quinta-feira, 31 de julho de 2008

Os Peregrinos Sem Fé, Sérgio Luís de Carvalho

A travessia da consciência, em tempo de romarias

O que fica do homem depois de deixar de acreditar? O que resta ao sonho depois de saber que a realidade não permite ilusões por muito tempo? Como prosseguir depois de perdida a esperança? Qual o valor da fé na errância humana? Estas são algumas questões suscitadas pela narrativa «Os Peregrinos Sem Fé», livro de Sérgio Luís de Carvalho, Director do magnífico Museu do Pão de Seia e escritor de cunho inconfundível, tanto no manuseio da palavra como nas temáticas.

Lançado no ano passado, este Os Peregrinos Sem Fé foi editado ao mesmo tempo em Portugal e na Galiza onde é acolhido sempre com o máximo entusiasmo ou não fossem os romeiros de Santiago a partilha de portugueses e galegos, como se refere no presente livro: «dizem que por aqui existem caminhos muito antigos, por onde desde sempre passaram portugueses ou galegos exibindo as raízes tão comuns.». Esta é, pois, uma leitura maior para este tempo de romarias e férias, esperando-se o próximo romance do autor a editar ainda este ano.

Neste, como no romance anterior a este - o magnífico Retrato de S. Jerónimo no seu Estúdio - Sérgio Luís de Carvalho mostra-nos que é possível narrar-se o tempo com recurso à memória, suporte da vida dos homens, mesmo sendo ela infiel e enganadora, pois é essa a «infeliz condição do homem». Com as histórias de dois homens que, separados por cinco séculos, narram as suas viagens de Lisboa a Santiago de Compostela, sempre acompanhados por outras memórias ainda mais antigas, as de Eneias, da Eneida de Virgílio, mostra-se que, independentemente dos tempos, a busca da consciência foi sempre um imperativo da existência, e o conhecimento alcançado na travessia é tão diverso quanto os homens que as fizerem.

Dois textos em alternância preenchem as 425 páginas da aprendizagem de dois homens, sem nome, pois podem ser qualquer um de nós. O primeiro é um médico e professor humanista, preso nos Estaus, sede em Lisboa do Santo Ofício, corre o ano de 1563. Acabou de assinar a carta de abjuração – pelo que aguarda a libertação – e, impulsionado pela leitura da Eneida de Virgílio, acaba de escrever a viagem que fez no meio de peregrinos a Santiago de Compostela. O segundo é o intérprete de Eneias na ópera «Dido e Eneias» de Henry Purcell, e regressa a Santiago, local donde fugiu por lhe ser insuportável o amor de Irina, a mulher que interpretou Dido, e que, também ela, se suicida depois da partida do seu Eneias.

Histórias de desamparo e solidão

A travessia dos dois homens é de desamparo, solidão e de expiação das culpas. Ainda que com finais diferentes, ambos os homens fazem a viagem a Santiago de Compostela com descrença: o médico fá-la pela descrença religiosa da peregrinação – disfarça-se de peregrino para fugir à perseguição da Inquisição –, mas animado pela crença nas suas ideias humanistas; o cantor fá-la, vazio de qualquer esperança – vai ao encontro do final que esperava e a confirmação do dano humano:
«para quase tudo é sempre demasiado tarde; passamos a fronteira e não notamos e fica para trás a estrada ou o atalho que eram os ideais para regressar»; «Também nós, cegos e surdos a todas as evidências assim somos, crentes sempre em algo de melhor, algo superior a nós. Corremos e insistimos e agimos sempre, e sempre, até a realidade enfim tombar sobre nós, nos cobrir com o seu negro manto e zombar das nossas esperanças. Mas tanta vez – ai de nós – nem assim abandonamos a nossa estúpida esperança. Não há pior coisa nem melhor coisa que a esperança. Somos fortes em a ter, somos fracos em a ter.».

Sem fé, prossegue, mas arrastando-se, com a inércia em vez do fulgor que a caminhada deveria ter. É com o olhar tragicamente ímpio que se detém nos peregrinos:

«Talvez os inveje. Talvez agora inveje a sua força, a sua crença que os leva tão ligeiros aonde um santo terá chegado há muito tempo. A fé os faz recusar as evidências, e isso é bom. A fé lhes diz que continuem, e isso é bom também. E se a realidade que os cerca contraria tudo aquilo em que acreditam, eles prosseguem, porque estarão certos ser a realidade que se engana. E são felizes, pois a realidade não lhes destrói as ilusões. Talvez…»

Também o médico detém-se nos peregrinos, seus companheiros de viagem, e a quem aprendeu a respeitar: «por vezes invejei a fé tão chã que eles tinham, e eu não. Livre, eu ia forçado em romaria, por dever que a mim mesmo assim me impus; eles todos, todavia, iam mais livres, mesmo se obrigados por promessas ou sentenças.».
Também ele se esquecera como «era perigoso ter esperança», pois, passados uns anos em Santiago, regressou a Portugal, onde a Inquisição não se tinha esquecido dele.

Agora, no seu cárcere, apesar de esperar a liberdade, maldiz-se traidor por ter assinado a carta onde, para se salvar, renegava os amigos e as ideias. Tal como o cantor que expia as culpas da sua fuga, o médico expia o seu acto. Medo ou cobardia? «Se calhar, cada um é cobarde como pode». Afinal, cada homem transporta consigo a sua sombra, consciência funda, a maestrina das suas acções, que pode ter a forma de um cão que uiva incessantemente, branco ou negro, como os que acompanham sempre os protagonistas desta narrativa de Sérgio Luís de Carvalho.

Os Peregrinos Sem Fé, Sérgio Luís de Carvalho; Campo das Letras, Porto, 2007


© Teresa Sá Couto

domingo, 27 de julho de 2008

Cinco anos a celebrar o Teatro

Já está disponível ao público o número 9 da magnífica revista semestral Sinais de Cena, da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro, em colaboração com o Centro de Estudos de Teatro da Universidade de Lisboa, e editada pela Campo das Letras. A publicação entra, plena e já há muito imprescindível, nos cinco anos de construção laboriosa de «um espaço de documentação, debate, análise e avaliação do que no campo do teatro – e de outras artes performativas – se vem praticando em Portugal e no resto do mundo».

Para além das rubricas habituais, o número aborda os Prémios da Crítica 2007 com que se celebram espectáculos, autores, actores e projectos portugueses; uns meros “diplomas”, «artefacto modesto», diz Maria Helena Serôdio, que dirige a revista, sobre estes incentivos, mas que são um tributo ao Teatro, que nos enriquece, orgulha e alimenta a esperança nesta arte maior erigida num país que devia fazer mais por ela; como o esplêndido e inefável tributo ao Teatro que é dado por esta revista.

Na capa, os actores Cecília Henriques e Pedro Carracal, em Disco Pigs, dos Artistas Unidos, espectáculo de 2007; no interior, sucedem-se olhares com o rigor e a excelência de sempre nas abordagens do que por cá se leva à cena – nos grandes centros, mas também no interior do país, de lugares «descentrados», donde se distingue o espectáculo «Pax Romana», que tem dramaturgia e encenação de Nuno Pino Custódio, da ESTE - Estação Teatral da Beira Interior, estreado em 2006 no Auditório da Escola Secundária do Fundão, e ainda em exibição.

Na rubrica PASSOS EM VOLTA, titulado «Paz e guerra com humor crítico», o artigo de Maria Helena Serôdio traça as andanças do «Pax Romana» durante estes dois anos, descreve o espectáculo, intercepta-lhe elogiosamente as singularidades, num texto em que a crítica se revela contaminada pela excelência do espectáculo: é «por muitas razões, um trabalho exemplar: de rigor na composição do gesto, movimento e expressão facial; de imaginação delirante na linguagem inventada; de “reconstrução” criativa do vestuário romano (desenho brilhante de Marta Carreiras); de inventiva criação de sonoridades vocais e musicais; de acertadíssimo compasso na ridicularização da guerra e dos “treinos” militares; no jogo magnífico que empreende com os espectadores.».

Noto que, estando tecnicamente ligado à Commedia dell’Arte, o espectáculo esteve, em 2006, em Lisboa, no largo do Castelo de S. Jorge, no ensejo do Festival de Máscaras organizado por Filipe Crawford, e em 2007 no Chapitô, sessões que infelizmente perdi, pelo que aguardo, eu, mas sei que falo por muitos mais, nova “visita” à capital.

Os Prémios e a crítica
Logo na primeira rubrica, DOSSIÊ TEMÁTICO, encontram-se artigos sobre os galardoados com o Prémio da Crítica do ano 2007, atribuído ex-aequo ao espectáculo «A Tragédia de Júlio César», co-produção do Teatro da Cornocópia e Teatro São Luís, com encenação de Luís Miguel Cintra, e ao espectáculo «Foder e ir às Compras», co-produção da companhia Primeiros Sintomas e Centro Cultural de Belém, com encenação de Gonçalo Amorim. Seguem-se os artigos sobre os galardoados com Menções Especiais atribuídas à actriz Emília Silvestre, ao Projecto PANOS (Palcos novos / Palavras novas) e à Editora Cotovia, pelo magnífico trabalho de edição de dramaturgia.

Das habituais dez rubricas, destaque-se ainda: PORTEFÓLIO, com um olhar sobre «A dramaturgia irlandesa no teatro português: Entre renovações e actualizações», complementada por registos visuais; NA PRIMEIRA PESSOA, com uma extensa entrevista a João Perry, titulada «Viver para poder contar»; EM REDE - UbuWeb (em três movimentos);
ESTUDOS APLICADOS, com magníficos artigos sobre o incontornável dramaturgo Harold Pinter (Humanismo e vitalidade nas peças de Harold Pinter, A "igreja masculina" de Pinter e Realismo e palavra brutal: Harold Pinter no Brasil); NOTÍCIAS DE FORA, com um estudo sobre a marginalidade (O teatro dos Forced Entertainment); LEITURAS, com várias resenhas críticas e uma lista de publicações de Teatro no ano de 2007; ARQUIVO SOLTO, com a nostalgia a encontrar «Uma fábrica de gargalhadas», o antigo Teatro do Ginásio, no Chiado, desde a sua edificação em 1852, passando pelo apogeu no início do século XX, momentos conturbados, o incêndio de 1921 e o fim da vida, nos anos 50, restando-lhe agora a fachada do que é o «Espaço Chiado – Centro Comercial e Cultural Theatro do Gymnasio», que compreende 67 lojas, 28 escritórios e …um Cine Teatro….

© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Três leituras que desvendam o ser português

Com ficção, Filosofia e História se faz uma magnífica selecção de três livros que lançam a reflexão sobre nós. A saber: «Fados & Desgarrados», romance de José Xavier Ezequiel, editado no ano passado e que continua em apresentações pelo país; «A Morte de Portugal» é um ensaio de Miguel Real, editado no final do ano passado e que acabou de conhecer a 2º edição; «O Nosso Século é Fascista – O mundo visto por Salazar e Franco» é um magnífico ensaio de Manuel Loff, e acabou de ser editado.

Já que os textos que elaborei estão editados noutros lugares, sugiro, pois, o reencaminhamento, através dos links nos títulos destas brevíssimas apresentações:

Torrencial, vertiginoso, inteligente, indiscreto, provocador, boémio, burlesco, irónico e sarcástico são adjectivos obrigatórios para se anunciar o livro Fados & Desgarrados de José Xavier Ezequiel.
Esta é «uma história revitalizada de 'tristes, solitários e finais'», diz Dennis McShade, pseudónimo de Dinis Machado, no Prefácio; este é um vibrante manifesto daqueles seres desgarrados, acrescento eu, e uma história de descaminhos que encontra o caminho certo em 219 páginas.

Da colecção O Voo do Morcego, da Campo das Letras, a narrativa é um voo pela Lisboa noctívaga, pela nostalgia com travo de vodka dos bares do Bairro Alto das ressacas e dos engates, tudo enredos para uma vigorosa crónica de costumes que despe, literal e metaforicamente, e disseca, até ao risível, uma certa sociedade lisboeta, com extensões críticas ao país cultural, político, económico, social e moral, como há muito não o fazia a literatura portuguesa.

«Que os ratos se devorem uns aos outros», escreveu Jorge de Sena, asserção escolhida por José Xavier Ezequiel para abrir o seu romance. E está lançado o mote que se desenvolve em muitas e inusitadas voltas com o compromisso de fazerem da narrativa um laboratório de observação crítica da sociedade actual. Os «exercícios de voyeur» depois libertados numa «desnorteada associação de pensamentos» definem o método: o «velho hábito de observar as pessoas, tentando traçar-lhes o perfil a partir dos pequenos detalhes, da roupa que trazem vestida, do cheiro que escolherem usar», pegar numa «ponta solta de conversa, do que têm à frente para beber». A narração na primeira pessoa, espontânea, coloquial, em tom de confissão, estabelece um diálogo contínuo com o leitor que se lhe rende de bom grado.

Na roleta do quotidiano

Do protagonista fica o leitor a saber tudo o que ele quer contar e o que parece deixar escapar. Tem 43 anos, é bancário até às cinco horas, boémio depois disso. Descobriu o vodka, passando a dedicar-se-lhe de «alma e coração», depois de uma monumental «dor de corno» por uma namorada de classe baixa dos subúrbios, com «uma imensa vontade de subir na vida, um cu e umas pernas superiormente capazes de servir de moeda de troca», que o trocou por um «gajo» dono de um «MG coupé de 73».

Amante de «geografias» e de «excessos», a sede nunca lhe faltou, enquanto que «dinheiro no bolso, sempre foi inversamente proporcional à puta da sede». A vida sempre foi para ele uma roleta: «russa, espanhola ou a puta que o pariu. Sempre vivi cada momento com a paixão do dedo no gatilho. A rotação aleatória do tambor. No sítio fatal.».

Com este anti-herói surge uma galeria infinita de personagens, todas filtradas pelo seu olhar, com valor de tipos sociais que facilmente todos reconhecemos no nosso quotidiano, aqui construídas caricaturalmente pela palavra, enquadradas e prolongadas nos espaços – os bares e as labirínticas artérias da Lisboa noctívaga – que, por sua vez, pela sua engenhosa construção narrativa têm também eles o estatuto de personagens. Assim surgem: o «discurso entaramelado comum a todos os bêbados da aldeia global»; os «rituais de acasalamento», sexo, «putas», «putinhas», droga, paneleiros travestis, pelintras «com nome e novos-ricos sem background que se desunham para aparecer nas fotografias das revistas do pindérico jet set nacional»; e até um Tio, fiel representante dos sinistros endinheirados, um mafioso com contactos e negócios no mundo todo, nascido em Chaves, «criado com os porcos as cabras as ovelhas e as vacas», que aprendera as artes do «contrabando lucrativo» nos tempos de Salazar, e que era agora um gordo Paxá com o «estereotipado hábito de se vestir de branco», «com chapéu pingalim Mercedes branco à prova de bala e todo o resto do figurino».

É esta figura que vai dar ensejo a uma história policial, um thriler à portuguesa a fazer lembrar-nos Eça de Queirós quando nos sugeria, no final de Os Maias, num desabafo de Ega, que os portugueses não se podem dar ao luxo de ter princípios, pois são feitos de Romantismo, «isto é: indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão». Será, pois, um Fado ser-se português desgarrado?

Cumprindo o seu fado, o protagonista lá se vai resignando: «Mas enfim, podia ser muito pior, morar numa casa em Chelas oferecida pelo senhor Presidente da Câmara em ano de eleições autárquicas, auferir o Rendimento Mínimo Garantido gentilmente cedido pelo senhor Ministro da Solidariedade, bonito nome, andar no paipelaine do cavalo e das lamelas de haxixe, arrumar carros nos poucos sítios onde ainda não puseram parquímetros da EMEL, e dormir nas sórdidas arcadas do Martim Moniz dentro de uma singela assoalhada de cartão que já tinha servido de agasalho a um espaçoso frigorífico alemão da classe energética A.».

Sendo esta narrativa insurrecta, reserva para o protagonista desgarrado um final feliz: o Tio mafioso, «mau como as cobras», é, afinal, seu tio, morre com sida – um brinde de uma das suas lolitas – e cancro da próstata, e, sem herdeiros, deixa-lhe a prolixa herança. «Por muito sujo que seja, é dinheiro. Bué dinheiro. E agora digam-me lá, seus invejosos, haverá dinheiro limpo?», atira ao leitor, numa pergunta de retórica, mas muito bem decifrada por nós, portugueses…

© Teresa Sá Couto


A «”morte de Portugal” não significa que Portugal desapareça (Portugal “dura”, escrevia Eça de Queirós durante a crise do Ultimatum; é, aliás, a sua grande virtude, não dar felicidade ao seu povo, mas durar, sobreviver, existir por existir, criando contínuas mitologias que justifiquem a sua existência)», diz Miguel Real no novíssimo Ensaio «A Morte de Portugal». .A morte de Portugal residirá, então, no desaparecimento de toda a originalidade portuguesa substituída pela vertigem estrangeira por uma «ditadura tecnocrática» instituída por «técnicos medíocres» para quem só conta «primeiro, a contabilidade das estatísticas, e, segundo, o sentido europeu das estatísticas». (In blogue Leituras)

«O Nosso Século é Fascista!»

Salazar e Franco nasceram com 3 anos de diferença (1889 e 1892, respectivamente) e viriam a dar o nome às duas ditaduras ibéricas. O primeiro, com o programa Deus, Pátria, Família, com a força do Manda quem pode, obedece quem deve e numa «linha geral europeia»; o segundo, autoproclamando-se o Caudillo de Espanha pela graça de Deus e voz do movimiento general de rebeldia en las masas civilizadas del mundo; ambos, crendo-se portadores de uma nova ideia, que impuseram de forma totalizadora – no Estado Novo e Nuevo Estado –, a ideia de uma Nova Ordem, regeneradora e saneadora, integrante de uma nova Europa com fórmulas hitleriana e mussoliniana.
Conhecer o pensamento político daqueles dois homens filhos de um tempo complexo e vário é a proposta do soberbo e urgente Ensaio «O NOSSO SÉCULO É FASCISTA! – O mundo visto por Salazar e Franco (1936-1945)» do historiador Manuel Loff. São quase mil páginas de fascínio, que, sedento, segue a profusa e rara documentação histórica, interpelada, interpretada e contextualizada pelo historiador. (In blogue Leituras)


Ver neste blogue outros textos sobre livros no campo da História:

O Padre António Vieira e as mulheres

FERNÃO LOPES -CRÓNICAS

© Teresa Sá Couto

domingo, 20 de julho de 2008

Idades eternas de Mia Couto

Livro de poesia do escritor moçambicano

A poesia capta o instante e solta-o na eternidade. Isso ensina-nos Mia Couto, o escritor e sempre poeta moçambicano, o que reparte o «doce milagre da refeição» da palavra. «A diferença /entre o poeta e a cigarra /é apenas a sinceridade», escreve. A diferença entre os outros homens e o poeta é que este conhece a pele da palavra, despe-a e ama-a, sabe-lhe o cheiro e a respiração, a luz e a treva, e solta-a porque sabe que ela não lhe pertence, que ela é livre e que o seu desígnio é o voo da eternidade. Depois de «Raiz de Orvalho e outros poemas», editado em 1999, e de vários poemas em prosa, que são todos os seus romances, Mia brinda-nos com o livro de poesia «Idades, Cidades, Divindades». E nele encontramos a palavra sem idade, a cidade universal, mestiça e inteira, o esplendor do voo vocabular que, místico e iniciático, transporta tudo o que somos.

Conjugando como ninguém as palavras que todos conhecemos, Mia Couto atinge-nos na liquidez primordial que nos corre nas veias, numa precisão que o próprio Mia desvenda: «fazer da palavra um embalo /é o mais puro e apurado senso da poesia». Talvez o destino de ser poeta nunca tenha estado tão depurado: «Meu vício /é vitalício: comer a Vida /deitando-a entontecida /sobre o linho do idioma. /Nesse leito transverso /dispo-a com um só verso. /Até chegar ao fim da voz. /Até ser um corpo sem foz.». Um vício assim radicado no chão: «Tenho a sede /do embondeiro: /ao invés de beber, /eu engulo o chão inteiro.».

Palavras de duas águas

Duas águas, duas culturas, Portugal e África: por diversas vezes Mia Couto tem abordado esta questão da identidade, dando-lhe forma nos seus romances, defendendo-a como filosofia da sua vida. Trata-se de um património que se transporta e que evidencia um sentido mais lato: não há identidades singulares, o ser humano tem identidades múltiplas, que constrói e reconstrói constantemente. Aliando-se o poeta ao contador de estórias, aquela filosofia é reiterada neste livro, como nos surpreendentes «O idioma» e «O outro idioma. Confira-se:

Silvestre quer saber /porque razão eu estrago o português /escrevendo palavras que nem há. /Não é a pessoa que escolhe a palavra. / É o inverso. /Isso eu podia ter respondido. /Mas não. /O tudo que disse foi: /é um crime passional, Silvestre. /É que eu amo tanto a Vida /que ela não tem /cabimento em nenhum idioma. /Silvestre sorriu. /Afinal, também ele já cometera /o idêntico crime: /todas as mulheres que amara /ele as rebaptizara, vezes sem fim. /Amor se parece com a Vida: /ambos nascem na sede da palavra, /ambos morrem na palavra bebida.

***

Inquirido / sobre a sua fluência /em português, respondeu: /- Tenho duas línguas: /uma para mentir,/ outra para ser enganado./ A professora /ainda perguntou: / - E qual delas é o português? /- Já não me lembro, respondeu.

Na curva do rio…

A água é um dos elementos omnipresentes na escrita do autor de Mar me Quer. Ela esculpe a dor, o amor e o sonho; ela é o princípio, o caminho, o fim; ela é a Espera. Talvez por isto, haja a metafísica de que «temos a raiz num rio /e é por isso que o mar /nos dá a tristeza de um destino»; será também essa a aclaração do segredo do poeta: «todas as noites /me deito num livro /para em outra vida desaguar. /Rio escapando da margem, /margem escarpando um rio.»; e é por aquela mesma razão que escorrem poemas como este:

(…)
Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
e em tua saudade ser a minha própria espera

Mas eu deito-me no teu leito
quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.



Idades, Cidades, Divindades, Mia Couto; Editorial Caminho, Lisboa, Setembro 2007
© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 7 de julho de 2008

«Venenos de Deus, Remédios do Diabo»

O novíssimo romance de Mia Couto

Aos 10 anos todos dizem que somos espertos, mas que nos faltam ideias próprias. Aos 20 anos dizem que somos muito espertos, mas que não venhamos com ideias. Aos 30 anos pensamos que mais ninguém tem ideias. Aos 40 achamos que as ideias dos outros são todas nossas. Aos 50 pensamos com suficiente sabedoria para já não ter ideias. Aos 60 ainda temos ideias mas esquecemos do que estávamos a pensar. Aos 70 só pensar já nos faz dormir. Aos 80 só pensamos quando dormimos.

Estas são palavras de Bartolomeu Sozinho, um septuagenário da Vila de Cacimba, ex-mecânico no colonial transatlântico Infante D. Henrique, magnífica personagem do novíssimo romance «Venenos de Deus, Remédios do Diabo» de Mia Couto. Na idade da sabedoria, o escritor moçambicano semeia mais uma narrativa com a torrente e o exotismo do chão africano e almas que nele voam carregando a espessura dos segredos e das lembranças. Uma leitura de um fôlego por 188 páginas imperdíveis para estas férias.

Sidónio Rosa é o jovem médico português que vai para Moçambique para sossegar «um bater de pilão no peito», para encontrar Deolinda, uma mulata que ele conheceu em Lisboa durante um congresso. Mas Deolinda morreu, e o facto é-lhe inicialmente ocultado, e ela não era quem ele pensava. É ao embrenhar-se na África profunda – mesmo conhecendo apenas a rua de areia que liga a pensão ao posto de saúde e à casa de Bartolomeu e Dona Muda, pais de Deolinda – que este europeu descobre a sua missão naquele continente: a de acordar segredos e salvar as lembranças, já que a âncora é a lembrança ou, como diz Bartolomeu, «é o esquecimento e não a morte que nos faz ficar fora da vida».

Com um narrador omnisciente que completa a fala e os pensamentos das personagens, e exímio a remexer nas emoções mais fundas, segue o leitor na vertigem narrativa para descobrir que «os segredos, em Vila Cacimba, não se enterram nunca em cova. Ficam em buraco aberto como ferida que nunca ganha cicatriz». Enquanto espera Deolinda, Sidónio Rosa, rebaptizado de Sidonho pelo povo, ocupa-se a tratar de uma epidemia de meningite, com rumores de obra encomendada, coisa de maus espíritos, doença que faz os homens vagabundearem enlouquecidos pelas ruas – os tresandarilhos – agitando os braços como se quisessem voar, e gasta os passos a caminho de casa dos Sozinhos.

Desde o início, o médico – que afinal não é médico porque ainda lhe faltam umas cadeiras do curso – é enredado numa teia de mentiras: «poucos e desamparados, partilhando secretas cumplicidades e sofrendo de um mesmo sentimento de orfandade. A cultura que os criou está longe, noutro tempo, noutro universo. A mentira é o único remédio que lhes resta contra essa solitária lonjura.». Deolinda fora amante de Alfredo Suacelência, o vitalício administrador da Vila e amigo de infância de Bartolomeu ou fora amante do próprio pai? Ou de nenhum dos dois? Morreu de aborto ou doutra doença? Era mesmo filha do casal Sozinho ou irmã de Muda e, assim, cunhada de Bartolomeu?

«A vida é um rio: a água junta e separa»

Bartolomeu e Muda são as duas personagens centrais, soberanamente desenhadas nos diálogos e nos silêncios que os diálogos ostentam, como, aliás, Mia Couto já nos habituou. À semelhança doutros títulos do autor, é aqui retomada, misticamente, a figura de um casal feito de duas águas do mesmo rio, duas vidas ondulantes distintas, mas partes do mesmo destino: «os passos dele são pequenos: de um chão de prisão. Os passos dela são redondos: de quem anda em ilha».
Viviam «como o dedo e o anel: não nos fazemos falta, mas não vivemos longe um do outro», diz a mulher, que «partilhava a condição das demais mulheres da Vila: envergonhada de ter nascido, temente de viver e triste por não saber morrer». «A vida é um rio, Doutor: a água junta e separa», diz ela, caracterizando a vivência da sua dor: «O meu chorar é feito à medida do lenço».

Moribundo, «sombra esvoaçando no escuro» de uma casa onde se mantinha fechado, com os pés cheios de escamas, o septuagenário padece de uma misteriosa doença que dizia ser de família: dizia estar a lagartar-se, pois já o avô tinha morrido lagarto. Ao médico, faz pedidos insistentes: para «alvoroçar o coração, solavancar o corpo», pede uma das novas «pretas loiras, de olhos azuis» ou uma catorzinha ou até a sua mulher, disfarçada de puta, pois foi sempre ela que ele quis; mas, sobretudo, ele que sonhou ser mecânico «para consertar o mundo», pedia ao médico que o curasse de sonhar, pois «sonhar é um modo de mentir à vida, uma vingança contra um destino que é sempre tardio e pouco»: «Todos elogiam o sonho, que é o compensar da vida. Mas é ao contrário, Doutor. A gente precisa do viver para descansar dos sonhos».

«O tempo é o lenço de toda a lágrima»

«O sofrimento é sempre a nossa escola maior», diz Bartolomeu enquanto se deixava «existir, com a mesma inércia que o crescimento das unhas». A sua doença era a saudade, essa doença do tempo que semeia perdas e desata a vontade de nos unirmos a elas ou ressuscitá-las pelas lembranças: «O Homem entende a vida. Mas só os bichos entendem a Morte.». Também Muda padecia da mesma doença que a fazia, todos os finais de tarde, ir ao rio chorar ou derramar a sua tristeza junto da campa de Deolinda.

O jovem médico resolve cortar as amarras com aquela terra e regressar a Lisboa. Mas a ponte entre culturas fora erigida e ela é indestrutível, mostra-nos soberanamente, e uma vez mais, Mia Couto: o médico carregava com ele um novo possível encontro, com Isadora, verdadeira filha de Bartolomeu, fruto de uma das suas viagens de marinheiro a Portugal e que viveria perto de Lisboa. Por outro lado, o tempo da memória, lugar habitado pelas almas agarradas à terra, passa a ter outro representante; uma mulher misteriosa, vestida de cinzento, sentada à beira da estrada, por onde passa a camioneta que leva Sidónio, acabada de chegar com uma missão: semear por toda a Vila as flores brancas do esquecimento, flores que se plantam junto dos cemitérios «para que os mortos se esqueçam de que, em algum momento foram viventes».

Numa narrativa cristalina, que nos arranca sorrisos e estremecimentos, Mia Couto mostra-nos mais esta verdade existencial: todos somos feitos de tempo e na nossa alma vivente vivem também todas as almas que tocámos e que já partiram, mas que, desobedientes, recusamos deixar ir… Para «venenos de Deus, remédios do Diabo»...


Venenos de Deus, Remédios do Diabo, Mia Couto; Editorial Caminho, Lisboa 2008


Outros artigos meus sobre Mia Couto, editados há 3 anos:

http://www.triplov.com/letras/teresa_sa_couto/mia_couto.htm


© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 4 de julho de 2008

O DOMADOR DE VENTOS

«Aonde o Vento me Levar» é um título de Manuel Jorge Marmelo. Título ardiloso que indicia o grande jogo que se joga entre a palavra na deriva do vento e o único que os pode dominar: o escritor. E este é o grande e misterioso jogo entre o criador e a criação que o autor cumpre com engenho, também no desafio com o leitor.

«O número de rios não é infinito; um viajante imortal que percorra o mundo acabará, algum dia, por ter bebido de todos», escreveu Jorge Luís Borges. Também Manuel Jorge Marmelo se propõe, e nos propõe, «descobrir esse rio» onde se mata a sede de quem somos e onde, mirando-nos nas suas águas, nos podemos redescobrir. O livro que agora sugiro dá conta dessa demanda, é um espaço cósmico, espelho e mapa do universo, o Aleph, lugar onde confluem «sem se confundirem, todos os lugares» da terra, todos os livros e todos os homens. E cumpre-se uma leitura de alquimias.

Todos temos algo de fixo e de movediço. Também nesta ficção, o narrador, o Eu, propõe-se escrever um livro de viagens sem sair do seu lugar. Assim, envia a personagem «M.» para que lhe envie notas que ele converterá em literatura. Mas o que acontece ao projecto literário quando a personagem tem ganas de autonomia e subverte os papéis tornando-se ela no escritor, deixando o primeiro escritor à deriva? Podem as personagens escrever um livro relegando o escritor para o papel de observador? E pode esta peleja ser substantiva ao ponto de com ela se urdir uma narrativa? Manuel Jorge Marmelo responde-nos em 158 páginas de reboliço, como sempre o são as da melhor literatura.

O escritor e a criação

«Começa aqui o meu desespero de escritor. Toda a linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um passado que os interlocutores compartilham; como transmitir aos outros o infinito Aleph, que a minha tímida memória mal abarca?», escreveu Jorge luís Borges em «O Aleph» (1949). Também Manuel Jorge Marmelo, detendo-se nessa tensão entre ficção e realidade, e como elas se contaminam, apresenta-nos a quimera literária através de um narrador céptico que maldiz o método utilizado para escrever, lamentando-se por «ter deixado entrar tanta realidade no casulo de livro» que construiu dentro de si, concluindo: «eis, pois, o que me falta: copiar, inventar e mentir.

A isto se resume a literatura.». Este princípio de ocultação da realidade como motor da obra literária é veiculado por Enrique Vila-Matas no seu último romance Doutor Pasavento, com a personagem que, de um quarto e cidade reais, passeia «por alamedas mentais nesse fim do mundo onde se colocou» o seu cérebro: «desaparecer é ceder lugar ao outro» e, «quem quiser ir mais além terá de desaparecer».

Em «Aonde o vento me levar» mostra-se como a ficção é um caminho de introspecção e, por isso, gerador de realidade: «M. talvez nem sequer exista. Tê-lo-ei arrancado de dentro de mim, como um pedaço inútil das minhas entranhas, e, ao fazê-lo, dei-lhe uma vida que jamais terei. Mesmo se não devo excluir completamente a possibilidade, nada remota, de me ter ele inventado a mim, enche-me de um peculiar orgulho saber que essa porção daquilo que sou (ou julgo ser) foi já tão longe.»

Homenagem a África

Com o narrador, anda o leitor de cá para lá, entre páginas de outros livros que ele lhe abre, a sorrir pela consentida sujeição à leitura – ou deslumbrado com o Aleph de Manuel Jorge Marmelo, que o envolve em sons, cheiros e texturas de África –, pouco se importando com os seus lamentos por não conseguir uma história que dê corpo ao seu livro.Escreveu, ainda, o escritor argentino: «Vi milhões de actos agradáveis ou atrozes; nenhum me assombrou mais que o facto de todos ocuparem o mesmo ponto, sem sobreposição e sem transparência. O que os meus olhos viram foi simultâneo; o que escreverei será sucessivo, pois a linguagem o é. Algo, no entanto, registarei.».

De incertos e longínquos locais da África profunda, descalço para se fundir com a terra, “M.”, que não está quieto, «escreve e escreve e escreve» e vai enviando aerogramas que o narrador reproduz, não sem se questionar sobre a inutilidade da viagem e sobre o espaçamento com que lhe chegam alguns dos bilhetes de M. que, «Se está num sitio e, depois, aparece escrevendo em outro bastante distante, algum caminho há-de ter feito». Metáfora da inventiva literária, que pode atravessar fronteiras onde bem entende: «Não tenho passaporte e sou quase incorpóreo (…) Afago a casca grossa dos embondeiros e neles sinto a muda palpitação da terra. Faço amor com as árvores e acaricio a pele dos rios. Mergulho os dedos na terra para fecundá-la de mim.».

«Aonde o vento me levar» é a «síntese imperfeita de um livro sobre coisa nenhuma e no qual nada acontece»: “M.” viaja «sem rumo predefinido», como tantas vezes qualquer um de nós o faz; a viagem de “M.” é «destrambelhada, temerária e estéril» como sempre o é, nalgum ponto, a existência humana; “M.” tem um «segredo, uma contra-senha, um abracadabra», como todos nós. Cabe-nos, pois, usar a chave que nos coube para acedermos à nossa outra porção. E há que partir e ir até aonde o vento nos levar.

Aonde o Vento me levar, Manuel Jorge Marmelo; Editorial Campo das Letras, Porto

© Teresa Sá Couto