quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Stefan Zweig, a eterna nostalgia

«O Porvir da Nostalgia – Uma vida de Stefan Zweig» não é uma mera biografia do fecundo escritor austríaco e investigador do mundo. Escrita por Jean-Jacques Lafaye, e galardoada com o Prix Cazes-Brasserie Lipp 1990, a obra é uma narrativa apaixonante, literariamente poderosa, um documento de época construído com os fios do fulgor, da sede da descoberta, da inquietude, dos abismos secretos e da nostalgia de Stefan Zweig.

«O livro é de uma lucidez e de uma actualidade impressionantes. Vale a pena lê-lo e meditá-lo, com os olhos de hoje», escreve Mário Soares no prefácio desta edição portuguesa, numa referência aos valores humanistas e éticos de Stefan Zweig. «O porvir da nostalgia é a morte escolhida, a morte consentida – e a porta do mistério», escreve o biógrafo nesta obra que ilumina os corredores do enigma, aludindo ao suicídio de Zweig, aos 61 anos, em Petrópolis, Brasil, em 1942.
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Por nove capítulos, enformados em 228 páginas, corre a escrita magnetizante, seguindo a ordem cronológica dos factos, crescimento, amadurecimento e queda do biografado. Coloquial e cúmplice, a narrativa faz, logo nas primeiras páginas, com que o leitor se esqueça que está perante uma biografia, para fazer parte do pulsar intenso dos quadros sociais e psicológicos apresentados. A utilização do Discurso Indirecto Livre propicia ao leitor dialogar intimamente com a personalidade de Stefan Zweig, por intermédio do narrador, estratega de toda a magia.

No original, L’Avenir de La Nostalgie - soberanamente traduzido por Clara d’ Ovar para «O Porvir da Nostalgia», como, aliás, é de excelência toda a tradução - , a obra foi escrita em 1989, e é o primeiro livro de Jean-Jacques Lafaye que, entretanto, reuniu uma obra admirável nas áreas da literatura e da música. Antigo Agente Internacional de Amália Rodrigues, é dele o título «Amália, uma voz no mundo», editado em Portugal pela Quetzal. A sua ligação à alma portuguesa valeu-lhe, ainda, a nomeação de comendador da Ordem do Infante D. Henrique, em 2006, pelo então Presidente da República Jorge Sampaio.
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Personalidade singular num texto notável
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Nascido no seio burguês da sociedade vienense, «desde a mais tenra infância, o pequeno Stefan foi habituado a exprimir-se em inglês, francês, italiano e alemão: ele é o príncipe anónimo de uma família europeia», diz-nos o texto, antecipando a paixão do escritor por uma Europa unida, guiando-nos magistralmente pelo percurso singular de Stefan Zweig, homem e obra, imagem e espelho, confundindo-se ambas. «Judeu, quase não tem consciência de o ser, apenas ouve vagamente falar de certos grupos de jovens nacionalistas anti-semitas. Austríaco, nem ele sabe a que ponto o será, de tal modo o seu horizonte intelectual ultrapassa as fronteiras para abraçar a Europa inteira, sua múltipla terra natal.».

Aos 16 anos era já um «genial poeta» e «são as palavras que lhe oferecem a vida que respira». Apenas «foi três vezes à Universidade: a primeira para se matricular, a segunda para pedir o certificado de assiduidade (!!!) e a terceira para uma agradável conversa com os professores.». Lê muito, e cada vez mais, «escreve novos poemas e não hesita em receber amigos às onze da manhã, em mangas de camisa, despenteado, “navegando” entre montes de livros que cobrem o chão como dantes no seu quarto de criança, os olhos cansados: é que em plena noite uma ideia o acordou e o levou para a mesa de trabalho! Uma boémia activa e fecunda, uma sábia desorganização, um longo e lento desregramento da sua antiga disciplina escolar, tudo o que ele esperava!». Aos 23 anos doutorou-se em filosofia com uma tese sobre Taine. Viaja pela Europa, atinge o mundo todo. Traduz poetas estrangeiros, para aprender com eles; é também ensaísta, dramaturgo, novelista, contista, historiador e biógrafo.

Enquanto o espírito se eleva a altos pensamentos, a alma «enterra-se no negrume de tentações incertas»: «Ao longo da sua vida Zweig manterá uma curiosidade um pouco mórbida pelas formas marginais do sentimento e do desejo»; «O sentimento trágico da existência já está no coração da literatura de Zweig: ele quer sempre interpretar a extraordinária tensão dos nervos, a paixão secreta que dirige a vida e os actos. Esta densidade explosiva que se contenta em aflorar exerce sobre a sua alma uma atracção perigosa, no princípio de um século em que, por duas vezes, ele verá a derrocada.».

A vivência da guerra desmorona-lhe o seu mundo. Crítico do nazismo e regimes fascistas, vê na palavra a salvação: «pelo domínio da palavra, tenho de despertar a consciência dos homens transviados por outras fanfarras. Pela escrita, ilustrar o imperativo da criação que não é mais do que conduzir o género humano para mais humanidade! Mostrar como os chefes enganam os povos nos caminhos do ódio, como as gentes ávidas de conquistas se ligam aos profetas da desgraça, como do caos das paixões pode nascer uma ordem superior, de que maneira uma derrota terrestre contém a promessa da vitória espiritual: é a meta que Zweig se impõe quando começa o seu Jeremias, em pleno 1916. É o seu primeiro combate de homem contra a guerra – em plena guerra.».

Em 1942, Zweig é visitado pela vertigem mórbida, termina o romance O jogador de Xadrez, e joga o xeque-mate da sua existência. «Zweig não foi levado ao suicídio apenas pela guerra mundial, o fantasma de Hitler e a perseguição ao povo judeu. Não; é um homem de sessenta anos que põe fim ao erro de toda uma existência ao serviço de um ideal».


O Porvir da Nostalgia – Uma vida de Stefan Zweig, Jean-Jacques Lafaye; editorial Campo das Letras, Porto, Novembro 2007
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© Teresa Sá Couto

domingo, 22 de novembro de 2009

Escalpe de Amadeu Baptista

Cumplicidade da carne, «expressão do desejo», o centro do corpo, «inquietação na procura do corpo», saliva, esperma, «vício absoluto», paixão amorosa, «sortílegos caminhos», a solidão do amor e a luta contra as sombras que acossam o acto primordial da entrega. Nas livrarias, Escalpe, um poema longo de Amadeu Baptista, com imagens da arte de António Ferra e chancela da &etc .




Extracto:

Nos meus e nos teus rins se acumulam
segredos desusados,
o real é um cúmulo de árvores e areais
desoladores,
visões devastadoras do silêncio,
espaços inaudíveis a sitiar-nos os ombros.

Mas nós, sendo sagrados, ardemos tanto
que sopesamos os ritmos da memória e os da terra,
ainda volúveis,
ainda corça e gamo,
ainda mensageiros.

Assim adormecemos.

Assim velo o teu sono com o meu sono,
assim velas o meu sono com o teu sono.

E são os nossos sonhos sonhos lúbricos,
e fluis suavemente pelos meus lábios,
e fluo suavemente pelos teus lábios.
(p.p. 34,35)

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Blackpot, Dennis McShade

texto editado no site Orgia Literária em 17.11.09

Blackpot é a criação literária de um pesadelo, a invenção de uma chave, uma libertação. É uma trama na prosa certeira e desconcertantemente eficaz de Dennis McShade, que convoca a morte, conversa com ela, verte o encontro em palavras como dentes a morderem a precariedade da existência, a estreiteza do mundo. Falo de transgressão: a transgressão dos limites que é imanente à arte, e da qual a obra de Dinis Machado é digníssima representante.

É implacável, negro e assombrosamente iluminado, este Blackpot. Carrega um enleado e terrível pacto com a morte, enfrenta-lhe o carácter inexorável para a corrigir e dar voz à vida. É uma novela sobre a noite que implora, sobre a morte que se vê ao espelho à procura de outra forma que o povoe, à procura de outro sonho, à procura de outra voz. Por isso, o espelho onde a personagem Gulliver se mira é a vigília que procura decifrar o labirinto; por isto, entrarmos em Blackpot é entrarmos no «pesadelo», como o descrito por Jorge Luís Borges, uma «sala circular cujas paredes e portas eram de espelho, de modo que quem entrasse nessa sala ficava no centro de um labirinto realmente infinito». E o labirinto espraia-se por 31 capítulos curtos, vertiginosos e cinematográficos, onde as personagens se matam umas às outras e disparar é o verbo auditivo que a prosa silencia de forma terrível: sob o fumo do tabaco (da narrativa) e o assombro inaudito (do leitor), cumprem-se as balas surdas disparadas das armas com silenciador ou da metralhadora assim emudecida: «as balas da metralhadora estilhaçaram objectos e enfiaram-se, surdamente, nas paredes».
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Não há uma personagem central neste Blackpot. Ela será a morte ou a vida, porquanto nomear uma é evidenciar a outra. Há uma dezena de homens, membros do crime organizado, emboscados na sua própria rede, assassinos precisos no disparo, especialistas em ruínas, solitários, expostos ao critério misterioso de «reorganização cíclica» da Organização. Se há conflito no interior do próprio jogo com regras que obscuramente mudam de direcções, o conflito está também nos próprios jogadores enquanto lugares-limite com que se faz a questionação do homem na sua humanidade: no jogo da vida há que matar primeiro, pois «os acontecimentos, às vezes, vão à nossa frente». Também a questão da negação da identidade tem em Blackpot uma forma indeclinável: o nome dos homens é tão-só o posto que têm na engrenagem da Organização, pelo que, depois de mortos, o seus nomes passam a outros.

Mostrando-nos o trabalho dos relógios na sombra, a narrativa mostra-nos que viver é envelhecer, o acumular de males, a doença. Também neste sentido, Blackpot impõe o silêncio da meditação: a vida é dano, o homem joguete, pelo que há que encontrar o life force (de Bernard Shaw), a força vital para se recriar a existência, força que está no exercício da escrita com que se esconjura o desamparo. Na narrativa, desfilam homens marcados, desenganados, de meia-idade, homens que são o que é ninguém e uma campainha sinistra diz-nos que ninguém é o que todos somos.
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Gulliver, que não prescinde de esfregar o corpo e as mãos com álcool, olha para o espelho, sente náuseas, procura a sanita, vomita alguma bílis e sente-se aliviado. Falar para o retrato do pai morto, como fazia há 30 anos, também o alivia; Armador mata há 40 anos. Ajuda a filha a estudar Matemática, tosse e cospe sangue para um lenço, tem dores de cabeça e febre. Leva a filha à escola, beija-a, vê-a desaparecer no fundo do átrio. E sabe que vai morrer, de doença ou com uma bala; Lorenzo só vê sombras, «ardiam-lhe os olhos e chorava devagar», nada que os médicos pudessem fazer. Com os óculos, olha para o calendário da parede, desiste ao tentar ler os títulos dos jornais, lava os olhos e espera; Ornatto tem uma perna a apodrecer, sem cura, só lhe restando os comprimidos para as dores; Condor sabe que o querem matar, passa a mão pelo peito flácido e preocupa-se com o peso excessivo; Legos discorre sobre os seus problemas enquanto pesca, espera que o peixe morda a isca e gosta daquela «mistura de placidez e impaciência». No final, Victor discursa à amizade e «Os candelabros e as jóias cintilaram.». Até quando é Victor o vencedor, inquire-se em cima dum texto que recorda o carácter precário da existência e que a vida sem nós é pensável.

Contra a morte, toda a morte, há ainda e sempre a voz, mostra-nos Dennis McShade neste Blackpot, onde recebemos, também, fortíssimo, o eco da voz de Herberto Helder: «Olha: eu queria saber em que parte / se morre, para ter uma flor e com ela / atravessar vozes leves e ardentes e crimes / sem roupa. Existe nas ilhas um silêncio para / a poeira tremer, e o teu rosto se voltar lentamente cheio / de febre para o lado de uma canção /terrível e fria.» (1)

(1) Herberto Helder, Ofício Cantante, p.247, Assírio & Alvim

Dennis McShade, Blackpot, Assírio e Alvim, 2009
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© Teresa Sá Couto

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Imperdível

(clicar na imagem para aumentar)

sábado, 14 de novembro de 2009

Vitor Oliveira Jorge com Electri-cidade em Lisboa

Depois da invicta, no passado dia 5 de Novembro, o arqueólogo, professor catedrático, ensaísta e poeta Vitor Oliveira Jorge vem a Lisboa lançar o seu mais recente livro de poesia: Electri-cidade tem a chancela das edições Colibri e será apresentado pelo poeta Casimiro de Brito, no próximo dia 17 de Novembro, pelas 19 horas, na Casa Fernando Pessoa.

Vitor Oliveira Jorge, nascido em Lisboa em 1948, mas radicado na cidade do Porto desde 1975, tem uma vasta obra publicada, tanto no domínio da Arqueologia como no da Poesia; trata-se de um olhar imenso pelos vestígios e enigmas do tempo e interpelação dos mistérios do canto lírico, em deflagração neste novo compêndio poético de 260 páginas.

Electri-cidade será, pois, um título para desvendar com o máximo interesse, porquanto talhado por um autor de diálogo interdisciplinar, que em 2001 foi distinguido com o grau de Grande Oficial da Ordem do Mérito pelo conjunto do seu trabalho, outrossim pela sua actividade cívica em prol da defesa do património arqueológico português.


Ler o poema Falas, na página de Vitor Oliveira Jorge

Outro poema, agora do livro Casa das Máquinas:

Àqueles a quem foi cometida a tarefa
De decifrar o enigma do centro das casas,
A aparição no centro, o corpo pleno,
E o olhar:

Parai nesta suspensão, nesta descida do tecto,
Nesta subida do chão: ruído de tábuas no tempo,
Longe: um comboio deve ter atravessado a noite,
Ou o crepúsculo, ou a manhã: tanto faz, foi longe.

Parai neste corpo. Neste centro com lábios, e ombros,
E mãos dispostas de ambos os lados, enquanto
As madeiras estalam, os bichos invisíveis das madeiras
Se alimentam. Mas os lábios, mas o rosto, mas a presença
Impõe-se, como uma imperatriz: no centro, na casa,
Estirada de alto a baixo do texto. E eu aguardo.

Prolongo o enigma das alças, da roupa interior,
Do frémito que a presença enuncia, e no entanto
Não diz. Apenas vem ao centro, desce e sobe, entre
As paredes perenes do cubo, este enigma cinzento
E melancólico. Um comboio atravessa-se ao longe,
Cinde a consciência como um fluxo de sangue,
Como uma linha recta. Mas o corpo nada diz, apresenta-se.

E todo o enigma, a sua extraordinária presença,
Se vai esgueirando de verso para verso, entre os versos,
Entre as sílabas, até se prender na língua e a língua
Correr ao longe para o comboio, à procura de uns lábios,
De alguém que já aqui esteve no passado, e agora se renova

Entre estas quatro paredes, assim de chofre no algodão
Das saias, na cintura das alças, no silêncio da roupa
Interior. Foi há muitos anos, incontáveis anos, tantos
Quantas as pessoas que circularam no comboio, e partiram
Para sempre na calada da noite, ou do crepúsculo, ou da manhã,

E agora aqui regressam, na presença do corpo, na sacralidade
Do centro, na perfeição da simetria, na apresentação obstinada
Do enigma, do supremo enigma de um tu em saias e ligas,
Em mãos depostas, em braços totalmente nus,

Reflectindo o eco longínquo do oferecimento, no modo como
Os ombros se ajustam à aproximação das mãos do verso,
Nessa insuspeita, assustadora harmonia. Cheira este odor
De hortelã-pimenta: são todos os fantasmas da casa que voltam,
Que me rodeiam, amáveis, na tua figura, pedindo tudo e nada.

Bebo um chá quente e contemplo-te, oh aparição perfeita,
Completa, disponível, formidável obra de amor fotográfico.

Um comboio atravessa ao longe o sulco do sangue. Lembras-te?
Fazia uma cruz, uma cruz sobre o território, e essa cruz
Reproduzia-se aqui dentro, do lado de cá da cal, nas paredes
E nos nossos corpos, marcava indelevelmente o centro.

Isso. Exactamente aí.
Quando a mão do poema te atravessava por debaixo nas saias,
E saía pela cabeça, esplendorosa, digna da soberania dos lábios:

Era (é) uma paragem:
Nunca daí saímos.

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

A perdição e a Assírio & Alvim



Pois é. A Assírio & Alvim não se cansa de nos desafiar para os jubilosos caminhos da perdição. No Verão passado foi a Feira do Livro Manuseado, que a editora teve patente na sua livraria da Rua Passos Manuel, nº 67, onde os nossos únicos problemas foram resistir à visita e regressar com um carrego e um sorriso do mesmo quilate.


Agora, no coração do Chiado, na Rua do Carmo, e até 31 de Dezembro, o desafio é o que se segue :
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Livros mais baratos, livros esgotados, livros impossíveis de encontrar, livros de artista, livros de tiragem limitada, e ainda, postais, cartazes e outras surpresas.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Novo livro de Casimiro de Brito

Casimiro de Brito, o poeta que através do «doloroso prazer da escrita» nos oferece, há meio século, a ignescência do barro humano e a celebração dos enigmas do amor, tem novo livro: En la vía del maestro - Un viaje con Laozi (Na via do mestre - Uma viagem com Laozi,) é uma edição bilingue com tradução espanhola de Montserrat Gibert e chancela da prestigiada editora espanhola Olifante. O lançamento da obra está marcado para o próximo dia 11 de Novembro, no Instituto Cervantes de Lisboa (na Rua de Santa Marta, 43-F), às 18.30, com apresentação a cargo do poeta espanhol Ángel Guinda.


Como o título desvela, e Casimiro de Brito aclara no primeiro belíssimo texto de abertura, esta é a foz poética de um rio que teve a sua nascente nas gotas cristalinas do mestre Lao Zi. Uma viagem longínqua, feita de arrebatamentos e transmutações, como o é a de toda a criação artística. Todavia, o que desagua neste En la vía del maestro é a pureza vocabular a dar conta da torrente subterrânea do ser humano, na sua secreta solidão, do carácter inexorável do tempo, da vida matizada de ganhos e perdas, sonhos e desesperanças, da sábia rendição à Natureza, da voz do amor, motor e legitimação da travessia existencial.
Com agradecimentos a Casimiro de Brito que me facultou o acesso a esta novíssima obra, e à qual regressarei com o olhar que merece, transcrevo dois poemas:

O segredo está na combinação
Do barro e do ar; o segredo,
Nos dedos que envolvem a taça a
Casca do ovo o rio onde se acolhe
A penumbra que deixei pelo caminho.
Assim eu possa buscar o monge mudo,
O princípio desconhecido. (p. 34)
***
Adormeço na praia escura
Ar poluído
Nuvens secas: envelheço. Refreia os desejos,
Diz o mestre. Poucos tenho. A laranja
De som dos meus filhos
Amadurece noutras casas, longe da sabedoria
Que não alcancei. A bondade o conhecimento
Perdem-se na bruma das manhãs no pirilampo
Das noites. Devolvo ao mundo
O barro que me sobra
De tanta escultura falhada. O mestre
Não sabe nada. (p.50)


notas: página de Casimiro de Brito ;
o pnt Literatura tem vindo a editar o Livro de Eros de Casimiro de Brito


© Teresa Sá Couto

sábado, 7 de novembro de 2009

A inventiva de Patrícia Portela, em exibição

Há mais de uma década que a encenadora Patrícia Portela nos brinda em palco com explosões multidisciplinares, inventivas, irreverentes, inteligentes e singulares. odília ou a história das musas confusas do cérebro é a primeira peça de teatro infanto-juvenil da autora, estreada no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, em Outubro 2006, no Festival Temps d´Images, com visitas a outros pontos do país. O espectáculo volta a palco, no Teatro Aveirense, a 10 e 11 de Novembro, às 10h30 e às 14h30, inserido no Ciclo Arte e Novas Tecnologias. Ver mais, aqui.

«A solidão medita, e a meditação cria», disse António Feliciano Castilho. Mas donde vêm as ideias que dão origem à criação? Patrícia Portela explica aos mais novos como tudo acontece no silêncio do cérebro, através da história de odília, musa solitária e desempregada e que, cansada de Esperar, resolve Acontecer. Imperdível, o pequeno livro editado pela Editorial Caminho instiga os cérebros de todas as idades a uma viagem aos seus corredores labirínticos, misteriosos e fascinantes. E assim se solta o pensamento que, depois de aprender a Acontecer, nunca mais será o mesmo.

Diz-nos o texto, que o tempo passa sempre, e nós, como o tempo, também passamos, mesmo que disso não tenhamos consciência, mesmo que o nosso pensamento, silenciado, não no-lo diga. «E decidirmos deixar de passar não é nada fácil porque há imensa coisa que tem de se destemporar para se deixar de passar: deixar de crescer, deixar de conhecer, deixar de questionar, deixar de amuar, deixar de teimar, deixar de hesitar, deixar de duvidar, deixar de repetir, deixar de parar, deixar de esperar

E «esperar não é nada fácil, é como passar, como se não se passasse nada, é como uma pausa numa música, um intervalo quando tudo o resto continua, como se nos atrasássemos e acontecêssemos sem nós, como se nos desligássemos. É como dormir. Umas vezes espera-se porque se quer, outras é sem querer, mas mesmo que ninguém fale ou lembre disso, mesmo quando se fazem outras coisas, muitas vezes espera-se.
E esperar é como acontecer. Umas vezes faz pena, outras não, outras nem se dá por isso e só muito mais tarde é que percebemos que esperámos, e quando não se sabe o que se passou entre duas coisas que acontecem pergunta-se: Esperei ou aconteci?», questiona-nos, fecundamente, o texto para nos mostrar que «estamos num tempo com dois tempos, assim como no futebol, no futebol em directo, estamos frente à televisão, e ouvimos GooooooOOOOOOOooooooollLLlllooooOOOOooo…mesmo antes de ver a bola entrar na baliza (…) neste tempo entre dois tempos, as horas param. Só as palavras se mexem.».

Odília, a musa confusa do cérebro, e Penélope esperam, «as duas, frente ao mar». Odília espera ser inspirada (odília, com minúscula, denomina as musas que «em vez de andarem a inspirar procuram constantemente alguém que as inspire» e «quando se cansam de esperar que a inspiração lhes apareça, partem à procura»), e Penélope espera Ulisses.
A partir daqui, é claro o incentivo do texto: munida da coragem da partida, Odília vira costas ao mar e parte, sempre seguida por Penélope que lhe vai «desemaranhar os fios do vestido», as duas «lado a lado, sombra uma da outra, «à procura do labirinto, à procura do fio de Ariana». Mas Odília entra «imediatamente em pânico». Espera-a o labirinto do percurso, que é o que sempre nos espera quando resolvemos seguir em frente: «à sua frente encontrava-se um labirinto infinito de meadas desfeitas, fios brancos espalhados por todas as ruas, todos os cantos e todas as praças do mundo». A persistência de Odília, a «primeira musa emigrante do mundo» leva-a ao encontro do poeta, pois «foram eles que fizeram as musas para que as musas os inspirassem a escrever um Livro que imaginasse deuses que criassem o mundo». E assim se ensina para o poder incomensurável do cérebro.

Repleto de ilustrações da própria autora, o texto corre vertiginoso, parando a brevíssimos espaços e acontecimentos do quotidiano, em soluços de tempo, onde o cérebro Espera antes de Acontecer, já acontecendo. Um texto para se ler, primeiro, de um fôlego, e reler, depois, escutando os momentos da Espera onde se formam as ideias que desenham as acções que temos.

Odília ou a história das musas confusas do cérebro, Patrícia Portela; Editorial Caminho; Lisboa, 2007

© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Quem é Peter Maynard?

A PHALA online tem editado o meu texto que serviu de base à apresentação da Trilogia maynardiana, na FNAC do Chiado, a 29 de Junho de 2009, com o título «Peter Maynard – Beretta e consciência»*.


Quem é Peter Maynard, essa personagem que, segundo Matt West, «desfaz mitos com o mesmo escrúpulo com que dispara»? Que personagem é esta, «figura indefinida e fugidia», segundo Dinis Machado, que sabe tudo acerca do leitor, que joga com ele, que o manipula, o agrilhoa num inaudito fascínio, que se dá à perversidade de ajeitar a gravata ao espelho, falar para a cara que vê ao espelho e não revelar essa cara ao leitor, que cata, em vão, qualquer indício da sua aparência física? Peter Maynard é voz, postura, atenção, método, intuição, acção, rigor, ética, sedução, humor, crítica, solidão, sonho e consciência.
(Continuar a ler n' A Phala)

terça-feira, 3 de novembro de 2009

À espera de Blackpot

Prestes a chegar às livrarias, Blackpot é o original de Dennis McShade (Dinis Machado) que todos esperam. Em pré-publicação, a Orgia Literária editou o capítulo 19, no passado dia 30 de Outubro, um exclusivo que agradeço à Assírio & Alvim e ao José Xavier Ezequiel, grande mentor da edição deste inédito, mas também da reedição da trilogia maynardiana.

Capítulo 19

Ornatto massajou a perna durante alguns minutos e depois foi sentar-se no sofá, em frente da televisão. Ficou a olhar para o ecrã do aparelho desligado.


Subitamente, lembrou-se que ainda não tinha almoçado. Levantou-se, dirigiu-se à cozinha e fritou ovos com bacon. A ideia de Victor andava-lhe na cabeça. Matar Armador. Franziu a testa, pensando em como as coisas se complicavam.
Comeu os ovos com bacon com um certo apetite. Quando acabou, foi aquecer o café do balão e bebeu três chávenas. Deitou-se no sofá e esticou a perna. Ainda acabaria por ser amputado. Fechou os olhos e esfregou as pálpebras.

Seria bom que Gulliver telefonasse. Queria falar com Gulliver por causa da ideia de Victor. Lembrou-se de Armador. De como era um excelente jogador de xadrez. Sabia que ele jogava xadrez muitas vezes com Gulliver. Gulliver também era um bom jogador de xadrez. Ornatto nunca percebera como funcionava o xadrez. Preferia ler Samuel Beckett e revistas de banda desenhada. Mas ultimamente procurava apenas o silêncio. Era assim que passava o tempo.

Levantou-se a coxear um pouco e foi limpar a arma. Deixou-a impecável. Tomou comprimidos para a dor na perna. Sentou-se ao pé da mesa do telefone, à espera da chamada de Gulliver. Não sabia o que pensar da ideia de Victor: matar Armador.

Ficou à espera, olhando fixamente o ecrã do televisor desligado.