domingo, 7 de março de 2021

Maria Quintans : o corpo do silêncio


 

O corpo do silêncio








Aqui me tens. E o texto.

Partículas. Partes sensíveis, pequenas

vísceras onde se ocultam vermes;

uma poeira doce;

depois uma ferida (1)

                                        Armando Silva Carvalho 

 

É neste inferno que se mascara o poema. (2)

                                               Maria Quintans


Sabemos que todo o poeta enfrenta o poema com o corpo. Numa biografia a dois. Numa fantasia homicida. O combate é fratricida, o corpo é esquartejado, rasga-se a pele, estilhaçam-se nervos, explodem-se veias, fende-se o escuro da carne até ao osso, até essa essência que é também um ponto luminoso no fundo silencioso do abismo: ao poeta fascina-lhe “o fósforo a abrir em luz o tempo primitivo” (3), diz Maria Quintans, e “Devorar vísceras mortais /é um ofício vil, /apaixonante” (4), diz o poeta Armando Silva Carvalho.
“se me empurrares eu vou”, “se me empurrares eu caio”, responde Maria Quintans ao incitamento do poema, pronta a encenar o corpo num uivo cavernoso como o prefigurado na mulher-cão de Paula Rego. Editado em 2019 pela Assírio&Alvim, SE ME EMPURRARES EU VOU é o título mais recente da autora onde se investiga a alma e a existência humanas e se reflecte sobre como a matéria investigada pode ser transfigurada no corpo da poesia.

“Agitas a exaltação do corpo em todas as direcções, ainda que tudo o que eu disser não signifique nada do que pretenderia dizer-te”, escreve Maria Quintans na Carta a António Ramos Rosa, que faz parte do último conjunto de textos de SE ME EMPURRARES EU VOU, plasmando a ideia do corpo como emblema da criação literária de António Ramos Rosa, outrossim da sua própria criação, ao mesmo tempo que nos dá a noção da palavra como fruto incapaz de ser possuído, porquanto a palavra morre ao ser dita. Mais à frente, na mesma carta, a autora dá-nos outras pistas de como concebe a criação: no corpo que sustenta outro corpo – o aparente que contém o invisível, a matéria que contém o espírito – , nos ombros que carregam o peso do mundo e a linguagem do caos subterrâneo do espírito em busca de um abrigo: “Não sei quantos ombros são necessários para levantar um poeta mas será pouco eleger-te grande, com determinante paixão e avanço de braços, porque macabramente, todos os poetas são engolidos pela terra. E na verdade, a condição primeira do poema é mesmo essa, um apelo da raiz dos sonhos, um prodigioso grito vindo das entranhas do fogo, consequente e brutal, em forma de sentido do não-sentido do poema, em forma de poeta a apertar a mão a um deus embranquecido nas sacadas dos prédios, no limite do fôlego." (p.p 61-62). O poeta é constituído por “partículas”, por “pequenas vísceras onde se ocultam vermes”, como expresso nos versos de Armando Silva Carvalho, em epígrafe, o homem sabe a vulnerabilidade da sua condição o que o faz, na sua humildade, “apertar a mão a um deus” forjado ao espírito, um aperto de mão silencioso, porque a palavra perdeu-se e ficou apenas a linguagem do corpo ou dito ainda assim por António Ramos Rosa: “O subterrâneo conduzirá ao diamante nocturno do sossego. O seu percurso é uma fuga porque a fuga é uma força e o desconhecido, na sua virgindade, será o supremo elemento de defesa.”.(5)

O poeta escreve contra a solidão, escreve contra a morte, escreve para tornar “invulnerável a sua fragilidade essencial” e, “na exaltação de um pulmão completamente cheio de oxigénio”, o poeta escreve “o amor e a morte”. No poema “os bichos repugnantes”, onde seres trabalham no húmus subterrâneo alimentando-se do corpo putrefacto, sintetiza-se a reflexão sobre a condição humana e a condição poética:

às vezes durmo

muito pouco

aí na clareira da cama soltam-se animais   bichos que nunca

vi irradiam até à minha boca cheia de sal e terra e corrimento

bélico da boca aos pulmões qualquer coisa estranha por dentro

do coração

                                        aperta-me

os bichos põem-se de quatro a alimentar a carne separam-se dois

a dois e copulam em todo o lado rebentam os galhos das árvores

e abrem crateras no tronco das abelhas

abismo sonoro aberto à voragem dos ossos

 

só tenho de fechar os olhos na angústia das pálpebras. pensar que

Deus é uma vertigem sem rosto engolir o meu pulmão afogado

no bafo amniótico da água. respirar. (p.p.48-49)


No emblema do corpo, está o lado esquerdo, o das trevas, do inconsciente, do espírito, o lado das emoções caóticas do coração, o lado das incertezas que fazem com que o incerto se volte para si próprio e se interrogue; no lado esquerdo está a fonte da criação artística, está o resgate da palavra, e o discurso eclode com “todo o caminho aberto até ao peito /um grande mar entre o oceano e o coração /o peito aberto à bala /escancarado a senti-la” (p.16). Doutra parte, o lado direito é conotado com a luz, o conhecimento, o lado onde o labor traduz o caos em ordem, onde as incertezas se eliminam, onde, portanto, se apaga o espírito. Por isto se lê: “o braço direito dói-me e já não tem a sabedoria do poema”, para logo no verso seguinte o corpo emendar a direcção: “espero e dobro-me para tocar o fundo do arame veloz a pender da árvore.” (p.18). Porque “o homem não gosta de casas pequenas” e o poema é “um animal faminto”, “se não fosse a água era o corpo a deixar cair o coração e os pulmões /a onda de um acaso agitado e - afaga o poema com mão esquerda - a mão esquerda no pêlo da cauda /…/ se não fosse a rouquidão das manhãs seria a lã dos outonos /um tubo de plástico na garganta e um cão aos pés da cama a lamber as feridas.”(p.19), lê-se. 

O cão, ora nomeado nalguns poemas ora intuído noutros, é o símbolo do mundo interior, o cão fareja a matéria oculta, subterrânea, a palavra invisível, inalcançável, o cão é o “silêncio em quatro patas gigantes”, é o poema calado que espreita antes de o ser; outrossim, a cama é a noite dos naufrágios, é o tempo e o espaço do corpo da incerteza que se implanta numa teia discursiva complexa e iluminada, como concretizado no poema “ombro esquerdo”:

a cama é um animal doméstico: esconde

o ombro esquerdo, lê a Bíblia e é o mais

completo sistema de precisão. não avalia

a razão, não acorda, encosta-se na acção

absoluta. a cama é pão e cão. (p.20)


Como os raros, Maria Quintans mostra-nos que a criação tem sede de sangue incandescente; a sua palavra explode em pesadelo, a noite antecipa a voz da morte e lança a Interrogação fundamental do sujeito de si sobre si, sobre a realidade e a verdade. A palavra eclode, “asa frágil de um pensamento nódoa”, “o poema é um osso escolhido pela memória”, “a ferida é um pedaço de osso /do braço esquerdo” e o poema é “um cão aos pés da cama a lamber as feridas”. Lê-se no poema “a casa do silêncio”: 

“[...]
 perdemos tudo muito devagar. de dentro já não se ouve nada. um
          prego no coração e um cão acordado a noite inteira. tanto
         descanso. tanto asfalto. tanta água a abrir a boca e sobretudo

  os palácios do diabo em riso descarado […]”. (p.21)
 
O cão é Anúbis, o condutor de almas, o Cérbero das profundezas infernais ao qual se há-de prestar contas, que desfia o poema e nele faz desfilar a danse macabre da existência humana; o corpo, atravessado pela gramática do silêncio, vazio até aos ossos, contorce-se na luta com o espírito; a palavra contorce-se na busca do sentido para anotar o não-sentido; o poema, timbrado de loucura, edifica o corpo nos símbolos:


“[…]

nada existe

nem que criemos as palavras a uma velocidade estrondosa não

             sabemos onde começa a escrita

se na cabeça se nos dedos se na infelicidade das chagas se na tex-

             tura da madeira onde nos sentamos para comer mais e

             beber mais e saber mais e largar o corpo à deriva da pele e

             do desejo

que seja um país inteiro o teu cheiro o teu mijo a tua cona a tua

              invejável lucidez na largura das caudas das putas

 

come a laranja como a laranja espreme-a de encontro ao peito e

            deixa escorrer o sumo até ao umbigo e arde de prazer na

            tontura da solidão.

o desespero é só uma palavra na inocência da loucura.” (p. 42)


Na “culinária da besta”, o Eu poético, “em combustão de crenças num mapa de tristezas”, numa casa onde o cão está perdido e cheio de medo, “com as mandíbulas desaparecidas entre a cabeça e o chão”, lança o corpo ao mundo exterior, à sociedade hic et nunc, em anotações transbordantes de ironia e sarcasmo:

"há cidades que não têm nome. podemos beber, falar e comprar

bilhetes para o cinema nas cidades que não têm nome. como

os homens que caem para a frente nus e cegos de tristeza.

estes também não têm nome. podem um dia ou outro ter a

inocência da luz mas não têm nome. como as moscas. "
(p.24)


ou no poema “exercícios de quem não dorme”:


“[…] pense-se.

não há nevoeiro que caiba num poema inteiro. E os talhantes a

cortar a carne. E os filhos-da-puta a comer bitoques. E a carto-

mante a ler as cartas.

e os poetas a arrancarem palavras ao significado da lagarta da

maçã. E os sem-abrigo com orelhas de sangue. E as mulheres a

crescerem filhos para crescerem depois a crescerem filhos. E os

autocarros cheios de gente às sete da manhã e cheios de gente às

sete da noite.

Pense-se. […]” (p.51)


Quando a boa poesia empurra o leitor para a sua emboscada abissal, o leitor cai e erguer-se-á dessa queda com os ombros carregados de luz. É de feitiço que se trata, e Maria Quintans é uma das feiticeiras notáveis da poesia portuguesa:

"cai. deixa-te cair. as pessoas que caem ficam com os polegares es-

folados. cai.

abate a tiro a realidade de um crime suportado por qualquer in-

quietação. cria uma emboscada e cai. não é fácil criar uma embos-

cada e ferir de morte a imagem. peritos em emboscadas dizem que

é melhor na escuridão com os olhos feridos de luz. e a cabeça. E a

boca. e os sentidos magnetizados. irrigados pela tua insuportável

vulgaridade. respira. cai. a noite consente tudo. "(p. 46)

 

Notas:

(1) Armando Silva Carvalho, O QUE FOI PASSADO A LIMPO – OBRA POÉTICA, Assírio&Alvim, Lisboa, 2007, p.159

(2) Maria Quintans, O SILÊNCIOHariemuj, Lda., Abril de 2013, p.51

(3) Maria Quintans, SE ME EMPURRARES EU VOU, Assírio&Alvim, Porto, 2019, p.18

(4) Armando Silva Carvalho, ob. cit., p.379

(5) António Ramos Rosa, Antologia Poética, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2001, p.410


 

SE ME EMPURRARES EU VOU, Maria Quintans, Assírio&Alvim, Porto, 2019

 

© Teresa Sá Couto