domingo, 23 de novembro de 2014

O Aleph de Mário Sequeira Santos



AREIAS DE LAÍR é o título do primeiro romance de Mário Sequeira Santos, obra lançada neste Novembro com a chancela da Edições Esgotadas. Em dia de aniversário do autor, publico aqui o Prefácio do livro, que tive a honra de escrever. 


O Aleph de Mário

Se todos os lugares da Terra estão no Aleph, ali estarão todas as luminárias, todas as lâmpadas, todas as fontes de luz.

                                                                                                                    Jorge Luís Borges



Há uns anos, navegando erraticamente na web, estanquei num ponto luminoso: um texto raro, de palavras marulhadas em pedras, pedras boleadas pela memória depois poalha no dorso do vento. Aquela luminescência levar-me-ia ao presente cais de assombro, o romance Areias de Laír, primeira obra de Mário Sequeira Santos. A obra «instala um mundo», diz Heidegger, e «ao abrir-se um mundo, todas as coisas adquirem a sua demora e pressa, a sua distância e proximidade, a sua amplidão e estreiteza», acrescenta. Instituindo um mundo, a presente narrativa prolonga o braço e introduz forças sobrenaturais, telúricas, lança mão ao realismo mágico para ocupar vazios, acrescentar universos paralelos, criar infinitos, mostrar que obscuridade e transparência, segredo e revelação são, afinal, faces da mesma moeda, que em tudo há um lado visível e invisível, dando amplitude ao próprio conceito de imaginário.

Na narrativa de Mário, o lugar de Santa Eménia, com o rio Uádi que lhe nutre os campos e se reúne no espelho circular de uma lagoa, é a lente donde se vê o universo amplificado, o ponto onde confluem os tempos, os lugares, as pessoas, a história das demandas; é o Aleph, na inconfundível acepção de Jorge Luís Borges, no conto do mesmo nome, Aleph elevado a Aleph repetindo-se até ao infinito.

O som de uma campainha que estremece o silêncio anuncia ao leitor a entrada na história que, prestes, lhe dá a saber que «Há três dias, São Domingos era, como há cem anos, uma memória parada». Com um presente a remeter para uma memória passada que, por sua vez, remete para outra ainda mais longínqua, evidencia-se a intenção narrativa de levar o leitor numa expedição ao interior do tempo. E o texto sabe que para construir a memória tem de ser errante, saber que executa na perfeição: imbricando as duas grandes sequências narrativas em que assenta; construindo espaços e tempos múltiplos, para uma peregrinação que só se cumpre no infinito; estruturando-se em sucessivas escarpas e nexos que se ocultam por detrás dum enredo fragmentário e aparentemente desconexo, efectivamente desconcertante; desenhando personagens intimamente ligadas, nos desejos, nos gestos, nas vozes, não obstante o tempo que as separa, e cujos nomes vamos sabendo por acaso, no meio dum diálogo, nomeadas por outras personagens, pois o que interessa a este texto é a voz da memória ou, como diz o narrador participante, um marinheiro que vem do mar para subir o rio, em afirmações dirigidas a outra personagem, mas que contêm o desígnio da obra e da sua leitura: «O passado, na minha vida, sempre fora uma espécie de intermitência no presente. Era assim que te seguia, servil, arrastando as patas do cavalo pelo rasto que ias deixando em trilhas que só os teus olhos descobriam parecendo ter a capacidade de desvendar, onde os outros não viam, vestígios antigos de vida ou a dimensão habitada por espíritos de sentimentos passados.».

Texto que não admite fronteiras, Areias de Laír acha no realismo mágico a enunciação certa para derramar a sua luz, criar enigmas, exibir prazeres da imaginação e da leitura.  «As memórias precisam de estímulos e cores para despertarem», diz-nos o texto que vê, ouve e serve de morada a vozes perdidas, sente e idealiza sentires, e propaga. No desempenho deste programa, contempla-se o diálogo de intimidade, secreto, entre as coisas e os seres, em palavras puras, quase sagradas, a interligação entre o mundo dos vivos e dos mortos, que talvez não sejam dois, mas apenas um, com facetas diferentes, personagens espectrais, assombrações, a história enigmática de Fusun, um Turco «que habitara no extremo junto às margens do Uádi», que enfeitiça a terra – prova-a para saber o sabor que lhe falta, tempera-a para ter dela várias colheitas num ano –, peixes maiores que pessoas que habitam o rio tornando-o inavegável, a passagem por baixo do rio, um caminho subterrâneo de simbologia múltipla: o enigma do poço, o abismo de trevas que está em nós, a voragem do Tempo, o território ambíguo dos desejos, o caminho para o desconhecido de uma vida nova. No final da narrativa, liberta-se já não o som de uma campainha, mas do silvo de um comboio onde embarcarão duas personagens. Quiçá, rumarão ao mar… Quanto ao leitor, certamente rumará ao início da narrativa, chamado pela voluptuosidade da escrita, pela ânsia de descobrir outros trilhos da memória, experimentando o sentido da demanda de Ulisses, do poema Ítaca, de Caváfis: o mais importante não é chegar, mas sim a inquietude, o desejo de partir e a experiência da travessia.

«Como as frases, as imagens podem ser histórias do que vemos, ditadas pelos olhos da nossa alma», diz-nos o texto. Pelos olhos da alma, vi, neste aleph de Mário Sequeira Santos, o mastro alto e sábio da Rúbia-no-mar, no cais contíguo de um estaleiro que servia de cemitério de navios. Vi uma garrafa contendo um pergaminho com um mapa e uma morada, vi o amarelo do whisky desmaiar no gelo. Vi pessoas e sombras no tabuleiro de xadrez da vida, vi um planalto de campas, com «pedras dispersas, de diversos tamanhos, geometrias e tonalidades». Vi uma casa em ruínas com frinchas nas paredes donde escorriam segredos, o cinzento desbotado de fotografias antigas, o verde do prado junto à margem do Uádi, o branco das margaridas, o verde da íris de Esmeralda fixar-me, e estremeci. Vi o caranguejo-real atraiçoado pelas correntes «a carregar com a desproporcionalidade das patas uma carapaça sem ideias e, conforme me aproximava, quase lhe pude distinguir os olhos suspensos a fitarem-me, numa partilha de compaixão, antes de se resignarem ao bico das gaivotas». Senti a água «gelada por um quilómetro de trevas», vi a chuva de meteoros, os clarões dos relâmpagos, ouvi o rugido do céu, o ruído das portas, vozes perdidas, o restolho de almas finadas, o canto das cigarras, as patas dos cavalos no empedrado, personagens em cochichos com os bichos, o pio dum casal de corujas, o som pungente de um cravo em diálogo com os gemidos do vento e o chicotear da chuva, o «gotejar ritmado de água na água» e o eco da saudade. Vi a escuridão povoada. Ouvi o gemido das algas. Vi arder a água fria e escura da memória. Vi homens e mulheres tentando equilibrar-se na linha recta das suas solidões, vi-os recolherem-se no ventre acolhedor do tronco largo de uma velha oliveira, «espécie de barco velho ancorado por raízes fossilizadas», e senti-lhes a vontade de se evadirem da sua condição. Vi o espelho assustador das águas do Uádi, porque são assustadores os trilhos que levam o ser humano ao encontro de si mesmo. E vi todos os seres da Terra em areias brilhantes de Laír que a mão do escriba acendeu.


Teresa Sá Couto
Lisboa, Maio de 2014