sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Helder Moura Pereira: o peso das coisas

Desencanto, rebelião, melancolia, ironia são substantivos que nomeiam o Se as coisas não fossem o que são, último livro de Helder Moura Pereira , agora Prémio de Poesia Luís Miguel Nava 2011. O livro tem a chancela da Assírio &Alvim, editora que há já vários anos vem a editar o autor.

Voz poderosa da actual poesia portuguesa, Helder Moura Pereira traz-nos um livro de maturidade poética ancorada nas temáticas e nos processos que desde sempre lhe conhecemos: o poema faz eco da fragmentação dos dias e do sujeito poético, das ruínas, da «vida rasgada», descreve a «lareira apagada» (assim referido no A tua cara não me é estranha, livro de 2003), estabelece um diálogo vivo e eufórico com as coisas da vida e com a poesia, que é uma razão da vida. Se a palavra é a «amarga expressão de castigos, perdões, sorrisos» (em Segredos do reino animal, livro de 2007), em Se as coisas não fossem o que são, o sujeito poético assume que chegou «à chamada encruzilhada, /esse ponto em que só há caminhos /que não fazem parte do mapa.». Sábio, o poema mapeia aquela encruzilhada, a palavra remexe na terra molhada da memória - os «cérebros meus» enunciados no Lágrima, livro de 2002 -, perscruta a época em que havia esperança para dar conta do poder corrosivo do tempo sobre os sonhos, os desejos, os alentos, constatando-se, dramaticamente, que o antes passa de melodia a martelo que massacra a «alma estarrecida» do sujeito poético. Concomitantemente, a ironia acentua a decadência do sujeito poético e é um grito de revolta contra «a experiência do peso das coisas» que «rói o nosso último sinal carnal» (em Um Raio de Sol, livro de 2000).

«Vou escrevendo sem saber fazer de mim /um elemento», lê-se neste Se as coisas não fossem o que são, implicando o facto de o poema repetir o dia incerto do sujeito à deriva; será a «dor/ criativa da incerteza. E criar cria-se assim mas pode ser coisa horrível», conforme enunciado em Lágrima; tratar-se-á, ainda, e sobretudo, de «procurar na vida a dignidade do verso», tarefa que Helder Moura Pereira cumpre distintamente.

Dois extractos e um poema integral do Se as coisas não fossem o que são:

[…]
Pode ser tão triste o poeta sorridente.
Quando nos lê pautas de música
que tira dos bolsos. Escreve
pautas de música sem saber música.
E no meio de todo o silêncio
a tua cara afastada. Ainda se fosse
só a cara. Não há meio de me voltares
a dar corda. E eu não consigo revoltar-me
contra o meu coração ditador. Sempre
que me manda sofrer, eu obedeço. (p.p.17, 18)


***
[…]
Pense-se no instinto. Depois é só torcer a lógica
da direcção. É essa a atracção do meu amor.
Nunca perceberia nada. Da tua boca nunca ouvi
nada igual ou parecido. Isto era o que eu diria
ao meu amor se as coisas não fossem o que são.
Não era dia para grandes emoções e todavia o coração
é que sabia para que servia aquele dia. Sabia, logo
me dizia. Só eu o sentia, e tinha medo que alguém
me visse a sentir. Pensava que não era dia
para grandes emoções, mas era, dizia-me o coração.
Como já conheço este coração, sentei-me e fiquei
à espera, passei o dia num banco de jardim. (p.p.19,20)

***
assaltou-me a dúvida. Dei
o que tinha, que remédio, a dúvida
apontava-me uma pistola, que podia
ser de carnaval, mas também
podia não ser. E aí está
como a dúvida me levou
tudo. Socorri-me do amor, pedi
que me defendesse, mas o amor
fez orelhas moucas, o mais
que consegui foi que me deitasse
sortes, sortes que disseram
para eu contrariar a dúvida
com outra dúvida maior.
Doesse a quem doesse,
Furiosamente escrevi resmas
E resmas de papel, baptizei
A minha nova dúvida de verdade
(muito conveniente), e fiz
O pino, trocei de mim, fiz pouco
das outras verdades que fui
encontrando nos livros
à medida que quis conhecer
o conteúdo exacto de todas
as religiões e depois, com seca
frieza e decisão, abracei-me
à dúvida por uma ribanceira. (p.p.85,86)



© Teresa Sá Couto