A História acaba quando a literatura toma o seu lugar, sabemo-lo, e Vila Algarve, de Francisco Duarte Azevedo, demonstra-o. O romance vai buscar o título à casa construída em 1934, que foi quartel general da PIDE em Maputo, lugar temeroso onde estiveram presos Malangatana, José Craveirinha, Rui Nogar, entre outros, uma herança do fascismo português que tem instigado um caudal de estórias de que nela vivem os espectros inquietos dos mortos. A objectividade do título e a fotografia do pórtico de entrada da casa, hoje em ruínas, que faz a capa do romance de Francisco Duarte Azevedo, tirada pelo próprio, envolvem uma narrativa que encena o passado consciente de que a História é um jogo.
No compromisso do autor com a literatura, a narrativa perscruta todas as potencialidades inerentes ao jogo entre passado e presente, reconstrói novo enredo ancorado numa “Peregrinação interior de memórias” de cicatrizes do colonialismo ou, como nos diz o texto, junta “as pedras soltas da memória para recompor o tempo”, desenha personagens, ambientes, atmosferas, sentimentos, enche as páginas de cores, silêncios, brados e ecos, e o texto vai fornecendo e traduzindo dados, não quando o leitor quer, mas quando o narrador decide.
Vila Algarve é o segundo romance de Francisco Duarte Azevedo e, como o anterior, O Trompete de Miles Davis, também editado pela Planeta, comprova um estilo pessoal do autor.
O presente romance tem uma estrutura narrativa coerente e bem montada. A acção passa-se em Maputo, neste século XXI, com a chegada de Dória, 40 anos depois de ter partido de Moçambique. Representante de uma geração, Dória regressa ao centro do redemoinho do vento, símbolo de litígio e demanda, com a missão de “fechar a circularidade da memória”. Nesse centro de “vento e de milando”, encontra o amigo, o narrador participante, professor e poeta, mas também encontra a obstinação de Esperança que mantém no seu bar uma fotografia da casa maldita com o dístico Presos na Vila Algarve, a militância de Atanásio que intenta elaborar a lista das vítimas da Vila Algarve, a vigilância do inspector Mavuze. Ainda, o azul intenso e profundo – das águas e do céu –, as árvores ancestrais, o amarelo caril, a turba ruidosa das ruas, o silêncio e a força das mulheres, os miúdos, os moluenes que atravessavam a rua "esmolando", a violência, a morte, conferem à narrativa o grande poder de se aglutinar: todas as personagens, ambientes, lugares, todas as coisas se ligam de uma ou outra forma na absoluta solidão, característica de um texto interessado em contar uma história e tratar uma problemática. O Incipit dá-nos logo conta daquele programa: Dória chega, numa manhã de “vento insistente”, o vento que é, notoriamente aqui, o palco do abismo, “para cumprir um ciclo de memórias que lhe tombavam nas entranhas”. Dória, o errante, um “sonâmbulo”, um “morto-vivo”, carrega na mochila, e no mais esconso de si, uma “tragédia sufocante”: ter perdido a capacidade de esquecer.
O homem por dentro “é ele e todos os mortos. É uma sombra desmedida. Encerra em si a vastidão do universo. Agora somos fantasmas, o que construímos não cabe entre as quatro paredes da matéria”, escreveu Raul Brandão; os fantasmas de Dória exigem a expiação; os fantasmas da Vila Algarve gritam contra o esquecimento; os fantasmas são agitação, desespero e impulso das personagens e, por elas, da narrativa. Mavuze foi torturado na Vila Algarve. “Nunca traiu os amigos. Nunca denunciou”. Acreditava que os seus fantasmas o auxiliavam na demanda. Os bons, porque lhe mostravam o caminho, os maus, porque não o deixavam dormir. A vigília do inspector é a vigília humana que é, também, a vigília da escrita, papel que a presente narrativa desempenha com distinção. Relembre-se que já o poeta moçambicano José Craveirinha, que o texto de Francisco Duarte Azevedo não esquece, havia nomeado a casa ardente, no poema titulado, exactamente, Vila Algarve:
Privilégio de alvenaria/adaptado aos menos/loquazes/era ali. //Ou se dizia sim/ou éramos boatados/por uma fuga inexistente//No entanto um típico tremor/quando olho os clássicos azulejos/são os meus joelhos a recordar. //Ainda são vinte e quatro séculos morridos/em duas dezenas de horas de pé:/Graças à tua heroica humildade/não tive de ser boatado/que o Zé Craveirinha/escapuliu.//Devo-te, Maria/no tremor do pânico/manter-me eu mesmo/sem me sentir/um verme.//Só eu/e o portão da nossa vigília/ainda somos relembrados/na memória dos filhos.. (José Craveirinha, in Maria, Caminho, 1998, p..p.159,160)
Com efeito, o fantasma maior é o que não tem nome, é “pedra e desespero, noite e desespero, que se imobiliza na inutilidade de todos os esforços”, refere o autor de Húmus. Contra a imobilidade, contra o esquecimento, há o esforço das palavras. Por isto, os mortos erguem-se como o vento ergue a poeira, até aos confins da vida. Diz-nos o texto de Francisco Duarte Azevedo:
- Há gente a viver lá dentro há muitos anos. Não é fácil remover quem lá vive. Não têm para onde ir.
[...] Haverá fantasmas. Podes não acreditar, mas eles estão lá: os espíritos das pessoas torturadas que ali morreram. E há quem fale dos corpos que foram enterrados no chão mais profundo da Vila. Vi um tipo dormitando sobre uma laje de cimento encolhida no chão da cave. A mulher disse, é a cova dele. Escuta a voz dos fantasmas que borbulham debaixo da terra. Vi palavras nas paredes e um chão tão belo como um fresco levantino. E a mulher disse, cuidado não passa, pode matar o espírito. E os miúdos assustaram-se. E a mulher disse: não tem medo. (p.p.102, 103)
Vila Algarve, de Francisco Duarte Azevedo, transporta uma utopia: até Dória que carrega a ternura, a dor, a desgraça e o desespero, tem o sonho estreme da liberdade, e a sua liberdade é encontrar-se. É neste sentido que se pode configurar a asserção de Nietzsche em Epígrafe desta obra: “O perigo de todos os perigos: nada mais ter sentido.”.
© Teresa Sá Couto