domingo, 20 de junho de 2010

Baltasar e Blimunda: a mais bela história de amor

Em Memorial do Convento, José Saramago criou o par que protagoniza a mais bela história de amor de sempre da Literatura Portuguesa: Baltasar Sete-Sóis e Blimunda Sete-Luas.
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Sem mais, que mais não é preciso, transcrevo:

«(…) Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires,
Por que queres tu que eu fique,
Porque é preciso,
Não é razão que me convença,
Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar,
Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto,
Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei,
Olhaste-me por dentro,
Juro que nunca te olharei por dentro,
Juras que não o farás e já o fizeste,
Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro,
Se eu ficar, onde durmo,
Comigo. (...)»

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José Saramago in Memorial do Convento, p.56; Editorial Caminho, 15ª edição, Lisboa 1985

sexta-feira, 18 de junho de 2010

O adeus a José Saramago

José Saramago faleceu hoje, aos 87 anos, vítima de doença prolongada. Em homenagem à derradeira viagem do escritor, recupero o texto que elaborei sobre o A Viagem do Elefante editado no sítio da Orgia Literária em 05 de Dezembro de 2008.


«Com as boas ideias, e às vezes também com as más, passa-se o mesmo que se passava com os átomos de demócrito ou com as cerejas da cesta, vêm enganchadas umas nas outras». É desta forma que José Saramago nos explica a torrente luminosa de A Viagem do Elefante, o seu recentíssimo relato – romance ou conto.

Clara é, também, a metáfora executada nas 258 páginas de escrita precisa e depurada: «A Viagem do Elefante», por planícies abrasadoras, serras geladas, chuva e nevoeiro, é a longa marcha dos homens, a Viagem de qualquer um de nós para o sítio que sempre nos espera: a morte. «Custa é saber / como se emenda a morte», escreveu Luiza Neto Jorge, e esta narrativa de José Saramago parece responder-lhe, ao emendar a morte com o gesto da escrita que, concretizada em extrema debilidade física do Nobel português, espanta pela alegria, pelo humor transbordante, pelas lições de amizade, pelo vigor saramaguiano da crítica social, política e religiosa, temperadas com ironia imbatível.

A ideia para narrativa surgiu de um acaso, que o autor explana, numa breve nota, na primeira página. Num restaurante em Salzburgo, chamado «O Elefante», repara numa pequena escultura em madeira da Torre de Belém e é informado que tal se deve ao registo de um itinerário feito por um elefante, que em 1551 foi de Lisboa a Viena. Restava enfrentar a poalha do tempo, «levantar as pedras do passado para perceber o que há por baixo delas», recorrer à «inesgotável generosidade da imaginação», «abrir portas órfãs de fechadura ou que nunca a tiveram», «preenchendo as lacunas o melhor que se pode», gizar tudo na escrita que não conhece vedação, imprimir-lhe o registo contínuo e sem paragens, obtido pelas supressões de marcas gráficas nos diálogos, «em suspensões quase de alma», como referiu Luís M. O. Cardoso sobre a subversão da escrita de José Saramago.

Estava encontrado o herói da épica caminhada, o espelho onde nos revemos, o paquiderme Salomão que, não obstante ter nome de rei mítico, é súbdito dos homens e joguete dos seus caprichos – viera da Índia por vaidade da coroa portuguesa, seguira para a Áustria onde, pouco depois, morreria, e as patas que fizeram a hercúlea caminhada acabariam em bengaleiros decorativos. Com Salomão, surgem na narrativa o indiano Subhro, seu inseparável cornaca e amigo, o comandante de cavalaria português, e amigo de ambos, e a reflexão sobre o curso da existência humana, com os seus desejos, sentimentos, intenções, e desvios, pois, diz-nos o texto, «a representação mais exacta da alma humana é o labirinto. Com ela tudo é possível.». Com a alma e com as nações, porque estas são o retrato das almas que as dirigem, caminho para a crítica a Portugal.

Presente de casamento de D. João III e da rainha Catarina de Áustria ao primo Maximiliano, arquiduque de Áustria, que está em Espanha no Palácio do imperador Carlos V, seu sogro, Salomão prepara-se para «ir à pata» de Lisboa a Valladolid, não sem um banho com escova de piaçaba, que lhe retira o sarro acumulado de dois anos num país que o trouxera da Índia, mas que não sabia o que fazer com ele, enquanto a rainha inveja a sorte do animal por ir gozar a vida na cidade mais bela do mundo, enquanto ela ficava «aqui, entalada entre hoje e o futuro, e sem esperança em nenhum dos dois».

Habilidosa, a crítica à Pátria desenrola-se em inúmeros apontamentos, como este, retirado dum diálogo no Portugal profundo: «Nunca a viste, perguntou o comandante lançando-se num rapto lírico, vês aquelas nuvens que não sabem aonde vão, elas são a pátria, vês o sol que umas vezes está, outras não, ele é a pátria, vês aquele renque de árvores donde, com as calças na mão, avistei a aldeia nesta madrugada, elas são a pátria» (p.61)

O Teatro da vida

Para o mesmo caminho a caminhada é desigual, «também o frio, quando nasce, é para todos, diz-se, mas nem todos apanham nos lombos com a mesma porção dele. A diferença está em viajar num coche forrado de peliças e mantas com termóstato e ter de caminhar sob açoite da neve por seu pé ou com ele enfiado num estribo gelado que oprime como um torniquete» (p.222). Na desigualdade da caminhada e nas curvas do caminho, faz-se a coreografia humana de contraste entre os poderosos e os humildes: «a colorida cauda de pavão dos parasitas da corte do arquiduque» e o paraíso da gente simples que pode estar «num telhado que defenda da chuva e do sereno»; a constatação de que se «está por estudar a importância dos intendentes, mas também dos varredores de ruas, no regular funcionamento das nações»; o descobrimento de Subhro sobre a natureza e os suportes do poder, quando, do alto de Salomão, contempla a multidão com desprezo e conclui que «um arquiduque, um rei, um imperador não são mais do que cornacas montados num elefante».

Ainda, e como há muito nos habituou o autor de Memorial do Convento, a crítica à igreja é profusa e contundente, agora no desvario de um catolicismo que, no combate ao protestantismo de Lutero, não olha a meios para agrilhoar os crentes, desde o fabrico de milagres, ao negócio da fé e «cinismo» católico, todos parodiados pela narrativa que lhes dedica quadros hilariantes. Numa síntese do posicionamento saramaguiano, temos o quadro da partida de Salomão de Valladolid, decorado com uma enorme «gualdrapa» de opulentíssimos veludos, profusamente bordada, com pedras reluzentes e fio de ouro, dinheiro que se «malgastou» com o bicho, rosnou o arcebispo, pois daria um «palio magnífico para a catedral» da cidade. O «paramento» revela-se inútil na viagem, e o «ridículo e grotesco» acaba por ser enviado ao bispo e ao lugar a que pertence.

Mestre na harmónica do tempo, o autor cria um narrador que acompanha a acção, comenta e critica, sempre numa dialéctica activa entre passado, presente e futuro, enredando o leitor no criticismo de quem olha de frente o mundo para o conhecer. Nesta contaminação dos tempos, surge, por exemplo, a acção dos estrangeiros que gostam de se sentir em casa, projectando-se que, um dia, no Algarve, «toda a praia que se preze, não é praia mas é beach, qualquer pescador fisherman, tanto faz prezar-se como não, e se de aldeamentos turísticos, em vez de aldeias, se trata, fiquemos sabendo que é mais aceite dizer-se holiday’s village, ou village de vacances, ou ferienorte.» (p. 233).

Feita na primeira pessoa do plural, a narração é uma homenagem aos companheiros de viagem, a epígrafe da gratidão, com destaque individual de José Saramago à sua mulher, na Dedicatória: «A Pilar, que não deixou que eu morresse».

«A meta é o esquecimento. / Eu cheguei antes», escreveu Jorge Luís Borges em Rosa Profunda. Também a José Saramago se aplica a mesma certeza, por inscrever a perenidade numa pujante obra literária, reiterando-a neste livro que, ao falar sobre a morte, nos provoca um misterioso sentimento de felicidade.
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© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Toda a poesia de Albano Martins

Nas vésperas de completar 80 anos (a 24 de Julho), e na altura que celebra 60 anos de vida literária, Albano Martins vê editada a antologia que reúne toda a sua poesia: As Escarpas do Dia - (poesia 1950-2010), com a chancela das Edições Afrontamento, é apresentada no próximo dia 18 de Junho, pelas 18h00, no Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, por Salvato Trigo. Este é o primeiro de vários eventos do programa de homenagem ao nosso poeta e tradutor de poetas.
Enquando se aguarda a nova Antologia, deixo dois poemas de livros individuais ainda disponíveis no mercado.

Sim, dizias tu, mas em seguida
corrigiste: talvez. Esta
é a única palavra
que não tem casa. Que mora
no intervalo
entre o som e o silêncio.

in Palinódias, palimpsestos, p.27, Campo das Letras


Quase Marinha

Desta luz, mais branca
do que o branco - ou
do que o leite, como diria Safo -,
o que pode dizer-se
é isto: um dia
o céu
acordou sem nuvens e a linha
do horizonte, de tão fresca
e tão nítida
e tão próxima, era o parapeito
onde a infância vivia
debruçada. E era
ali que o voo
das gaivotas começava

in Castália e outros poemas, p.41, Campo das Letras


Ver, na Etiqueta correspondente ou AQUI, textos que elaborei sobre a obra de Albano Martins.

domingo, 13 de junho de 2010

Os 122 anos de Pessoa

Ser que viveu na obscuridade de um tempo que não o compreendeu, Fernando Pessoa (nascido a 13 de Junho de 1888 e falecido a 30 de Novembro de 1935) teve depois da morte a luz que lhe foi negada em vida: «A criança que fui chora na estrada. /Deixei-a ali quando vim ser quem sou; /mas hoje, vendo que o que sou é nada, /Quero ir buscar quem fui onde ficou. /Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou /a vinda tem a regressão errada.».

Com inteligência e intuição desmedidas, Pessoa investigou a sua invulgar sensibilidade, de forma indagadora e analítica, para a conhecer e fixar; a forte elaboração mental a que a emoção é sujeita - transformando a emoção, antes estática, em emoção pensada - leva a uma nova concepção de arte: o fingimento poético, surpreendentemente explanado no texto «Autopsicografia» onde «O poeta é um fingidor» que “finge” «A dor que deveras sente». Doutra parte, o desafio enreda também o leitor: «Os que lêem o que escreve, /Na dor lida sentem bem, /Não as duas que ele teve, /Mas só a que ele tem»; assim, anuncia-se que o leitor não sente as duas dores do poeta nem a dor que ele próprio (leitor) tem, mas uma quarta dor, a suscitada pelo objecto artístico que é o poema.

Marcado pela dor de pensar, pela fragmentação do Eu que aspira a conhecer-se – mas num processo em que cada vez se afasta mais de si –, pelo tédio e cansaço de viver, a poesia do ortónimo é de extrema exaltação íntima:


Quem bate à minha porta
Tão insistentemente
Saberá que está morta
A alma que em mim sente?
Saberá que eu a velo
Desde que a noite é entrada
Com o vácuo e vão desvelo
De quem não vela nada?
Saberá que estou surdo?
Porque o sabe ou não sabe,
E assim bate, ermo e absurdo,
Até que o mundo acabe?

Na tensão da vida, tangida pela dor, diz o poeta que «É preciso destruir o propósito de todas as pontes, /Vestir de alheamento as paisagens de todas as terras, / Endireitar à força a curva dos horizontes, /E gemer por ter de viver, como um ruído brusco de serras…» .

Pessoa: o «quarto com inúmeros espelhos»

Sobre a heteronímia, Casais Monteiro explica porque não se podem considerar anónimas ou pseudónimas as obras pessoanas, mas sim ortónimas e heterónimas: «A obra pseudónima é do autor em sua pessoa, salvo no nome que assinala; a heterónima é do autor fora da sua pessoa, é de uma individualidade completa fabricada por ele, como seriam os dizeres de qualquer personagem de qualquer drama seu.». Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos são personalidades que devem ser consideradas «como distintas do autor delas. Forma cada uma uma espécie de drama; e todas elas juntas formam outro drama». Mais, esclarece Casais Monteiro: «a criação dos seus heterónimos é uma fase da sua criação de companheiros, de situações, de vidas… As criações do seu “sonho acordado”.» Com efeito, isso mesmo é explicado por Pessoa na «Carta sobre a génese dos heterónimos».

Eduardo Lourenço diz que Pessoa, «para se curar da sua tristeza de ser consciente», se sonhou Caeiro. Alberto Caeiro diz que Pessoa era «um novelo embrulhado para o lado de dentro» e que ele, Caeiro, é o oposto, ele quer “desembrulhar-se, ser um «animal humano que a Natureza produziu». Assim, «O guardador de rebanhos» surge como «o mestre», o que aceita a diversidade das coisas, a reconciliação com o universo. Poeta da natureza, com versos tão naturais «como o levantar-se o vento», do olhar antimetafísico, simples e calmo, Caeiro devolve-nos a eterna descoberta e a pureza e da criança:

a criança eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
são as cócegas que ele me faz, brincando nas orelhas.

O mais intelectual de todos, Ricardo Reis surge como o “epicurista triste”, com a sábia indiferença que ensina a “viver o momento”, a levar a vida sem competições inúteis. A máxima «Abdica /E sê rei de ti próprio» define a filosofia do saber viver e faz de Reis um poeta indizível:

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

Frenético, Álvaro de Campos irrompe com todas as sensações, querendo «sentir tudo de todas as maneiras». Mas Campos é também o decadente, o cansado e angustiado. No poema «Tabacaria» pode ler-se:

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Também no Poema «Dactilografia» o heterónimo parece aproximar-se do ortónimo e solta a mágoa, aquela que o acompanhou durante toda a vida e que hoje nos ilumina:

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhamos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos, num substrato de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros.
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.


Nota: a editora Assírio&Alvim tem editados sete volumes de Fernando Pessoa - Obra Essencial

© Teresa Sá Couto

terça-feira, 8 de junho de 2010

Fernando Pessoa - tributo à alma estilhaçada e sem fronteiras

Fernando Pessoa nasceu em Lisboa em 13 de Junho de 1888 e morreu, só e doente, em 30 de Novembro de 1935. Foi sepultado no Cemitério dos Prazeres com o testemunho de cerca de 50 pessoas. No cinquentenário da sua morte foi transladado para o Mosteiro dos Jerónimos, a última morada concedida aos mais altos dignitários de Portugal, para junto daqueles que admirou: o sonhador e o martirizado, Vasco da Gama e Camões.

Mensagem foi o livro da sua vida e o único que viu publicado em vida. A sua voz, impiedosamente denunciadora, e hoje tão actual, grita esta terra onde «tudo é nocturno e confuso», com «três espécies de Portugal, três espécies de português»: um começou com a nacionalidade, «é a forma e o fundo da nação, trabalha obscura e modestamente. Existe porque existe, e é por isso que a nação existe». O outro «é o português que o não é», o que governa o país, «mas divorciado do país que governa. Contra a sua vontade é estúpido». O terceiro é o «português que fez as Descobertas, o que sonhou, mas que se foi em Alcácer Quibir», deixando, porém, alguns parentes que intentam, ainda no sonho - são os portugueses que «projectam a fé», que procuram ideais.

Deixou-nos um acervo genial de palavras, multiplicadas pela sua heteronímia, marca de um indivíduo que não coube num só corpo nem numa só alma. A escrita de Mensagem foi iniciada a 21 de Julho de 1913, finalizada em 26 de Março de 1934 e posta à venda simbolicamente, em 1 de Dezembro desse ano.

Eu nunca fiz senão sonhar

Mensagem é, também, a voz de um povo, uma raça que partiu em busca de uma Índia, que a tomou e perdeu. Porém, todas as naus são de sonho logo que esteja em nós o poder de as sonhar, ou Deus quer, o homem sonha, a obra nasce. Expõe-se a dor, a nostalgia, a saudade, mas fomenta-se um devir com glória, com um olhar fito no mar, no horizonte, na esperança: Sem a loucura que é o homem / Mais que a besta sadia, / Cadáver adiado que procria?.
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É preciso que a chama ilumine o herói, fecunde a realidade e faça com que a vida valha a pena ser vivida. E dá-nos o seu exemplo: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: Navegar é preciso; viver não é preciso. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar com o que sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a minha alma lenha desse fogo.
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«Eu nunca fiz senão sonhar», escreveu Bernardo Soares, semi-heterónimo de Pessoa. E a mensagem final de Pessoa é que Portugal tem de se elevar através de uma espiritualidade forte, capaz de subjugar todas as adversidades. É um repto para se cumprir...

© Teresa Sá Couto