segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Modernismo, Oficina de Literatura

A decorrer em Almada, ciclo de conferências. Tutela de José Xavier Ezequiel



terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Miguel Torga, poeta da terra e da esperança


Partiu há 15 anos. Deixou-nos este chão repleto de palavras que lemos e relemos. Sempre e uma vez mais. Porquê? Porque também somos torga, urze, raiz que ainda depois de queimada dá alento pelo carvão que produz. Se não somos, ele, Miguel Torga, a urze, o mosto, a casta nobilíssima de uvas do Douro, ensina-nos a sê-lo.

Nascido em 12 de Agosto de 1907, em São Martinho da Anta, Trás-os-Montes, e falecido em 17 de Janeiro de 1995, em Coimbra, Adolfo Correia da Rocha, seu nome verdadeiro, é uma leitura premente e necessária para todos os que procuram uma consciência pura, a esperança, a teimosia em romper caminho.
As suas palavras são vigorosas, lúcidas, prenhes de sentimento telúrico, o amor à terra que lhe avassala a alma:

“Sempre que, prestes a sucumbir ao mórbido do desalento, toco estas fragas, todas as energias perdidas começam de novo a correr-me nas veias. É como se recebesse instantaneamente uma transfusão de seiva. Sei, contudo, que o prodígio não aconteceria sem a força amorosa do meu apelo, que as virtudes terapêuticas da fonte estão também na certeza da sede de quem bebe. (…) E quando chegar o dia em que a debilidade do ânimo seja tanta que já não consiga sequer confiar no valor do condão? Finos, os antigos, entenderam logo de entrada que o fabuloso não é mais do que a realidade aureolada. Que basta um homem ficar com a vontade tolhida para que Héracles – um dos muitos disfarces da morte – o vença irremediavelmente.” (Diário XI, 1943).

As razões do corpo

A sua inspiração genesíaca, das origens, da terra, das fragas, dos penedos, da água, transporta-nos, num vocabulário vibrante de “seiva”, “sémen”, “sexo”, “cio”, “fecundar”, “parir", para as nossas próprias origens. Falamos de um corpo humano que se cumpre nas paixões, no desejo, nos frémitos, mas também na desilusão, na tristeza, na renúncia:

Molhada pelo mar salgado e frio,
Sai da concha e passeia
A regar de frescura, amor e cio,
O deserto vazio
Desta areia!

ou,

Mulher e aparição num corpo só!

Seios, umbigo, coxas e cabelos
Que são fios abertos de novelos
Onde se aperta a seiva

Como um nó.

Porém, se em Torga o corpo se cumpre no percurso da vida que lhe dá a força, a fraqueza, a liberdade, a prisão à condição humana, a consciência lúcida dessa grandeza trágica fazem-no rebelar-se e lutar. A vertente Humanista torguiana explana-se ao longo da sua obra, quer poética, quer em prosa onde a saída para os revezes da vida é sempre iluminada de esperança e liberdade:

Meu irmão na distância, homem
Que nesta mesma cama hás-de sofrer
Que nem a terra nem o céu te domem;
Nenhuma dor te impeça de viver!

A palavra como arma

Senhor de uma arte literária portentosa, as suas palavras são, no entanto, cavadas com sacrifício. Um sacrifício que enalteceu a Literatura Portuguesa, inscrevendo-a entre as de excepção a nível mundial. Com o drama da criação, a que chama, em  O Quinto dia da criação, o «suplício de escrever», Torga mostra que todo o empenho é sofrimento:

Mas todo o semeador
Semeia contra o presente.
Semeia como vidente
A seara do futuro,
Sem saber se o chão é duro

E lhe recebe a semente.

A continuidade só é possível com o amor aliado à palavra:

“De quantos ofícios há no mundo, o mais belo e o mais trágico é o de criar arte. É ele o único onde um dia não pode ser igual ao que passou. O artista tem a condenação e o dom de nunca poder autonomizar a mão, o gosto, os olhos, a enxada. Quando deixa de descobrir, de sofrer a dúvida, de caminhar na incerteza e no desespero – está perdido.”, escreve em Diário I, 1941. Ou ainda:

Novamente o teu pranto.
Mais uma vez a força dos teus dias
Na brancura dum manto
E a quebrar-se de encontro às penedias.
Mas as gaivotas acompanham
A tua dor, irmão.
Elas que são aves e se banham
Na espuma que te sai do coração.

Preocupado com a continuidade da sua esperança, emite um apelo dirigido a um secreto, hipotético, leitor:

Sem saber o teu nome e sem te ver
– Juiz que ninguém pode corromper –,
Murmuro-te os meus versos, os pecados
Penitente e seguro
De que serás um búzio do futuro,
Se os poemas me forem perdoados.

Cumprir este apelo é uma forma de nos mostrarmos gratos.


*bibliografia consultada: Miguel Torga, Poesia Completa, Publicações Dom Quixote, 2.ª edição 2002

© Teresa Sá Couto

De Eugénio de Andrade para as crianças


No dia de aniversário de Eugénio de Andrade (19 de Janeiro de 1923 - 13 de Junho de 2005) não vos trago a sua poesia, porquanto já a abordei, há precisamente um ano, AQUI; detenho-me na História da Égua Branca, uma narrativa do poeta beirão para os mais pequenos, num tesouro para quem queremos que cresça com as rédeas bem firmes da vida, com alegria e robustez intelectual. «Eu seria outro poeta se, aos cinco ou seis anos, tivesse deparado com as cintilações dessas sílabas», escreveu. Nesta história, o poeta dá aos mais novos o brilho mágico e sedutor da leitura que diverte e ensina.

Ilustrada magistralmente por Joana Quental, a breve narrativa tem a cadência da oralidade, o júbilo das peripécias, a pureza da linguagem. Conta a história de uma bela égua branca que é disputada por três irmãos que têm de provar merecê-la. No final, uma lição que acompanha o ser humano durante toda a sua vida: um tesouro não pode pertencer a que não o merecer.

Porque a magia sempre se multiplica, a obra está  incluída na lista de livros do Plano Nacional de Leitura. A mágica égua branca, animal duplamente intuitivo, na narrativa e na cumplicidade urdida com o leitor, tem muitas gerações para encantar.

Lição sobre o bem e o mal, os comportamentos e as escolhas que se fazem, a história de Eugénio de Andrade surpreende pelo seu vigor e carácter pedagógico tecidos numa mensagem translúcida, como, aliás, devem ser as mensagens basilares a partir donde se edifica o ser humano. A Égua Branca é o animal com características humanas e o centro de todo o ensinamento. Curioso é, também, que na galeria de personagens masculinas, a égua de cor pura é a essência ou a força feminina que está na origem de tudo, um ser genesíaco para a génese do crescimento psicossocial das crianças.

As ilustrações de Joana Quental enchem as páginas de cor e dinamismo. Com formas arredondadas, as figuras envolvem quem as contempla, guiando-o numa experiência única. A disposição das diversas figuras nas composições lançam o desafio aos mais novos para que construam a sua própria história e com elas interajam, consoante as suas percepções, o seu mundo.

Um, dois, três, e assim se faz magia. O número três faz parte do nosso imaginário colectivo e é ele que marca a cadência da «História da Égua Branca»: o velho Cristóvão tinha três filhos e não sabia a qual deixar a magnífica e afamada Égua Branca. Pede conselho ao amigo Boticário, um poeta, que o aconselha a testar os três rapazes, dando-lhes, a cada um, um tempo com o animal, daí originando-se os três episódios; foi dado ao primeiro filho, o António, o prazo de três semanas para devolver a Égua.

Os irmãos representam três dos pecados capitais, mas não pecados com sentido religioso: etimologicamente, peccare significa errar no objectivo, dar passo em falso, tropeçar, enganar-se, ser deficiente ou ser reduzido. Por isso, devem combater-se os pecados, para se moldar o carácter, para se ser alguém melhor, para se ser reconhecido, estimado e, consequentemente, realizado. E os rapazes, mostrando deficiências de carácter, erram o objectivo de ter a égua branca, além de serem castigados pela ladina égua humanizada:

- António, o filho mais velho, mostra a Vaidade e a presunção ao ver na Égua Branca o chamariz para impressionar as raparigas, pavoneando-se com ela pela vila «para que as moças se derretessem ou se matassem por ele». Um dia, quando passeava no bosque com uma rapariga que se deixou deslumbrar pelo portentoso animal, a Égua, farta de estar presa a um eucalipto e de lhe comer as folhas, ficou com soluços. Encavacado, o rapaz espetou-lhe um alfinete no traseiro para que ela parasse e a égua, relinchando, «alçou o rabo e borrifou de alto a baixo os dois namorados, exactamente com o que estás a pensar», e galopou para casa.

- Joaquim, o do meio, revela a Soberba e a ambição, outrossim a vaidade e a arrogância. Pensando nos proveitos monetários que a Égua lhe traria, resolve exibi-la nas feiras. Indignada, a Égua relinchou. Resolve, então, ensiná-la a chicote. «Mas a mansidão também tem limites – é mesmo da sabedoria das nações que os mansos não entram no Reino dos Céus», e o animal devolve-lhe uma parelha de coices, bem direccionada aos queixos do rapaz.

- João, o mais novo, deixa escapar a Ira e a insensatez: dominado pela cólera, espanca até à morte o burro do moleiro que tentou subir para cima da égua, «malhou, malhou, até o deixar bom para estrume.». O moleiro, alertado pelos zurros lancinantes do seu animal, corre em seu auxílio e, encontrando-o morto, desfaz-se em lágrimas. Estava encontrado o dono para a Égua Branca: o pesaroso moleiro. A Égua Branca escolhia o dono que a merecia e, desprezando o rapaz, segue a sua vida sem olhar para trás.
Estava encontrada a moral da história e uma lição de vida.


História da Égua Branca, texto de Eugénio de Andrade, ilustrações de Joana Quental; Editorial Campo das Letras, 10ª edição, Porto 2007

© Teresa Sá Couto

domingo, 17 de janeiro de 2010

O esplendor de Luísa Freire

O tempo é de celebração. Luísa Freire está agora ainda mais perto de nós. A sua poesia clara, feita de palavras «redondas», «coloridas» e «suculentas» tocadas pelo vento e esmeriladas na água do tempo, surge em 335 páginas da antologia O Tempo de Perfil; com a exposição de pintura da autora, a Assírio & Alvim dá-nos dois testemunhos do esplendor de Luísa Freire.

A antologia abarca poesia de 1980 a 2005, compreende 11 títulos inéditos e 5 já publicados, sendo estes: Verde-Nunca, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985; Searas de Tempo, Digo Tu e Memórias da Cal, reunidos em Ciclo da Cal, Porto, Campo das Letras, 2003; Imagens Acidentais (juntamente com Imagens Orientais), Lisboa, Assírio & Alvim, 2003.

Vê como a boca é triste
quando sorri a distância;

quando o inverno das asas
já atravessa os espaços e
cava na terra a sombra de uma
ausência.

Prova difícil é crermos no azul.

In O Tempo de Perfil, p.186


Nomear Luísa Freire é também chamarmos o seu trabalho de apresentação e tradução dos dois volumes de O Japão no Feminino: Tanka – séculos IX a XI e Haiku – séculos XVII a XX, editados pela Assírio & Alvim em 2007 e que estão disponíveis no mercado. É esta também uma poesia mágica, porquanto desagua na língua portuguesa pela tradução que só poderia ser de uma poeta.

Pergunto se o vento
irá abrir algum trilho
na erva do meu jardim
para que alguém possa vir
ainda hoje visitar-me.

in Tanka, p.51

**
Como uma mulher
que desmaia, o lótus branco
caiu por inteiro.

in Haiku, p.97

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Milton, William Blake

 (texto publicado no sítio Orgia Literária, em 11.01. 2010)

«Foi o menos contemporâneo dos homens» e «é um dos homens mais estranhos da literatura», disse Jorge Luís Borges sobre William Blake. Gravador, pintor, poeta visionário, William Blake (1757-1827) urdiu na chapa de gravação o fogo da sua irascibilidade, a sua inspiração tumultuosa, o humanismo apocalíptico assente numa complexa mitologia pessoal a dar conta da iniquidade e expiação humanas. Em Milton, recentíssimo título da Antígona, Blake invoca e recria John Milton (1608-1674), o «Despertador», o bardo de  O Paraíso Perdido, para mostrar que a regeneração humana se faz pela imaginação.

Longo poema épico, Milton chega-nos numa edição bilingue, com 51 ilustrações a cores, e insere-se no projecto de edições de William Blake iniciado pela Antígona, em 1994, com a primeira edição de Cantigas da Inocência e da Experiência, ao que se seguiram Quatro Visões Memoráveis, Sete Livros Iluminados, Poemas do Manuscrito Pickering e Uma Ilha na Lua, sempre com tradução, introdução e notas de excelência de Manuel Portela. Porque se impõe, assinale-se ainda a beleza gráfica de todos os livros, pelo que William Blake está em Portugal com a devida magnificência.

William Blake é um «realista da imaginação», escreveu W. B. Yeats aludindo à presença do visível no autor de Milton; uma espécie de olho interior ou, como diz Manuel Portela, na Introdução, o «olho do vórtice a que os seus textos procuram chegar», pois, segundo Blake, a imaginação é «o mundo real e eterno do qual mesmo este vegetal universo não passa de débil sombra». Sobre a transfiguração visionária, Manuel Portela refere que a forma de «espreitar o infinito que a mente abre entre a orbe do olho e a orbe do céu» parece situar Blake «entre o realismo visionário» e «a fantasmagoria surrealista», aproximando-o dum «cinema de visões». Pela imaginação, Blake expande o espaço até ao infinito e, num «Instante: uma Pulsação da Artéria», cria um universo livre da falsa aparência material, dito, afinal, desta forma clara: «O Céu é uma Tenda imortal (…) / E cada Espaço que um Homem avista em redor é a sua morada, / De pé no seu próprio telhado, ou no seu jardim num monte /De vinte e cinco cúbitos de altura, tal espaço é o seu Universo». (p.157)

No Prefácio, Blake invoca Shakespeare e Milton, «ambos diminuídos pela doença & infecção geral» por uma «classe de Homens cujo único prazer consiste em Destruir», defende que não são precisos os «Modelos Gregos nem Romanos se com justeza & verdade seguirmos a Imaginação, esse Mundo de Eternidade» e conclui com «Oxalá que todo o povo do Senhor fosse Profeta.». Para que se cumpra a sua profecia de que na «Nova Era» tudo será corrigido, há que instigar nos homens a forja criadora: «Erguei-vos, Ó Jovens da Nova Era!, e empregai as vossas cabeças contra os Mercenários ignorantes! (…) Pintores! Convoco-vos! Escultores! Arquitectos! Não aceiteis que os Ineptos em voga tolham as vossas forças com o preço que estão dispostos a pagar por obras desprezíveis ou através dos elogios publicitários que delas fazem».(p.29)

A «Salvação Eterna» estará no canto do «Homem Antigo», e o exemplo no percurso de Milton, que sacrifica a imortalidade ao descer de novo à Terra para, no mundo dos mortais, combater as forças opositoras da arte e do espírito humano. Em cometa, Milton entra no «Ovo Mundano», pelo Sul, pelos fogos de Satanás, em direcção a Norte, a Adão, percurso da regeneração humana:

Para me banhar nas Águas da Vida; e lavar o Não Humano / Venho em Auto-aniquilação & em grandeza de Inspiração / Livrar-me da Demonstração Racional pela Fé do Salvador / Livrar-me dos trapos corrompidos da Memória pela Inspiração / Expulsar Bacon, Locke & Newton do manto de Albion / Despir-lhe os trajos andrajosos, & vesti-lo de Imaginação / Expulsar da Poesia tudo o que não for Inspiração /Para que não mais se atreva a zombar com o epíteto de Loucura /Lançado sobre os Inspirados pelo insípido acabador de Borrões desprezíveis (p. 217)

O êxtase sexual que marca o instante da entrada de Milton no corpo de William Blake e a postura de crucificação representam, observa Manuel Portela, «a reunificação psíquica, sexual e cósmica» das «duas vozes bárdicas», numa comunhão assim enunciada por Blake:
.
Mas quando Milton entrou no meu Pé: vi as regiões infernais / Da Imaginação; e também todos os homens da Terra, / E todos os do Céu vi nas regiões infernais da Imaginação (…) /Mas eu não sabia que era Milton, pois o homem não sabe /O que se passa nos seus membros antes de muitas eras de Espaço & Tempo /Revelarem os segredos da Eternidade: pois mais vastas /Do que quaisquer outras coisas terrenas são as feições terrenas do Homem. / E todo este Mundo Vegetal surgiu no meu Pé esquerdo, / Qual sandália brilhante e imortal feita de pedras preciosas & oiro: / Inclinei-me & atei-a para seguir em frente pela Eternidade. (p.111)

Se, «nos Lagares de Vinho», as uvas humanas se entregam aos divertimentos do amor e às «delícias do jogo amoroso /Lágrima da uva, o suor de morte do cacho o último suspiro», mostra-se quão árduos são os passos e ímpia a caminhada pelo «Ovo Mundano» esvaído na tensão dos seus contrários fabricadores de dilemas permanentes: «Os Cavalos loucos! A Charrua confundida! Os companheiros enfurecidos. / A culpa é minha! Deveria ter-me lembrado que a piedade divide a alma / E desumaniza o homem». (p.57).

E a jornada de autodescoberta de Milton, troa, total, no poema: «soa estrondoso o martelo de Los» (Los, anagrama de Sol, símbolo do Espírito Santo e da Imaginação criadora), nos labirintos de Londres, depois no resto do mundo, a forjar o Ferro, nas brasas da forja criativa pela qual o indivíduo se regenera; as Igrejas da Época «em terror & desespero», a adoração pelo medo; a tormenta humana saída do caos, e a prensa incansável e indomável a imprimir a imaginação, que dispõe «as suas palavras em ordem acima do cérebro mortal /Como os dentes da roda dentada engrenam nos dentes da roda oposta», a criar reverência à sua emanação, a produzir trechos de uma beleza inaudita, como este:
.
Ouves o Rouxinol dar início ao Canto da Primavera:
A Cotovia está pousada na sua cama terrosa: quando a manhã
Desperta: escuta em silêncio: depois irrompe no Milheiral ondulante!
E lidera bem alto o Coro do Dia! triiit, triiit, triiit, triiit,
Sobe nas asas da luz para a Vastidão Imensa:
Faz eco na bela Casca azul & brilhante do céu:
A sua garganta trabalha com inspiração; cada pena
Da garganta & do peito &e das asas vibra com afluência Divina
Toda a Natureza escuta em silêncio & o Sol poderoso
Pára sobre a Montanha reparando na pequena Ave
Com olhos de humildade, & encanto & amor & espanto.
No coberto verde todas as Aves começam então o seu Canto sonoro
O Tordo, o Pintarroxo & o Pintassilgo, o Pisco & a Carriça
Despertam o Sol do seu doce devaneio na Montanha (p. 169)

«A beleza para Blake corresponde ao instante em que se encontram o leitor e a obra e é uma espécie de união mística», diz, ainda, Borges. Na chapa de gravação, onde vazava a sua cosmogonia, Blake profetizava o assombro e a inspiração que a sua obra provocaria. Aventa-se que terá morrido a cantar.


William Blake, Milton, Tradução e notas de Manuel Portela, Antígona, 2009

 © Teresa Sá Couto

sábado, 9 de janeiro de 2010

A liberdade de escolher a morte


Haverá maior liberdade do que a de quem escolhe quando e como morrer? E não será exactamente a execução “ousada” desta liberdade, que nos impossibilita o entendimento sobre o suicídio? Como é o sol para aqueles que, no seu silêncio, transportam o projecto de se matarem? O que leva alguém a atentar contra si, a, pela sua mão, eliminar-se? Que direito temos nós de condenar a morte livre?

Atentar contra si – discurso sobre a morte voluntária de Jean Améry (pseudónimo de Hans Mayer), publicado em 1976 e editado recentemente pela Assírio&Alvim, é um extraordinário ensaio sobre o assunto, e um registo biográfico, porquanto o autor suicidar-se-ia dois anos depois, sendo este o seu último trabalho. Não carrega a apologia da «morte voluntária», apresenta-nos, sim, uma reflexão sobre a «insolúvel contrariedade da condition suicidaire para dar testemunho dela», um testemunho «além da psicologia e da sociologia», a perspectiva da morte voluntária de dentro, a partir dos suicidas e não de fora, da «óptica dos vivos ou dos sobreviventes».

Pedro Panarra, responsável pela tradução, posfácio e notas, diz que Améry «descobre o suicídio como acto paradoxal, mas não absurdo; paradoxal pois contrário à lógica da vida, mas não um sem-sentido.». Mais, refere o tradutor, «no embate com a morte voluntária, o encontro do paradoxo permite-lhe tentar a conquista do lugar que é o de todos os suicidas, seja qual for a sua situação particular.». Não se pense que o suicida não tem medo, escreve Améry: ele teme «o nada», teme também «a sociedade que o condena e que desencadeia uma acção para o salvar (ele é parte de uma minoria e por isso também um escravo colonial da vida)». No limiar da morte voluntária, no «momento do salto», há «as dores da separação» do corpo, esse que foi sempre o Outro, o descurado, diz Améry, e, «no momento antes do salto tomamos consciência do nosso corpo com uma intimidade até então nunca atingida. Em todo este processo é a cabeça que desempenha um papel fundamental»; o que atenta contra si, para se desfazer de si, «enceta com o seu corpo, com a sua cabeça, com o seu Eu, o grande diálogo, de uma forma que até nunca acontecera».

 «Finalmente pertenço-me»: eis a mensagem do suicida, mesmo sabendo que não colherá os frutos da sua resolução, cônscio de que aquela mensagem não chegará ao destino, por não haver destino. «A experiência da liberdade é esmagadora», diz Améry, acrescentando: «o domínio da liberdade não é livre, mas o caminho é um verdadeiro caminho na direcção da liberdade. Enfrentamo-lo para pôr fim à tortura e enquanto progredimos desistimos dos momentos de elevação, sempre a tristeza que acompanha a despedida, sempre o sentimento de ter lançado fora uma carga que era demasiado pesada. O que vier a acontecer passa somente a dizer respeito aos outros. Futuramente, eles farão de mim o que quiserem, votando-me ao esquecimento ou recuperando-me pela memória».


Temática profusamente tratada na literatura, a morte como libertação do inferno da existência e o suicídio como projecto surgem no romance Hans, do incontornável Hermann Hesse, no passo que transcrevo:

«Decidiu finalmente que seria ali que morreria. Voltou lá mais do que uma vez, deixava-se ficar sentado e sentia uma estranha alegria ao imaginar que não tardava muito que alguém ali o viesse encontrar já morto. O ramo ao qual prenderia a corda estava já escolhido e a força deste fora também já experimentada, não deveria surgir qualquer dificuldade. A pouco e pouco foi também sendo escrita uma pequena carta ao pai e uma outra, bastante maior, a Hermann Heilner, castas essas que deveriam depois ser encontradas junto do cadáver.
Os preparativos e a sensação de estar seguro do seu destino haviam exercido uma boa influencia sobre a sua disposição. Sentado sob o funesto ramo, horas houve em que do seu ânimo desapareceu por completo a tensão e quase foi inundado por uma alegre sensação de bem-estar. Também o pai reparou nas melhoras do seu humor e foi com uma irónica satisfação que Hans olhou a alegria deste em relação ao que via. A única razão da sua boa disposição era a certeza do fim que estava próximo. Nem ele mesmo sabia bem por que razão não se pendurara já há mais tempo naquele belo ramo. A decisão estava tomada, a ideia da morte estava perfeitamente assente, mas entretanto sentia-se bem e não desprezava a possibilidade que nesses últimos dias se lhe oferecia de gozar aquele belo sol e de se entregar aos seus sonhos solitários, um pouco como se costuma fazer antes de se iniciar uma grande viagem.». (Hermann Hesse, Hans, p.p. 147, 148; Difel, 2000)

* Ler texto de João Barrento na PHALA sobre esta obra de Améry.
 
 
© Teresa Sá Couto

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Reis na Assírio & Alvim

Mais uma iniciativa imperdível da Assírio, pois claro.