Entre rumores e rios a morte perder-se-ia.
António Ramos Rosa,
poema Nascimento
Último (1)
Na câmara escura de João Paulo Sotto Mayor habitam brilhos e rumores de uma cidade,
reúne-se o espaço e, assim, antologia-se o tempo. Refiro-me a Cristais da Tarde, o mais recente livro
de fotografias do autor que agora nos dá um miradouro sobre as tardes que
enredam a cidade do Porto: o rio e o mar, as nuvens e o vento, as pontes e o
casario, a calma e o bulício, as pessoas e as aves, a luz dramática de poentes
e o brilho baço da neblina que veste o horizonte e a alma, a lembrar a segunda
estrofe do poema Miradouro de Santa
Catarina, de Jorge Velhote: “Uma ave devora-me a alma e / a melancolia,
confesso, suja-me / um pouco os dedos.”.(2)
.
Fundador, em 1976, do grupo IF,
Ideia&Forma, com António Drumond , entre outros, Joao Paulo Sotto Mayor, na centena de fotografias
a cores e preto e branco que unem a sua respiração a textos de autores da
literatura universal e do próprio fotógrafo, mantém o compromisso inicial do
olhar solto e perscrutador do tempo, e para quem a fotografia parece ser uma
expressão vital que ele transformou em expressão artística.
(na imagem, gentilmente cedida pelo autor, João Paulo Sotto Mayor com o seu Cristais da Tarde)
.
Livro
que não obedece a nenhuma ordem, nas palavras do autor, Cristais da Tarde tem a abrir uma imagem com o rasto triangular de
um barco no vértice veloz do percurso a aspirar o espaço infinito; “o tempo
esqueceu-se de mim”, diz o fotógrafo flâneur que não se esqueceu do tempo e
que, como o barco da fotografia, percorre o espaço para o integrar no tempo,
com a missão clara de registar as experiências do seu olhar livre e vigilante.
Maria do Carmo Serén, num dos textos introdutórios, refere João Paulo Sotto
Mayor como “fotógrafo experiente e poeta” que “surpreende a cidade”, Jorge
Velhote diz que “o autor acolhe o sussurro que se hospeda no seu olhar” e que
“instala na carne a pele do mundo”, Gil Maia alude a “construções
visionárias” e Fernando Maia Pinto aponta a “inteligência” do
fotógrafo; João Paulo Sotto Mayor junta
àquelas observações um elemento transgressor: “para mim, mais do que a imagem é
o som que me alimenta”, diz numa assunção sinestésica da sua expressão
artística, aqui entendendo-se arte por “intenção profunda e jogo, imitação
aparente e transfiguração real”, nas palavras de José Régio, “jogo de
movimentos, de sons, de volumes, de linhas, de cores, e jogo que nos agrade” (3) , que nos lisonje os sentidos e nos acorde o espírito.
Com a
intenção de comunicar as suas experiências, o autor instiga o espectador a
ancorar-se num lugar imaginário para daí
experienciar as sonoridades visuais que se passeiam nas fotografias: os ventos
que inquietam o mar do Gilreu, que fazem explodir a água no farol de
Felgueiras, os que na pérgola das nuvens sobre as águas se dedicam a jogos
malabares esculpindo estátuas a que a luz dá leveza e dinamismo, os que rasgam
nuvens espessas e concebem abismos cintilantes que recebem os gritos das
gaivotas comovidas com o destino dramático da luz, o rumor da gente que passa e
que a luz transfigura em hologramas, o apelo errático de um detalhe que se
insurge na bruma convulsa, o resmalhar alvoroçado das penas, o sopro de um instrumentista de saxofone com
a luz crepuscular timbrada no rosto, o silêncio de um homem andrajoso de costas
voltadas ao poente, o marulho das narrativas enigmáticas
esculpidas pelo sal na areia, na orla onde o morre o mar, o silêncio da maré
vaza.
É fortíssimo o sentimento telúrico nestas
fotografias e não o é só por causa da terra
geográfica. É-o pelo diálogo cúmplice e afectuoso que o fotógrafo enceta
com a cidade. Seja qual for a
diversidade dos planos, o fotógrafo procura sempre a imagem inteira, marca de
quem vive na cidade integrado nela. Como
o Anteu do mito que se regenera ao tocar o solo, João Paulo Sotto Mayor une a
pele do olhar à pele da cidade para receber dela a pulsão criadora; à cidade,
ele oferece como préstimo quadros de tempo para além do tempo. Muitas vezes
afigura-se-nos uma inversão de papéis, pois parece que é a paisagem que vigia o
fotógrafo e a nós através dele. E lá estão o casario no regaço vítreo das poças de água, o ouro engalanado a escorrer nos vidros das
janelas, o reflexo tremente do casario no espelho pardo do rio, o rio que
se finge manso e tateia sedoso as margens, os botes com os bicos das proas a
beber o rio em lenta direcção à eternidade, os rabelos de cores garridas no
secular rio de mosto.
“O desejo do início e do silêncio / para que o
instante seja a fábula do instante.”, escreveu, ainda, António Ramos Rosa (4). “Gostarei de ser sentido como quero”, anota
João Paulo Sotto Mayor sobre a sua representação do mundo, num manifesto desejo
de partilha de instantes, emoções e sentimentos, que sabe que comunicar é
emergir da ocultação e espacializar o tempo é um gesto contra a morte.
Notas:
(1) António Ramos Rosa, Antologia Poética,
Dom Quixote, Lisboa, 2001, p.246
(2) Narrativa da Foz do Douro, poemas de
Jorge Velhote e fotografias de Tiago Reis, Edição Projecto, Porto, 2013
(3) José Régio, Três Ensaios Sobre Arte,
Portugália Editora, Lisboa, 1967, p.61
(4) António Ramos Rosa, Antologia Poética,
Dom Quixote, Lisboa, 2001,p. 225
© Teresa
Sá Couto