pelo tempo, porque é a narração do tempo que aqui encontramos, o tempo social, político, insurrecto. Depois, a mestria da composição, marca iniludível da escrita de Viriato Teles, que transforma entrevistas e reportagens em edifícios sensoriais e de comprometimento ímpar com o leitor.

Editada em 1999, e esgotadíssima, a obra é republicada pela Assírio & Alvim «com algumas actualizações, correcções e acrescentos», assim dito por Viriato Teles. Clara é também a missão que o jornalista e escritor cumpre soberanamente: «participar, tanto quanto possível, na luta contra o esquecimento, que é como se sabe um dos vícios portugueses mais comuns».

A voz e o legado

Além da história da vida de José Afonso, Viriato Teles transmite-nos um exemplo de vida de quem fez do compromisso com o seu tempo uma forma de se manter vivo. Um exemplo testemunhado por Viriato, pelo estreito contacto com Zeca, documentado nas entrevistas que lhe fez e nos encontros «sem marcação nem “agenda” prévia, ao sabor dos acasos e das lutas».
Desvenda-se na raiz o homem nascido para encarnar uma aspiração que tatuou numa existência andarilha, mobilizado pelo apelo solidário do Outro, na demanda da «irmandade». O «trovador de muitos sonhos», que, nos anos 60, em Coimbra, criava baladas e «abria uma revolução musical e poética que abalou a estrutura da canção ligeira portuguesa», cedo terá percebido que a música seria uma forma de chegar às populações. A esta juntou o gosto de «ensinar os filhos dos outros», com a leccionação em História e o envio de recados através das aulas.

«Um provocador, por instinto», refere Viriato Teles. «A música é comprometida quando o músico, como cidadão, é um homem comprometido», e «o que é preciso é criar desassossego»; «acima de tudo, é preciso agitar, não ficar parado, ter coragem, quer se trate de música ou de política. E nós, neste país, somos tão pouco corajosos que, qualquer dia, estamos reduzidos à condição de “homenzinhos” e “mulherzinhas”. Temos é que ser gente, pá!», diz Zeca, regista-o Viriato, dizendo-nos também que Zeca se esquivava constantemente a falar de música, sendo ela o ponto de partida para outras divagações:

«Praticamente nunca canto por gosto», diz Zeca em 1980, «Prefiro estudar, agradar-me-ia tirar outro curso, às vezes até me passa pela cabeça que gostava de mudar de personalidade, como as personagens de Pirandello». Eram (e são) caminhos de um homem livre que «vive na recusa do oportunismo, na análise permanente das suas posições, na interrogação constante», portador da consciência contra o conformismo, «um verdadeiro e incorrigível independente»; era o timbre de um homem livre, que afirmou ser o seu próprio “comité central”, que decidiu, em 1985, apoiar a candidatura de Maria de Lurdes Pintassilgo à Presidência da República, que apoiou as lutas anti-imperialistas na América Latina, que se ligou a «grupos de apoio à Reforma Agrária, nomeadamente na Alemanha e na Holanda» e fez parte do Comité Central de Apoio à Frente Polisário.

Com a destreza que lhe é característica, Viriato Teles capta e regista em breves linhas a síntese perfeita do homem José Afonso: Zeca, na sua casa em Azeitão, «simultaneamente bem-disposto e mordaz, por vezes até impiedoso”, perante o “perguntador”», entre a viola, a um canto, um retrato de Che Guevara, na parede, e «uma faiança com o texto de Grândola Vila Morena», a encher o espaço todo.

É sobre este homem que, com alguma vergonha pela iniquidade lusa, vem a lição da Galiza: a grande homenaxe, uma «festa rubra, viva e alegre», em Maio de 1987, “um testemunho de solidariedade”, uma lição que culminou, em Maio de 2009, com a inauguração, em Santiago de Compostela, do Parque José Afonso, perto do local onde, em 10 de Maio de 1972, Zeca cantou pela primeira vez em público Grândola Vila Morena.

Por cá, a intemporalidade das suas mensagens clareia-se no interesse das novas gerações de músicos e nas constantes versões das suas cantigas. Na «Discografia Anotada» do autor de Os Filhos da Madrugada, Viriato Teles mostra-nos o «Zeca para além de Zeca», o registo dos intérpretes de Zeca até à actualidade, desde Adriano Correia de Oliveira, que interpretou a Balada da Esperança, em 1961, até Rão Kyao, com os temas Balada de Outono e Menino d’ Oiro, de 2009.

As Voltas de um Andarilho – Fragmentos da vida e obra de José Afonso, Viriato Teles; Assírio & Alvim, 2009


© Teresa Sá Couto


* Ver toda a informação disponível sobre este livro, e uma entrevista a Viriato Teles, AQUI

*Outros textos meus sobre outros livros de Viriato Teles, AQUI

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O regresso de Albert Cossery

A Antígona acabou de distribuir a sua prenda de Natal. Uma magnífica prenda. A editora divulgou as primeiras páginas do romance inacabado de Albert Cossery, por morte do autor, aos 94 anos, em Paris, em Junho de 2009, no hotel onde viveu mais de sessenta anos. De Albert Cossery, a Antígona tem publicados, e disponíveis: A Casa da Morte Certa, A Violência e o Escárnio, As Cores da Infâmia, Mandriões no Vale Fértil, Mendigos e Altivos, Os Homens Esquecidos de Deus, Uma Ambição no Deserto, Uma Conjura de Saltimbancos e , de Michel Mitrani, Conversas com Albert Cossery.




Uma época de filhos de cães

Mokhtar sentou-se na esplanada de um café de aspecto sórdido, mas cujo rádio difundia uma melodia da cantora mítica que lhe fazia lembrar Malika, a sua mãe, que não podia ouvir este lamento de um amor perdido sem que os olhos se lhe marejassem de lágrimas. A esta hora matinal, para além de um jovem adormecido sobre um banco, como um destroço rejeitado pela noite, o local proporcionava uma calma, sem dúvida precária, mas por agora propícia à reflexão. Evidentemente, não estava nas suas intenções reflectir de novo sobre a perenidade da estupidez humana, nem vituperar os lastimáveis dirigentes deste mundo, pois todos estes indivíduos se encontravam há muito esgotados e não eram merecedores de qualquer outra crítica mais aprofundada. Numa palavra, o que ele desejava de imediato era um recanto tranquilo onde pudesse recordar – antes que perdesse todo o sabor – o incidente burlesco que precipitara o seu despedimento do lugar de professor de uma escola de um bairro popular da cidade costeira, considerada histórica, a que chamam Alexandria. Tudo começara por uma discussão sem motivo aparente com o director do estabelecimento escolar, um homem pleno de ignorância e, ainda por cima, casado com uma mulher feia. Esta dupla particularidade tornava-o detestável e intolerante nas suas relações com as pessoas inteligentes e solteiras. Após algumas insinuações pérfidas acerca da concupiscência ligada ao celibato, este gerador de crianças degeneradas acusara-o de ter feito esquecer aos seus alunos, no espaço de alguns meses, o que eles haviam demorado muitos anos a aprender. Mokhtar, nada surpreendido com este elogio que considerava absolutamente merecido, não pôde resistir à tentação de dar uma estocada definitiva e global na hierarquia, mesmo que esta fosse de medíocre qualidade. Respondeu com um tom de comiseração, como se estivesse a dar os pêsames a um viúvo amargurado, que os seus alunos tinham mesmo assim aprendido uma coisa muito importante para o futuro: que o director desta escola era um burro, e que era preciso substituí-lo por um burro de verdade, certamente mais agradável de contemplar. Para qualquer espírito livre dos preconceitos seculares de sacralização do homem, era evidente que tratar um humano de burro constituía um insulto para o burro. Mas o director, incapaz de assimilar uma doutrina tão audaciosa, pôs-se a gritar que um louco estava a querer degolá-lo, atraindo com os seus berros uma matilha de salvadores benévolos que agarraram Mokhtar e o atiraram, com as imprecações habituais, para fora da escola.

A Mokhtar não desagradou esta expulsão brutal, que lhe conferia um estatuto de dissidente político e de mártir da liberdade de expressão, capaz de suscitar o interesse, para além dos mares, dos intelectuais dos ricos países democráticos. Estes bravos pensadores, adeptos de um humanismo sem fronteiras, tinham a faculdade de tornar célebre a pessoa mais insignificante do planeta, desde que esta tivesse sofrido alguns vexames ou alguns meses de prisão por parte de um governo qualificado, para a circunstância, de ditadura sangrenta. Esta ideia divertia-o como uma enorme brincadeira. Por um momento, entreteve-se com a perspectiva de um exílio dourado em terra estrangeira, solicitado e adulado por todas as cabeças pensantes do hemisfério ocidental. Tratava-se, e ele tinha consciência disso, de uma apoteose longínqua, e mesmo improvável, pela simples razão de que o género de dissidência de que era o genial inventor nada tinha em comum com uma oposição a qualquer governo. A Mokhtar todos os governos eram completamente indiferentes, fossem eles eleitos ou impostos pela força das armas, pois todos provinham do mesmo molde e eram compostos pelos mesmos malfeitores. Era, pois, estúpido querer derrubar um governo, para depois ficar diante de outro pior do que o anterior. E na obrigação de recomeçar indefinidamente esta comédia grotesca. Para Mokhtar, a única maneira de combater um regime político só podia conceber-se no humor e no escárnio, longe de toda a disciplina e das fadigas que qualquer revolução geralmente implica. Na verdade, tratava-se de conseguir uma distracção fora das normas e não uma prova debilitante para a saúde. O seu combate contra a ignomínia reinante não tornava necessário um grupo armado nem mesmo uma sigla que referisse a sua existência. Era um combate solitário, não uma congregação de massas ululantes, mas uma operação prazenteira de salvação da humanidade, sem lhe pedir a opinião e sem esperar uma autorização vinda do céu. Há muito tempo que Mokhtar decidira que o seu papel na vida seria o de dinamitar o pensamento universal e os seus miasmas fétidos que atulhavam há séculos o cérebro fraco dos miseráveis. Esmagadas e fragilizadas, as massas humanas ainda sobreviventes à superfície do Globo foram levadas a acreditar em tudo o que lhes conta uma propaganda que ofende em permanência a verdade. Afigurava-se-lhe com nitidez que o drama da injustiça social só desaparecerá no dia em que os pobres deixarem de crer nos valores eternos da civilização, um palmarés de mentiras deliberadas, programado para os manter para sempre na escravidão. Por exemplo, a honestidade. Os pobres estão convencidos de que a honestidade é a virtude fundamental que lhes vai salvar a alma das chamas do inferno, e esta crença condena-os a uma miséria endémica, enquanto os ricos, cujos antepassados inventaram a palavra, sem jamais terem acreditado nela, continuam a prosperar. É certo que esta análise, aparentemente pueril, da economia capitalista, não satisfará os espíritos sérios, inimigos implacáveis da verdade, porque o seu simplismo impede-os de parecer profundos. Três meses antes, quando se candidatou a este lugar de professor, Mokhtar não ambicionava de maneira nenhuma ser profundo em matéria de ensino. Professor era o emprego ideal para começar a pôr em prática a destruição do discurso pernicioso habitual em todos estes continentes, cuja tradicional impostura é proclamarem-se civilizados. Com efeito, a escola proporcionava-lhe uma ocasião magnífica para influenciar jovens alunos, mais dispostos à subversão do que os adultos anestesiados de longa data pelo vocabulário dominante. A indignação do director deu-lhe a certeza de ter sido bem sucedido, pelo menos em relação a uma parte ínfima da população, mas este magro resultado representava uma carga explosiva, manipulada por três dezenas de adolescentes dotados de uma consciência renovada, e que se preparavam para prodigalizar por todo o lado o seu novo saber. Mokhtar via este bando de alegres missionários crescer e disseminar-se por todos os países e, porque não, além-fronteiras em direcção às tristes cidades do Sul moribundo.

A visão deste futuro mirífico foi bruscamente perturbada pelos latidos de um cão que dava a impressão de ser de uma espécie rara, desconhecida no bairro. Havia nestes latidos uma notável dose de insolência e como que um desafio lançado contra sabe-se lá que raça maldita. Subjugado e seduzido por este desempenho, Mokhtar dispôs-se a procurar o animal com a intenção de o adoptar, caso ele tivesse fugido a um dono autoritário e mal-educado. A ideia de passear com um cão pela trela enchia-o já de júbilo como um ataque subtil ao mito insuportável da supremacia do homem. Pôs-se assim a inspeccionar a esplanada, mas, em vez de um encontro amigável com um membro eminente da raça canina, foi ofuscado por um esplendor de cores cambiantes sob os raios pálidos de um sol de Inverno, bruscamente surgido de entre as nuvens, como que para participar neste surpreendente espectáculo feérico. O responsável por esta intrusão excêntrica da moda, símbolo da modernidade, no cenário imundo da esplanada, era um jovem dos seus vinte anos, de físico atraente e porte aristocrático, sentado a uma mesa à entrada do café, e que exibia uma panóplia vestimentar de grande ousadia na escolha dos tecidos e das cores. Este jovem esteta envergara, para uma visita turística nestas paragens deserdadas, calças de linho branco, camisa de seda vermelha, bem aberta no peito, e casaco preto de caxemira, com um pequeno ramo de jasmim na botoeira. Para completar este traje magnificente e requintado, calçava sapatos de verniz, como os que usam os ministros e os proxenetas quando vão à ópera. Mas as originalidades deste enviado do diabo não se ficavam por aqui: estava a fumar um cigarro de haxixe, cujo fumo parado desenhava uma espécie de auréola sobre a sua cabeça.

Perante esta cena inusitada, Mokhtar aguardou calmamente o que se ia passar a seguir, estranhamente consciente de que este príncipe da elegância, perdido neste lugar, tinha para lhe transmitir uma mensagem da mais alta importância. Dir-se-ia que o portador da mensagem se apercebera desta expectativa e que estava pronto para lhe responder, pois, sem mais delongas, abandonou a sua pose descontraída, endireitou-se na cadeira, ergueu os olhos ao céu, e depois, com a determinação do cantor que entoa a ária que o celebrizou, pôs-se a ladrar com um tom implacável e obstinadamente sarcástico, parecendo assim exprimir a sua raiva para com os habitantes da casa em frente. Passado um momento, parou com os latidos e virou-se para Mokhtar, visivelmente satisfeito com a sua proeza.

Mokhtar aplaudiu discretamente para não acordar o homem adormecido no seu banco, único elemento de realidade tangível que o impedia de ficar alarmado. Sem qualquer dúvida, estes latidos continham um sentido oculto que ele tinha de decifrar o mais rapidamente possível, mas o imitador de cães furiosos não lhe deu tempo para isso ao desferir-lhe a seguinte frase insensata:

- Estava certo de que compreenderias.
- De onde vem essa certeza? – perguntou Mokhtar. – Gostaria muito de conhecer as razões dela.
O jovem pimpão, que se chamava Haydar, levantou-se para se ir sentar a uma mesa junto de Mokhtar e começou a falar com um tom fortemente caloroso, como se pretendesse cativar o seu interlocutor com vista a uma cumplicidade eterna.
- Passava por aqui, guiado apenas pelo acaso, quando te vi sentado, sozinho, neste café piolhoso. Mas, em vez da tristeza e do abatimento do solitário, pairava nos teus lábios um sorriso muito especial, o género de sorriso malicioso que é um desafio à infâmia universal. Sentias-te mais poderoso do que algum monarca jamais foi. Isto levou-me a pensar que tinha obtido a tua compreensão.

Tradução: Luís Leitão
Revisão: Carla da Silva Pereira

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Portalegre recebe pintura de Isabel Botelho

Passagens Secretas é o título da exposição de pintura de Isabel Botelho, na cidade de Portalegre. Depois da exposição Beautiful Unknown, no Palácio Galveias, em Lisboa, em Fevereiro de 2009, a pintora volta a espargir magia com novos trabalhos.
Inaugurada a 28 de Novembro, a exposição surge dividida e, consequentemente, de fulgor ampliado, em duas galerias: Passagens Secretas I, na Galeria do Museu da Tapeçaria de Portalegre, Guy Fino e Passagens Secretas II, na Galeria de S. Sebastião, no Edificio da Câmara Municipal de Portalegre. Para ver até 17 de Janeiro de 2010.

Agradeço à pintora Isabel Botelho o envio das fotografias da inauguração, já que não pude estar presente. Ver os trabalhos da exposição, AQUI, na página de Isabel Botelho.


.Deixo, ainda  a digitalização da minha nota que acompanha oficialmente a divulgação da exposição:


(clicar na imagem para aumentar)

Esplendor infantil de Carla Almeida

Ainda falta muito? é o terceiro e mais recente livro infantil de Carla Maia de Almeida, mais uma marca de um estupendo percurso nas letras para os mais novos, que urge aqui apresentar.
A história deste “capítulo” é simples; a composição – pureza narrativa e ilustrações de Alex Gozlau – é arrebatadora. Primeiro a verosimilhança com a situação narrada, o que possibilita a cumplicidade com os jovens leitores e a partilha intergeracional: conta-se uma viagem de automóvel feita por dois adultos, pai e mãe, com os dois filhos pequenos, um rapaz e uma rapariga. O objectivo é visitar os avós a uma aldeia distante e de ambiência distinta do local onde as crianças habitam.

A imobilidade imposta no banco traseiro da viatura faz com que a viagem seja um tormento para as crianças. Ainda falta muito? é a pergunta que o miúdo mais pequeno coloca constantemente. Será a irmã, um pouco mais velha, a narradora da história da impaciência e a veiculadora da memória guarda que, nos seus tenros anos, já acumulou. Segue-se a narrativa, passos de crescimento, irrupções de júbilo, registos de afectos, projecções de futuro.

«O meu irmão ainda é muito pequeno. Só quer atenção e mimos. Não se lembra da aldeia, nem do cão chamado Roger, nem dos gatos que eram primos. E assim não podemos conversar. Mas depois, Como é que era? Como é que eu podia pensar? Como é que eu conseguia estar a sós com a minha imaginação? Aindaaaaaaaa faaaaaaaalta muuuuuuuto?, diz ele, quase a gritar», lê-se, ao mesmo tempo que se mostra que, afinal, uma viagem longa pode ser emocinante, bastando tão-só o motor veloz da imaginação. As ilustrações, que juntam brilhantemente fotografia e pintura, enchem as páginas de cor e expressividade.

Ainda Falta Muito?, Carla Maia de Almeida (texto) e Alex Gozblau (ilustrações); Editorial Caminho, 2009

Titula-se Não quero usar óculos, é o segundo livro infantil de Carla Maria de Almeida e atesta que o segredo da genialidade está em inventar a simplicidade. Ora vejamos: um miúdo fica a saber que tem de usar óculos. Enquanto os espera, vai discorrendo sobre as formas das armações, pondo em cada hipótese os desejos com que se liga ao mundo. As ilustrações de André Letria objectivam a narrativa textual, e o festim pictórico que corre em páginas inteiras, instigando a criatividade do leitor.

Com efeito, a arte ao serviço das crianças está em trinta e duas páginas de cartolina, envolvidas por uma capa dura, carregam o espanto da arte literário e plástica, que junta palavras e imagens e cor ao serviço no incentivo desenvolvimento, intelectual, emocional e artístico das crianças. Conta-se a breve história, de forma límpida e de fácil identificação ao universo infantil, de um rapaz que vai a um médico «com um nome comprido: O-F-T-A-L-M-O-L-O-G-I-S-T-A», e fica a saber que tem de usar óculos. Enquanto os espera vai imaginando o seu formato: balizas, pois um dia quer ser guarda-redes; à maneira dos piratas, pois há-de ser «um terrível pirata»; guarda-chuvas, para poder andar à Chuva.

Comprovando-se que, quando libertada, a imaginação corre sem limites alimentando-se do próprio voo, o rapaz logo imagina óculos especiais que lhe permitam uma eficaz aproximação da natureza, das árvores, do mar, e de óculos para ver ao longe. Uma alegoria numa lição também para muitos adultos que “precisam de óculos” para poderem ver e, consequentemente, respeitar o meio ambiente, e poderem ver o «longe» do futuro. O rapaz da história também projecta óculos para «entender certas coisas» que lhe dizem não ser para a sua idade.

Preenchendo totalmente as páginas, com cores fortes e contrastantes, dinamizadas, pelo movimento das cerdas do pincel que ora espalham, em lastro, a tinta no fundo, ora se detêm, deixando nos pormenores o mesmo testemunho do processo de criação, André Letria vai construindo uma montra de óculos com narrativas do mundo interior infantil, que muitas vezes não divisamos. Também neste sentido, este é um livro de partilha entre pais e filhos, de revelações e deslumbramentos.

Não quero usar óculos, Carla Maia de Almeida (texto) e André Letria (ilustrações); Editorial Caminho, Lisboa, 2008

O Gato e a Rainha só é o livro de estreia de Carla Maia Almeida, um livro encantado que multiplica encantamentos, destinado a crianças a partir dos 8 anos. Fala de um gato que «Nunca tinha ido à Lua, mas pensava muito no assunto». «O mundo não é como vem nos livros – é muito mais redondo!»: palavras sábias a que se juntam as portentosas ilustrações Júlio Vanzeler, tudo a lembrar-nos que um livro pode ter as coordenadas, os instrumentos e os impulsos para se explorar o mundo.

Depois da casa destruída por um incêndio, o gato Radar é obrigado a recomeçar a vida. Parte à procura de uma nova casa para morar, «que tivesse cheiro, memórias….». Começa aqui a estrada da aprendizagem: há dor em qualquer recomeço porquanto se carrega o que se teve e se perdeu, acrescido do medo do desconhecido e do desnorte dessa nova empreitada. Todavia, a vida é uma «sopa de tudo» e, havendo fome, há que tomá-la. Assim se vê o gato (e os leitores) pelos caminhos do mundo que vinham ter com ele, e pelos quais seguia sem pensar, até encontrar uma encruzilhada com três tabuletas, cada qual indicando um caminho misterioso; cabia-lhe a difícil opção de escolher pela Terra da Água Salgada ou Terra do riso Eterno ou Terra do silêncio Prometido. Na Terra do Riso Eterno só era permitido rir. Auscultando-se, considerou que «Pior do que chorar quando se está triste, só mesmo obrigar-se a rir quando não se tem vontade.». Mostra-se que muitas vezes se escolhem caminhos mais empurrados pela intuição do que ditados pela razão: porque razão o gato escolheu a Terra do Silêncio Profundo? «ele não sabia porquê, mas sabia porque sim. Era o bastante para continuar a andar.».

Andando, encontra a Rainha Só, que deixou de o ser quando cativada pela amizade do novo amigo. No entanto, o gato mostra-nos o valor e a importância de se estar só: «às vezes também precisava de se sentir um Gato Só. Era bom poder miar alto, sem ter de explicar o que estava a dizer. Apenas a miar. Por incrível que parecesse, miar alto podia ser melhor do que comer chocolate em pó às colheradas ou afiar as unhas no sofá preferido dela. E era uma coisa tão fácil de fazer! Com tantas conversas e brincadeiras, quase se tinha esquecido. Decidiu que, a partir dali, haveria um dia DMA (Dia de Miar Alto) sempre que fosse necessário.».

Seres muitos diferentes, – mas, como o gato diz, não teria graça nenhuma se fôssemos todos iguais – a Rainha e o gato decidem partir juntos à procura de nova casa. Ela já pode prescindir das suas chaves pesadas, que carregava ao pescoço, por deter as chaves leves do espírito; abandona a sua «máquina-de-costurar-palavras», que se lhe afigura inútil por não conseguir dar respostas sobre o sonho e a aventura humana, pois sabe que só ela pode encontrar as respostas.

O gato e a Rainha Só, Carla Maria de Almeida; ilustrações de Júlio Vanzeler; Editorial Caminho, Lisboa 2005

© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Stefan Zweig, a eterna nostalgia

«O Porvir da Nostalgia – Uma vida de Stefan Zweig» não é uma mera biografia do fecundo escritor austríaco e investigador do mundo. Escrita por Jean-Jacques Lafaye, e galardoada com o Prix Cazes-Brasserie Lipp 1990, a obra é uma narrativa apaixonante, literariamente poderosa, um documento de época construído com os fios do fulgor, da sede da descoberta, da inquietude, dos abismos secretos e da nostalgia de Stefan Zweig.

«O livro é de uma lucidez e de uma actualidade impressionantes. Vale a pena lê-lo e meditá-lo, com os olhos de hoje», escreve Mário Soares no prefácio desta edição portuguesa, numa referência aos valores humanistas e éticos de Stefan Zweig. «O porvir da nostalgia é a morte escolhida, a morte consentida – e a porta do mistério», escreve o biógrafo nesta obra que ilumina os corredores do enigma, aludindo ao suicídio de Zweig, aos 61 anos, em Petrópolis, Brasil, em 1942.
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Por nove capítulos, enformados em 228 páginas, corre a escrita magnetizante, seguindo a ordem cronológica dos factos, crescimento, amadurecimento e queda do biografado. Coloquial e cúmplice, a narrativa faz, logo nas primeiras páginas, com que o leitor se esqueça que está perante uma biografia, para fazer parte do pulsar intenso dos quadros sociais e psicológicos apresentados. A utilização do Discurso Indirecto Livre propicia ao leitor dialogar intimamente com a personalidade de Stefan Zweig, por intermédio do narrador, estratega de toda a magia.

No original, L’Avenir de La Nostalgie - soberanamente traduzido por Clara d’ Ovar para «O Porvir da Nostalgia», como, aliás, é de excelência toda a tradução - , a obra foi escrita em 1989, e é o primeiro livro de Jean-Jacques Lafaye que, entretanto, reuniu uma obra admirável nas áreas da literatura e da música. Antigo Agente Internacional de Amália Rodrigues, é dele o título «Amália, uma voz no mundo», editado em Portugal pela Quetzal. A sua ligação à alma portuguesa valeu-lhe, ainda, a nomeação de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, em 2006, pelo então Presidente da República Jorge Sampaio.
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Personalidade singular num texto notável
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Nascido no seio burguês da sociedade vienense, «desde a mais tenra infância, o pequeno Stefan foi habituado a exprimir-se em inglês, francês, italiano e alemão: ele é o príncipe anónimo de uma família europeia», diz-nos o texto, antecipando a paixão do escritor por uma Europa unida, guiando-nos magistralmente pelo percurso singular de Stefan Zweig, homem e obra, imagem e espelho, confundindo-se ambas. «Judeu, quase não tem consciência de o ser, apenas ouve vagamente falar de certos grupos de jovens nacionalistas anti-semitas. Austríaco, nem ele sabe a que ponto o será, de tal modo o seu horizonte intelectual ultrapassa as fronteiras para abraçar a Europa inteira, sua múltipla terra natal.».

Aos 16 anos era já um «genial poeta» e «são as palavras que lhe oferecem a vida que respira». Apenas «foi três vezes à Universidade: a primeira para se matricular, a segunda para pedir o certificado de assiduidade (!!!) e a terceira para uma agradável conversa com os professores.». Lê muito, e cada vez mais, «escreve novos poemas e não hesita em receber amigos às onze da manhã, em mangas de camisa, despenteado, “navegando” entre montes de livros que cobrem o chão como dantes no seu quarto de criança, os olhos cansados: é que em plena noite uma ideia o acordou e o levou para a mesa de trabalho! Uma boémia activa e fecunda, uma sábia desorganização, um longo e lento desregramento da sua antiga disciplina escolar, tudo o que ele esperava!». Aos 23 anos doutorou-se em filosofia com uma tese sobre Taine. Viaja pela Europa, atinge o mundo todo. Traduz poetas estrangeiros, para aprender com eles; é também ensaísta, dramaturgo, novelista, contista, historiador e biógrafo.

Enquanto o espírito se eleva a altos pensamentos, a alma «enterra-se no negrume de tentações incertas»: «Ao longo da sua vida Zweig manterá uma curiosidade um pouco mórbida pelas formas marginais do sentimento e do desejo»; «O sentimento trágico da existência já está no coração da literatura de Zweig: ele quer sempre interpretar a extraordinária tensão dos nervos, a paixão secreta que dirige a vida e os actos. Esta densidade explosiva que se contenta em aflorar exerce sobre a sua alma uma atracção perigosa, no princípio de um século em que, por duas vezes, ele verá a derrocada.».

A vivência da guerra desmorona-lhe o seu mundo. Crítico do nazismo e regimes fascistas, vê na palavra a salvação: «pelo domínio da palavra, tenho de despertar a consciência dos homens transviados por outras fanfarras. Pela escrita, ilustrar o imperativo da criação que não é mais do que conduzir o género humano para mais humanidade! Mostrar como os chefes enganam os povos nos caminhos do ódio, como as gentes ávidas de conquistas se ligam aos profetas da desgraça, como do caos das paixões pode nascer uma ordem superior, de que maneira uma derrota terrestre contém a promessa da vitória espiritual: é a meta que Zweig se impõe quando começa o seu Jeremias, em pleno 1916. É o seu primeiro combate de homem contra a guerra – em plena guerra.».

Em 1942, Zweig é visitado pela vertigem mórbida, termina o romance O jogador de Xadrez, e joga o xeque-mate da sua existência. «Zweig não foi levado ao suicídio apenas pela guerra mundial, o fantasma de Hitler e a perseguição ao povo judeu. Não; é um homem de sessenta anos que põe fim ao erro de toda uma existência ao serviço de um ideal».


O Porvir da Nostalgia – Uma vida de Stefan Zweig, Jean-Jacques Lafaye; editorial Campo das Letras, Porto, Novembro 2007
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© Teresa Sá Couto

domingo, 22 de novembro de 2009

Escalpe de Amadeu Baptista

Cumplicidade da carne, «expressão do desejo», o centro do corpo, «inquietação na procura do corpo», saliva, esperma, «vício absoluto», paixão amorosa, «sortílegos caminhos», a solidão do amor e a luta contra as sombras que acossam o acto primordial da entrega. Nas livrarias, Escalpe, um poema longo de Amadeu Baptista, com imagens da arte de António Ferra e chancela da &etc .




Extracto:

Nos meus e nos teus rins se acumulam
segredos desusados,
o real é um cúmulo de árvores e areais
desoladores,
visões devastadoras do silêncio,
espaços inaudíveis a sitiar-nos os ombros.

Mas nós, sendo sagrados, ardemos tanto
que sopesamos os ritmos da memória e os da terra,
ainda volúveis,
ainda corça e gamo,
ainda mensageiros.

Assim adormecemos.

Assim velo o teu sono com o meu sono,
assim velas o meu sono com o teu sono.

E são os nossos sonhos sonhos lúbricos,
e fluis suavemente pelos meus lábios,
e fluo suavemente pelos teus lábios.
(p.p. 34,35)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Blackpot, Dennis McShade

texto editado no site Orgia Literária em 17.11.09

Blackpot é a criação literária de um pesadelo, a invenção de uma chave, uma libertação. É uma trama na prosa certeira e desconcertantemente eficaz de Dennis McShade, que convoca a morte, conversa com ela, verte o encontro em palavras como dentes a morderem a precariedade da existência, a estreiteza do mundo. Falo de transgressão: a transgressão dos limites que é imanente à arte, e da qual a obra de Dinis Machado é digníssima representante.

É implacável, negro e assombrosamente iluminado, este Blackpot. Carrega um enleado e terrível pacto com a morte, enfrenta-lhe o carácter inexorável para a corrigir e dar voz à vida. É uma novela sobre a noite que implora, sobre a morte que se vê ao espelho à procura de outra forma que o povoe, à procura de outro sonho, à procura de outra voz. Por isso, o espelho onde a personagem Gulliver se mira é a vigília que procura decifrar o labirinto; por isto, entrarmos em Blackpot é entrarmos no «pesadelo», como o descrito por Jorge Luís Borges, uma «sala circular cujas paredes e portas eram de espelho, de modo que quem entrasse nessa sala ficava no centro de um labirinto realmente infinito». E o labirinto espraia-se por 31 capítulos curtos, vertiginosos e cinematográficos, onde as personagens se matam umas às outras e disparar é o verbo auditivo que a prosa silencia de forma terrível: sob o fumo do tabaco (da narrativa) e o assombro inaudito (do leitor), cumprem-se as balas surdas disparadas das armas com silenciador ou da metralhadora assim emudecida: «as balas da metralhadora estilhaçaram objectos e enfiaram-se, surdamente, nas paredes».
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Não há uma personagem central neste Blackpot. Ela será a morte ou a vida, porquanto nomear uma é evidenciar a outra. Há uma dezena de homens, membros do crime organizado, emboscados na sua própria rede, assassinos precisos no disparo, especialistas em ruínas, solitários, expostos ao critério misterioso de «reorganização cíclica» da Organização. Se há conflito no interior do próprio jogo com regras que obscuramente mudam de direcções, o conflito está também nos próprios jogadores enquanto lugares-limite com que se faz a questionação do homem na sua humanidade: no jogo da vida há que matar primeiro, pois «os acontecimentos, às vezes, vão à nossa frente». Também a questão da negação da identidade tem em Blackpot uma forma indeclinável: o nome dos homens é tão-só o posto que têm na engrenagem da Organização, pelo que, depois de mortos, o seus nomes passam a outros.

Mostrando-nos o trabalho dos relógios na sombra, a narrativa mostra-nos que viver é envelhecer, o acumular de males, a doença. Também neste sentido, Blackpot impõe o silêncio da meditação: a vida é dano, o homem joguete, pelo que há que encontrar o life force (de Bernard Shaw), a força vital para se recriar a existência, força que está no exercício da escrita com que se esconjura o desamparo. Na narrativa, desfilam homens marcados, desenganados, de meia-idade, homens que são o que é ninguém e uma campainha sinistra diz-nos que ninguém é o que todos somos.
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Gulliver, que não prescinde de esfregar o corpo e as mãos com álcool, olha para o espelho, sente náuseas, procura a sanita, vomita alguma bílis e sente-se aliviado. Falar para o retrato do pai morto, como fazia há 30 anos, também o alivia; Armador mata há 40 anos. Ajuda a filha a estudar Matemática, tosse e cospe sangue para um lenço, tem dores de cabeça e febre. Leva a filha à escola, beija-a, vê-a desaparecer no fundo do átrio. E sabe que vai morrer, de doença ou com uma bala; Lorenzo só vê sombras, «ardiam-lhe os olhos e chorava devagar», nada que os médicos pudessem fazer. Com os óculos, olha para o calendário da parede, desiste ao tentar ler os títulos dos jornais, lava os olhos e espera; Ornatto tem uma perna a apodrecer, sem cura, só lhe restando os comprimidos para as dores; Condor sabe que o querem matar, passa a mão pelo peito flácido e preocupa-se com o peso excessivo; Legos discorre sobre os seus problemas enquanto pesca, espera que o peixe morda a isca e gosta daquela «mistura de placidez e impaciência». No final, Victor discursa à amizade e «Os candelabros e as jóias cintilaram.». Até quando é Victor o vencedor, inquire-se em cima dum texto que recorda o carácter precário da existência e que a vida sem nós é pensável.

Contra a morte, toda a morte, há ainda e sempre a voz, mostra-nos Dennis McShade neste Blackpot, onde recebemos, também, fortíssimo, o eco da voz de Herberto Helder: «Olha: eu queria saber em que parte / se morre, para ter uma flor e com ela / atravessar vozes leves e ardentes e crimes / sem roupa. Existe nas ilhas um silêncio para / a poeira tremer, e o teu rosto se voltar lentamente cheio / de febre para o lado de uma canção /terrível e fria.» (1)

(1) Herberto Helder, Ofício Cantante, p.247, Assírio & Alvim

Dennis McShade, Blackpot, Assírio e Alvim, 2009
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© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Imperdível

(clicar na imagem para aumentar)

sábado, 14 de novembro de 2009

Vitor Oliveira Jorge com Electri-cidade em Lisboa

Depois da invicta, no passado dia 5 de Novembro, o arqueólogo, professor catedrático, ensaísta e poeta Vitor Oliveira Jorge vem a Lisboa lançar o seu mais recente livro de poesia: Electri-cidade tem a chancela das edições Colibri e será apresentado pelo poeta Casimiro de Brito, no próximo dia 17 de Novembro, pelas 19 horas, na Casa Fernando Pessoa.

Vitor Oliveira Jorge, nascido em Lisboa em 1948, mas radicado na cidade do Porto desde 1975, tem uma vasta obra publicada, tanto no domínio da Arqueologia como no da Poesia; trata-se de um olhar imenso pelos vestígios e enigmas do tempo e interpelação dos mistérios do canto lírico, em deflagração neste novo compêndio poético de 260 páginas.

Electri-cidade será, pois, um título para desvendar com o máximo interesse, porquanto talhado por um autor de diálogo interdisciplinar, que em 2001 foi distinguido com o grau de Grande Oficial da Ordem do Mérito pelo conjunto do seu trabalho, outrossim pela sua actividade cívica em prol da defesa do património arqueológico português.


Ler o poema Falas, na página de Vitor Oliveira Jorge

Outro poema, agora do livro Casa das Máquinas:

Àqueles a quem foi cometida a tarefa
De decifrar o enigma do centro das casas,
A aparição no centro, o corpo pleno,
E o olhar:

Parai nesta suspensão, nesta descida do tecto,
Nesta subida do chão: ruído de tábuas no tempo,
Longe: um comboio deve ter atravessado a noite,
Ou o crepúsculo, ou a manhã: tanto faz, foi longe.

Parai neste corpo. Neste centro com lábios, e ombros,
E mãos dispostas de ambos os lados, enquanto
As madeiras estalam, os bichos invisíveis das madeiras
Se alimentam. Mas os lábios, mas o rosto, mas a presença
Impõe-se, como uma imperatriz: no centro, na casa,
Estirada de alto a baixo do texto. E eu aguardo.

Prolongo o enigma das alças, da roupa interior,
Do frémito que a presença enuncia, e no entanto
Não diz. Apenas vem ao centro, desce e sobe, entre
As paredes perenes do cubo, este enigma cinzento
E melancólico. Um comboio atravessa-se ao longe,
Cinde a consciência como um fluxo de sangue,
Como uma linha recta. Mas o corpo nada diz, apresenta-se.

E todo o enigma, a sua extraordinária presença,
Se vai esgueirando de verso para verso, entre os versos,
Entre as sílabas, até se prender na língua e a língua
Correr ao longe para o comboio, à procura de uns lábios,
De alguém que já aqui esteve no passado, e agora se renova

Entre estas quatro paredes, assim de chofre no algodão
Das saias, na cintura das alças, no silêncio da roupa
Interior. Foi há muitos anos, incontáveis anos, tantos
Quantas as pessoas que circularam no comboio, e partiram
Para sempre na calada da noite, ou do crepúsculo, ou da manhã,

E agora aqui regressam, na presença do corpo, na sacralidade
Do centro, na perfeição da simetria, na apresentação obstinada
Do enigma, do supremo enigma de um tu em saias e ligas,
Em mãos depostas, em braços totalmente nus,

Reflectindo o eco longínquo do oferecimento, no modo como
Os ombros se ajustam à aproximação das mãos do verso,
Nessa insuspeita, assustadora harmonia. Cheira este odor
De hortelã-pimenta: são todos os fantasmas da casa que voltam,
Que me rodeiam, amáveis, na tua figura, pedindo tudo e nada.

Bebo um chá quente e contemplo-te, oh aparição perfeita,
Completa, disponível, formidável obra de amor fotográfico.

Um comboio atravessa ao longe o sulco do sangue. Lembras-te?
Fazia uma cruz, uma cruz sobre o território, e essa cruz
Reproduzia-se aqui dentro, do lado de cá da cal, nas paredes
E nos nossos corpos, marcava indelevelmente o centro.

Isso. Exactamente aí.
Quando a mão do poema te atravessava por debaixo nas saias,
E saía pela cabeça, esplendorosa, digna da soberania dos lábios:

Era (é) uma paragem:
Nunca daí saímos.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A perdição e a Assírio & Alvim



Pois é. A Assírio & Alvim não se cansa de nos desafiar para os jubilosos caminhos da perdição. No Verão passado foi a Feira do Livro Manuseado, que a editora teve patente na sua livraria da Rua Passos Manuel, nº 67, onde os nossos únicos problemas foram resistir à visita e regressar com um carrego e um sorriso do mesmo quilate.


Agora, no coração do Chiado, na Rua do Carmo, e até 31 de Dezembro, o desafio é o que se segue :
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Livros mais baratos, livros esgotados, livros impossíveis de encontrar, livros de artista, livros de tiragem limitada, e ainda, postais, cartazes e outras surpresas.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Novo livro de Casimiro de Brito

Casimiro de Brito, o poeta que através do «doloroso prazer da escrita» nos oferece, há meio século, a ignescência do barro humano e a celebração dos enigmas do amor, tem novo livro: En la vía del maestro - Un viaje con Laozi (Na via do mestre - Uma viagem com Laozi,) é uma edição bilingue com tradução espanhola de Montserrat Gibert e chancela da prestigiada editora espanhola Olifante. O lançamento da obra está marcado para o próximo dia 11 de Novembro, no Instituto Cervantes de Lisboa (na Rua de Santa Marta, 43-F), às 18.30, com apresentação a cargo do poeta espanhol Ángel Guinda.


Como o título desvela, e Casimiro de Brito aclara no primeiro belíssimo texto de abertura, esta é a foz poética de um rio que teve a sua nascente nas gotas cristalinas do mestre Lao Zi. Uma viagem longínqua, feita de arrebatamentos e transmutações, como o é a de toda a criação artística. Todavia, o que desagua neste En la vía del maestro é a pureza vocabular a dar conta da torrente subterrânea do ser humano, na sua secreta solidão, do carácter inexorável do tempo, da vida matizada de ganhos e perdas, sonhos e desesperanças, da sábia rendição à Natureza, da voz do amor, motor e legitimação da travessia existencial.
Com agradecimentos a Casimiro de Brito que me facultou o acesso a esta novíssima obra, e à qual regressarei com o olhar que merece, transcrevo dois poemas:

O segredo está na combinação
Do barro e do ar; o segredo,
Nos dedos que envolvem a taça a
Casca do ovo o rio onde se acolhe
A penumbra que deixei pelo caminho.
Assim eu possa buscar o monge mudo,
O princípio desconhecido. (p. 34)
***
Adormeço na praia escura
Ar poluído
Nuvens secas: envelheço. Refreia os desejos,
Diz o mestre. Poucos tenho. A laranja
De som dos meus filhos
Amadurece noutras casas, longe da sabedoria
Que não alcancei. A bondade o conhecimento
Perdem-se na bruma das manhãs no pirilampo
Das noites. Devolvo ao mundo
O barro que me sobra
De tanta escultura falhada. O mestre
Não sabe nada. (p.50)


notas: página de Casimiro de Brito ;
o pnt Literatura tem vindo a editar o Livro de Eros de Casimiro de Brito


© Teresa Sá Couto

sábado, 7 de novembro de 2009

A inventiva de Patrícia Portela, em exibição

Há mais de uma década que a encenadora Patrícia Portela nos brinda em palco com explosões multidisciplinares, inventivas, irreverentes, inteligentes e singulares. odília ou a história das musas confusas do cérebro é a primeira peça de teatro infanto-juvenil da autora, estreada no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, em Outubro 2006, no Festival Temps d´Images, com visitas a outros pontos do país. O espectáculo volta a palco, no Teatro Aveirense, a 10 e 11 de Novembro, às 10h30 e às 14h30, inserido no Ciclo Arte e Novas Tecnologias. Ver mais, aqui.

«A solidão medita, e a meditação cria», disse António Feliciano Castilho. Mas donde vêm as ideias que dão origem à criação? Patrícia Portela explica aos mais novos como tudo acontece no silêncio do cérebro, através da história de odília, musa solitária e desempregada e que, cansada de Esperar, resolve Acontecer. Imperdível, o pequeno livro editado pela Editorial Caminho instiga os cérebros de todas as idades a uma viagem aos seus corredores labirínticos, misteriosos e fascinantes. E assim se solta o pensamento que, depois de aprender a Acontecer, nunca mais será o mesmo.

Diz-nos o texto, que o tempo passa sempre, e nós, como o tempo, também passamos, mesmo que disso não tenhamos consciência, mesmo que o nosso pensamento, silenciado, não no-lo diga. «E decidirmos deixar de passar não é nada fácil porque há imensa coisa que tem de se destemporar para se deixar de passar: deixar de crescer, deixar de conhecer, deixar de questionar, deixar de amuar, deixar de teimar, deixar de hesitar, deixar de duvidar, deixar de repetir, deixar de parar, deixar de esperar

E «esperar não é nada fácil, é como passar, como se não se passasse nada, é como uma pausa numa música, um intervalo quando tudo o resto continua, como se nos atrasássemos e acontecêssemos sem nós, como se nos desligássemos. É como dormir. Umas vezes espera-se porque se quer, outras é sem querer, mas mesmo que ninguém fale ou lembre disso, mesmo quando se fazem outras coisas, muitas vezes espera-se.
E esperar é como acontecer. Umas vezes faz pena, outras não, outras nem se dá por isso e só muito mais tarde é que percebemos que esperámos, e quando não se sabe o que se passou entre duas coisas que acontecem pergunta-se: Esperei ou aconteci?», questiona-nos, fecundamente, o texto para nos mostrar que «estamos num tempo com dois tempos, assim como no futebol, no futebol em directo, estamos frente à televisão, e ouvimos GooooooOOOOOOOooooooollLLlllooooOOOOooo…mesmo antes de ver a bola entrar na baliza (…) neste tempo entre dois tempos, as horas param. Só as palavras se mexem.».

Odília, a musa confusa do cérebro, e Penélope esperam, «as duas, frente ao mar». Odília espera ser inspirada (odília, com minúscula, denomina as musas que «em vez de andarem a inspirar procuram constantemente alguém que as inspire» e «quando se cansam de esperar que a inspiração lhes apareça, partem à procura»), e Penélope espera Ulisses.
A partir daqui, é claro o incentivo do texto: munida da coragem da partida, Odília vira costas ao mar e parte, sempre seguida por Penélope que lhe vai «desemaranhar os fios do vestido», as duas «lado a lado, sombra uma da outra, «à procura do labirinto, à procura do fio de Ariana». Mas Odília entra «imediatamente em pânico». Espera-a o labirinto do percurso, que é o que sempre nos espera quando resolvemos seguir em frente: «à sua frente encontrava-se um labirinto infinito de meadas desfeitas, fios brancos espalhados por todas as ruas, todos os cantos e todas as praças do mundo». A persistência de Odília, a «primeira musa emigrante do mundo» leva-a ao encontro do poeta, pois «foram eles que fizeram as musas para que as musas os inspirassem a escrever um Livro que imaginasse deuses que criassem o mundo». E assim se ensina para o poder incomensurável do cérebro.

Repleto de ilustrações da própria autora, o texto corre vertiginoso, parando a brevíssimos espaços e acontecimentos do quotidiano, em soluços de tempo, onde o cérebro Espera antes de Acontecer, já acontecendo. Um texto para se ler, primeiro, de um fôlego, e reler, depois, escutando os momentos da Espera onde se formam as ideias que desenham as acções que temos.

Odília ou a história das musas confusas do cérebro, Patrícia Portela; Editorial Caminho; Lisboa, 2007

© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Quem é Peter Maynard?

A PHALA online tem editado o meu texto que serviu de base à apresentação da Trilogia maynardiana, na FNAC do Chiado, a 29 de Junho de 2009, com o título «Peter Maynard – Beretta e consciência»*.


Quem é Peter Maynard, essa personagem que, segundo Matt West, «desfaz mitos com o mesmo escrúpulo com que dispara»? Que personagem é esta, «figura indefinida e fugidia», segundo Dinis Machado, que sabe tudo acerca do leitor, que joga com ele, que o manipula, o agrilhoa num inaudito fascínio, que se dá à perversidade de ajeitar a gravata ao espelho, falar para a cara que vê ao espelho e não revelar essa cara ao leitor, que cata, em vão, qualquer indício da sua aparência física? Peter Maynard é voz, postura, atenção, método, intuição, acção, rigor, ética, sedução, humor, crítica, solidão, sonho e consciência.
(Continuar a ler n' A Phala)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

À espera de Blackpot

Prestes a chegar às livrarias, Blackpot é o original de Dennis McShade (Dinis Machado) que todos esperam. Em pré-publicação, a Orgia Literária editou o capítulo 19, no passado dia 30 de Outubro, um exclusivo que agradeço à Assírio & Alvim e ao José Xavier Ezequiel, grande mentor da edição deste inédito, mas também da reedição da trilogia maynardiana.

Capítulo 19

Ornatto massajou a perna durante alguns minutos e depois foi sentar-se no sofá, em frente da televisão. Ficou a olhar para o ecrã do aparelho desligado.


Subitamente, lembrou-se que ainda não tinha almoçado. Levantou-se, dirigiu-se à cozinha e fritou ovos com bacon. A ideia de Victor andava-lhe na cabeça. Matar Armador. Franziu a testa, pensando em como as coisas se complicavam.
Comeu os ovos com bacon com um certo apetite. Quando acabou, foi aquecer o café do balão e bebeu três chávenas. Deitou-se no sofá e esticou a perna. Ainda acabaria por ser amputado. Fechou os olhos e esfregou as pálpebras.

Seria bom que Gulliver telefonasse. Queria falar com Gulliver por causa da ideia de Victor. Lembrou-se de Armador. De como era um excelente jogador de xadrez. Sabia que ele jogava xadrez muitas vezes com Gulliver. Gulliver também era um bom jogador de xadrez. Ornatto nunca percebera como funcionava o xadrez. Preferia ler Samuel Beckett e revistas de banda desenhada. Mas ultimamente procurava apenas o silêncio. Era assim que passava o tempo.

Levantou-se a coxear um pouco e foi limpar a arma. Deixou-a impecável. Tomou comprimidos para a dor na perna. Sentou-se ao pé da mesa do telefone, à espera da chamada de Gulliver. Não sabia o que pensar da ideia de Victor: matar Armador.

Ficou à espera, olhando fixamente o ecrã do televisor desligado.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Zeca Afonso por Viriato Teles


Acabado de chegar às livrarias. Ver mais aqui
Lançamento no Museu da República e Resistência, no dia 17 de Novembro, às19h
Brevemente, o meu texto crítico
Zeca na literatura infantil: Zeca Afonso - Nome de Liberdade

Saudosa tertúlia

Imagine-se o leitor no centro de uma tertúlia onde estão Amália Rodrigues, Baden Powell, Chico Buarque, Atahualpa Yupanqui, Peter Seeger, Sting, Léo Ferre, Juliette Greco, Marcel Marceau e Mário Viegas. Deixe-se o mero exercício de imaginação, porque pode o leitor experimentá-la, bastando tão só aceitar o convite do estratega do encontro: o jornalista Viriato Teles. E o encontro está marcado para Bocas de Cena, local de achamento também do prazer incomensurável da leitura.

«São dez as entrevistas, estas dez e não quaisquer outras, porque o autor ao seleccioná-las quis dar-lhes um fio de coerência interventiva: aquela que, assumidamente, os entrevistados sempre souberam viver», diz Edite Soeiro no Prefácio. «Como é que ele conseguiu?», questionou Raul Solnado, referindo-se à «natureza inatingível dos entrevistados», numa pergunta de Retórica, pois a genialidade não se explica, comprova-se nas 135 páginas que inscrevem a eternidade.

Verdadeiro mestre de apresentações, Viriato Teles elabora, antecedendo as entrevistas, a descrição das personalidades, define-as biograficamente e expõem-nas no efeito que, presencialmente, lhe provocam . Também no decorrer das entrevistas, para além dos assuntos tratados, o jornalista faz o retrato dos entrevistados, retratos humanos totais, com alegrias e desencantos, projectos e nostalgias, ganhos e perdas. Como o autor já nos habituou, a prosa é quente, reveladora e cúmplice do leitor, como se também este fosse conhecido de Viriato Teles; mais um mistério só possível quando se tem a intuição de um grande escritor. «O homem que agora se senta à minha frente está destinado a vencer a morte. Fala muito e em ritmo acelerado, mas nunca fala por falar. Os olhos não param quietos, mesmo quando se dirige a nós», escreve o jornalista sobre a entrevista a Mário Viegas, feita em Fevereiro de 1992, com o título «A vida em alta velocidade».

Mário Viegas morreria no dia das mentiras, a 1 de Abril de 1996, com 47 anos, «deixando aparvalhados os amigos», deixando-nos a todos uma imensa saudade. Ler esta entrevista é matar um pouco essa saudade, matando o sentimento de tristeza e desamparo que nos ficou com a partida daquele homem intenso e insubmisso.

Se aquela entrevista é a última do livro, a abrir está a do outro nome português: a imperecível Amália Rodrigues. «Quando você quiser conversar e não tiver com quem, venha até cá. Já viu que eu falo muito», disse a diva do nosso Fado a Viriato Teles, na despedida da entrevista feita em 1983, por ocasião do lançamento do disco «Lágrima». Com o título «Humana forma de vida», lá está a Amália que conhecemos e a dar-se a conhecer aos que a desconheciam, porquanto o jornalista regista a forma de estar, os gestos, os esgares, a timidez, as hesitações e a comoção.

Entre os dois portugueses, como num longo abraço instigado por Viriato Teles, surgem os outros entrevistados: Baden Powell, com entrevista feita em Julho de 1982, com o título «O Samba que veio do morro». O intérprete e compositor do Samba que defendeu, a Viriato Teles, ser aquela «uma das músicas mais fortes do mundo, porque o é o resultado de três raças: o africano, o português e o índio brasileiro», deixa uma grande lição: um compositor «tem de aprender a compor aquilo que está dentro do coração e isso é válido para a vida inteira»; Chico Buarque, em dois andamentos, com entrevistas de 1988 e 1997, reunidas sob o título «A arte por via das dúvidas». Explora-se o compositor-cantor, mas também o escritor dos livros Estorvo e Benjamim; titulada «O silêncio da Terra», surge a entrevista ao esquivo Atahualpa Yupanqui, «velho payador argentino», autor de mais de 1200 canções, que percorreu o mundo apenas com a sua voz e a guitarra; Peter Seeger, o que é «muito mais do que um mito da história da folk song», «uma das vozes que mais lucidamente se ergueram contra a massificação cultural imposta pelo poder político e económico dos Estados Unidos, aquele que optou pelo «lado esquerdo da vida», forma de vida transferida para o título da entrevista: «No lado esquerdo da América»; Sting, no cenário dos ficcionados amores proibidos de Romeu e Julieta, com o desejo real expresso na entrevista titulada «A importância de ser feliz»; «Porta-voz de um mundo perdido», segundo o próprio, Léo Ferre desvela-se em oito magníficas páginas da conversa com o título «A Formiga que canta»; Juliette Greco, a senhora «de olhos grandes, profundos, penetrantes. E as mãos que em palco, criam um espaço próprio dentro do cenário» e dão expressividade à entrevista precisamente com o título «Mãos de Fala»; finalmente, o ícone que falta, e sempre com muita pressa: Marcel Marceau, o mimo, o «palhaço triste e sábio», o que junta a mímica ao silêncio para comunicar o grito e o inefável.

Na introdução, Viriato Teles informa que «estas conversas foram maioritariamente publicadas nos semanários Se7e e O Jornal, na década de 80», com excepção da entrevista com Chico Buarque, publicada na revista Ler. Refere, ainda, que a cumplicidade de muitos amigos «foi o melhor dos incentivos» para a reunião dos textos do Bocas de Cena. Mas Viriato sabe também que o leitor já estava no incentivo primeiro do jornalista, pois foi o leitor que lhe pediu esta dedicação que ele, como sempre, tão distintamente cumpriu!

Bocas de Cena, Viriato Teles, Campo das Letras, 2003

© Teresa Sá Couto

nota: este texto foi publicado a 29 de Março de 2008