Com o Os Animais Perdidos Na Floresta, Francisco Duarte de Azevedo conclui a trilogia poética proposta há vários anos ; à semelhança dos outros títulos, As Habitações Interrompidas e Livro de Inverno e Transições, também este tem prefácio meu; é esse texto que aqui publico.
Cântico de solidão
Enquanto eu bebo a
respiração dum fruto / o tempo chama-me, pelo
rio.
M.S.Lourenço
Os rios, obstinados, / abrem sulcos profundos / nos nossos braços.
Francisco Duarte Azevedo
A solidão é
um rio, às vezes negro, outras vezes azul intenso, outras, ainda, verde gramíneo,
amarelo crepuscular, branco das manhãs ou das areias, mas, indubitavelmente, o
rio da solidão escreve-se a vermelho. É um rio revoltoso o que encontramos
neste terceiro tomo da trilogia proposta há já alguns anos por Francisco Duarte
Azevedo. No seu tutano, uma explosão, o centro das incertezas, a habitação; nas
suas artérias, o latejo da demanda, o uivo do tempo, a pulsação do instinto da
escrita ininterrupta.
À semelhança dos dois primeiros títulos da trilogia – As Habitações Interrompidas e Livro de Inverno e Transições -, Os Animais Perdidos na Floresta reverbera os temas da memória, da natureza e da solidão mas este atinge agora um cântico lapidado onde a palavra toca “a polpa das pedras” e, em golpe de asa, liberta-se do “jugo terreno”, a sua condição, acede “a um céu/ delicado sobre a falésia” para se lançar no infinito ao encontro da sua plenitude ou dito, ainda, assim: “Ao acaso./ No centro da floresta/ entre a montanha/ e o infinito/ assistiremos/ ao voo metálico/ de um pássaro/ de fogo contornando/ as asas da imaginação.”.
Jorge Luís Borges, no Prólogo de A Rosa Profunda, de 1975, escreveu: “A palavra teria no
princípio um símbolo mágico, que a usura do tempo desgastaria. A missão do
poeta seria restituir à palavra, mesmo parcialmente, a sua primitiva e agora
oculta virtualidade. Dois deveres teria qualquer verso: comunicar um facto
preciso e tocar-nos fisicamente, como a vizinhança do mar.”(2). Em Os Animais
Perdidos Na Floresta, a água é o discurso sobre a génese, sobre os
sacrifícios da viagem, a luz é o discurso sobre o efémero, o transitório, o
vento é inquietação, o sopro criador que dissemina, avança e inventa o canto
dos “pássaros que já não falam”, que produz um eco sonoro que nos envolve,
despe e impele para novas significações da palavra. Água, luz e vento são,
assim, princípios fundadores, artérias deste cântico poético sobre a solidão.
Diz-nos o texto: “Navegamos no âmago/ de substâncias etéreas./ Para tocar a polpa
das pedras,/ o coração
necessita de água/ e da tua voz. Para isso me iniciei.”.
Com efeito, há uma solidão lacustre nesta
poesia que procura as ruínas no fundo das águas doces: “Na macieza do éter/ são
frustrantes/ todas as tentativas/ para alterar o rumo/ da navegação./ O que é
isso/ dos navios sorvendo/o lodo dos rios? “, sendo o “isso” o enigma dos caminhos que se desdobram em
múltiplas sendas criando labirintos que são o desígnio da própria poesia.
Na
viagem que nos é proposta, há uma emergência de quietude que confere à
caminhada um principio de onirismo, “Há uma insistência/ para amaciar os gestos/
num campo de girassóis adormecidos.”, há a confiança: “Como o aprendiz/ montado/ na sua cegueira
ansiosa,/ amestrarei
o corcel /e um cravo
florescerá/ entre os dentes”; e há
também a tensão entre dois polos extremos, a energia e a lassidão, a esperança
e o niilismo: “E no desespero/ assimétrico
do confronto/ entre massa e energia,/
os elementos celestes/ derramam-se
sobre a terra./ Uma
chávena
de café/ amargo e quente
emerge/ das entranhas do fogo.”. Por vezes, uma refracção violenta desvela um movimento auto-reflexivo, uma demanda
intelectual impregnada de memória de paraísos perdidos e de desejos
suspendidos:
Se o pudesse abraçar
abraçava mas não posso.
Os meus braços
são pequenos
para tamanha imensidão.
Precisaria da tua ajuda
e perdi-a. E os braços
de mais duas, três ou quatro
pessoas não bastariam
para abraçar o mundo
da árvore de memórias
e lendas tão antigas
como a criação dos séculos.
Precisaria apenas
do teu abraço
para abraçar
o baobá por inteiro.
Se o pudesse abraçar
abraçava mas não posso.
Os meus braços
são pequenos
para tamanha imensidão.
Precisaria da tua ajuda
e perdi-a. E os braços
de mais duas, três ou quatro
pessoas não bastariam
para abraçar o mundo
da árvore de memórias
e lendas tão antigas
como a criação dos séculos.
Precisaria apenas
do teu abraço
para abraçar
o baobá por inteiro.
Na viagem, as mãos têm um papel essencial, porquanto são a “bagagem do criador”, o seu
“elemento original”: “O silêncio não digerido,/ as mãos aquietadas/
sob a
sombra das águas
/ e o corcel mansamente
/ estacado à porta dos desejos/ contemplam
de soslaio o aprendiz.“; embebida numa luz “crepuscular”, a palavra é projectada pela mão que percorre a tela “como um caminho cego”, desenha o
silêncio que “uiva no vento”, certa de que “Uma árvore estremecerá./ Apenas uma.
Aquela/
onde depositas
o reencontro/ dos elementos/ e acolhe as nossas habitações.”,
lê-se.
“Que pássaro/ é este que na ponta / dos dedos/ faz o ninho?”, escreveu o
nosso saudoso poeta Albano Martins no poema Para
a Flautista de “O Pássaro de Fogo”,
de Stravinsky (3), onde se evidencia que a Arte é o lugar onde habita a voz ;
“digerido” o silêncio, é preciso dar-lhe voz, e cabe às mãos instaurar o
silêncio no silêncio da tela – e recordo que as capas que envolvem os três
títulos da trilogia são reproduções de quadros de Francisco Duarte Azevedo –
ou, no caso, no silêncio estridente das palavras que são jogo, manha, o lugar onde a incerteza se torna um viático porquanto a dúvida atinge
a dimensão reflexiva, a dúvida pela qual o sujeito se interroga sobre as
condições do seu próprio pensamento: “E as águas do rio / seguem o seu
caminho./ Já não sei onde estancam.
/ Se no deserto imenso /ou nesse outro mar
azul / tão distante e incerto.”.
Disse,
ainda, Jorge Luís Borges que a solidão é a sina do transviado mas também do pioneiro. Outrossim do poeta, acrescente-se, e Francisco
Duarte Azevedo evidencia-o uma vez mais neste Os Animais Perdidos na Floresta.
Nas
“cúpulas dos bosques” cantam os pássaros o cântico febril na vigilância dos
dias, sendo a vigília o instinto do poeta: “Sonha-se de olhos abertos
/ no
centro da solidão./ Como um dicionário fechado/ no sacrário das palavras.”.
Ligada à vigilância, a ansiedade estimula a pesquisa errante, e não parará de trabalhar subterraneamente na procura
das soluções que as suas angústias exigem. Neste tomo, a errância está patente
na forma de poemas ora curtos, ora mais longos, em prosa, atrelados ao real ou
saltando dele com metáforas frenéticas e enigmáticas, onde as palavras que são
a “lucidez da insónia”, as palavras
“importadas de memórias/ derramadas e imprecisas” edificam “Imagens/ passageiras
girando na espuma / da madrugada”, ”cansam-se, irritam-se”, “Explodem
como um
vulcão /outrora indeciso entre água, ar e fogo”. As palavras arriscam,
afrontam, mergulham no delírio e na loucura criativa que culmina e desfralda
quando há simultaneamente ausência:
As acácias as casuarinas
regurgitam no delírio
dos rios e nas areias da praia.
Os seres perdidos na floresta
rasgam as veias sob a pele
a camada do fogo e o crepitar
vermelho de bocas exauridas.
Do mar, sorvem o sal
o plâncton para temperar
o aço dos seus braços.
São as palavras que se iluminam contra a banalidade, que arrostam o caminho, que procuram “a migalha/ de podermos /antever/ quão irreais/ os rios/ em busca do mar”, que escutam “o grande rio que habita/ o coração dos animais /perdidos na floresta”, que mergulham “na densidade dos lobos reaprendendo a caminhar” ou dito , ainda, assim:
Caminhamos no coração
das trevas modernas de betão.
O peso da solidão
é tão grande como o arco
planetário de Deus;
a aliança entre os mitos e os rios
bíblicos permanece
na densidade da memória.
A solidão esgueira-se
na silhueta das trovoadas,
cíclicas, da floresta.
A chuva asperge-nos
de frescura, eis o maná
da fertilidade.
As acácias as casuarinas
regurgitam no delírio
dos rios e nas areias da praia.
Os seres perdidos na floresta
rasgam as veias sob a pele
a camada do fogo e o crepitar
vermelho de bocas exauridas.
Do mar, sorvem o sal
o plâncton para temperar
o aço dos seus braços.
São as palavras que se iluminam contra a banalidade, que arrostam o caminho, que procuram “a migalha/ de podermos /antever/ quão irreais/ os rios/ em busca do mar”, que escutam “o grande rio que habita/ o coração dos animais /perdidos na floresta”, que mergulham “na densidade dos lobos reaprendendo a caminhar” ou dito , ainda, assim:
Caminhamos no coração
das trevas modernas de betão.
O peso da solidão
é tão grande como o arco
planetário de Deus;
a aliança entre os mitos e os rios
bíblicos permanece
na densidade da memória.
A solidão esgueira-se
na silhueta das trovoadas,
cíclicas, da floresta.
A chuva asperge-nos
de frescura, eis o maná
da fertilidade.
A assunção da escrita como poalha, o
carácter efémero da palavra - a “varanda provisória”-, e o elogio da imperfeição são senhas para a
escrita ininterrupta.. A palavra é frágil, é um ser sensível “perdido na
floresta”, é imperfeita, de uma
imperfeição absoluta a exigir constantes reparações:
Súbito, um estremecimento
reacende as vozes a galope
do corcel das trevas.
A insónia, essa coisa
brumosa de dormir
acordado, apodera-se
de reflexos, denuncia o corpo
entre sono e morte,
vampiriza o vocabulário
torna-o redondo e repetitivo.
Pensar, analisar, reinventar a voz da solidão serão etapas do método do Eu monologante em demanda intelectual, do Eu dialogante com o Tu da poesia e com o Nós de um leitor implicado no peso das fadigas humanas, atento aos movimentos do mundo, impelido, também ele, para a caminhada de pensar, analisar e reinventar a sua própria solidão.
Súbito, um estremecimento
reacende as vozes a galope
do corcel das trevas.
A insónia, essa coisa
brumosa de dormir
acordado, apodera-se
de reflexos, denuncia o corpo
entre sono e morte,
vampiriza o vocabulário
torna-o redondo e repetitivo.
Pensar, analisar, reinventar a voz da solidão serão etapas do método do Eu monologante em demanda intelectual, do Eu dialogante com o Tu da poesia e com o Nós de um leitor implicado no peso das fadigas humanas, atento aos movimentos do mundo, impelido, também ele, para a caminhada de pensar, analisar e reinventar a sua própria solidão.
“Não fosse tão
intenso/ e tão azul/ este voo iniciático / contemplaria os seres/ que pululam/
fora das nossas vidas,/ pulsando, pulsando, pulsando/ como as veias/ nos pulsos
dos nossos braços.”, lê-se neste último título da trilogia. Crê-se que o
laboratório poético de diálogos interrompidos, que assume “amaciar o corpo” da palavra nas noites de
chuva, não se ficará por este tomo. Deseje-se, pois, chuva à palavra
policromada de Francisco Duarte Azevedo.
Teresa Sá Couto
Teresa Sá Couto
Lisboa, Novembro de 2018
Notas:
(1). M.S.Lourenço, O
Caminho dos Pisões, Assírio & Alvim, Lisboa 2009, p.13
(2). Jorge Luís Borges, Obras Completas 1975-1985, Editorial
Teorema, Lisboa, 1998, p.79
(3) Albano Martins, Livro de Viagens, Edições Afrontamento, Porto,
Março de 2015, p.47