domingo, 31 de outubro de 2010

"O Acossado", de Jean-Luc Godard

À Bout de Souffle, de Jean-Luc Godard, abre o mês de Novembro no Film Noir. Eis a ficha do filme elaborada por José Xavier Ezequiel. E let´s look at the film!

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Albano Martins: a cartografia da luz

(texto publicado no livro 80 Anos – Albano Martins e disponibilizado no sítio da Orgia Literária em 18 de Outubro de 2010)
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.Não, ninguém se conhece, até que o toca
a luz de uma alma irmã
                                            Miguel de Unamuno

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Falar de Albano Martins é nomear a luz. Uma luz verde, «casualmente azul», «às vezes amarela», «sobretudo vermelha», líquida, com «a cor dos miosótis e do sangue», a bordar um «coração de bússola» e a mapear a doação. Uma luz rutilante, exacta e concisa, irmanada com o nosso destino desde há 60 anos, nutrida de palavras, «Sentinelas de sal e de silêncio» a cantarem «A vida / – essa invenção magnífica / da morte».

«Meus versos / são encontros da sombra com a luz», escrevia o poeta no iniciático Secura Verde, os primeiros acordes de quem se propunha cumprir o «destino como qualquer fonte», com passos que fossem «os de qualquer bicho». Assim, «o verbo se fez cor, aurora, / boreal, multímodo / girassol», e o poeta fazia do seu nome uma canção, manifesto da transumância onde o sujeito lírico e o homem se aclaravam com «o mesmo nome», e o mesmo que nos chega até hoje, sabe-o quem conhece Albano Martins.
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«Eu fujo de novo como faz o cuco», escreveu Anacreonte. Longe da Estrela e da Gardunha, radicado à beira do Douro com vista para a invicta brumosa, Albano convoca a luz, enceta a «viagem das flores sem moldura», dá cor ao tempo branco, «o tempo das cerejas e das malvas», torna audível um melro que «canta a flor das giestas / e da cerejeira», esculpe os «dias enxutos», os «Anos plácidos, / fulvos (alourados, amarelo torrado)», cintilações, inclinações do corpo, uma oração até às mãos doridas e requiem aos «gestos perdidos / no espaço da memória»; é o apelo da «Rosa-dos-ventos» da infância, onde cabem todos os lugares e todas as direcções da palavra que solta o mel das «Lendárias e luminosas abelhas», desata a «Magnólia dos símbolos», a florida e «incandescente metáfora». Edifício vivo, o ontem é eternizado na «luminosa fábula» construída com fios secretos a ligar os tempos Passado, Presente e Futuro e a desnudar o centro, o «Centro do próprio centro», a «água compulsiva». E nesse centro está o amor, leitmotiv da poesia albaniana, como na formulação de Paul Éluard: «Por amar, criei tudo o que é: real e imaginário. / Dei razão de ser, dei forma, dei calor / Dei imortal função àquela que me é lâmpada e luz».

A criação exige trabalho árduo, e Albano mostra-nos que, para abranger, a palavra – que busca «a flor do cálcio / na / luz da madrepérola» – tem de sofrer, sendo a presença da sombra uma prova incomensurável da força vital desta poesia:

Quando escurece, é preciso acender rapidamente todas as luzes da casa. Nunca se sabe quando o eclipse do sol é total. E a morte precisa de luz para ver na escuridão.

Em permanente busca interior, o amor Escrito a Vermelho tem, na obra albaniana, o «compromisso» largo e fulgente do destino humano, estabelecendo diálogo íntimo, directo e cristalino com o Homem:

Pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. E não deixar
crescer à tua porta
ervas daninhas.

É a bússola humanista de Albano Martins que brilha, total, em Rodomel Rododendro:

Repara. Há um rio correndo entre as falanges dos dedos. Navegá-lo-ás solitário, porque solitárias são as navegações humanas, todas, como inavegáveis são os rios, todos os rios da terra, anteriores ao mar. Onde tu vês a foz é a nascente que vês. Que os rios, como tudo o que é fluido e movente, nascem ao contrário.

Sobre o lugar do poeta na humanidade e o mistério da escrita, responde-nos Albano, num comentário ao poema «Santo e Senha», de Miguel Torga, com outro mistério: o «lugar onde do poeta» é na terra de todos, mas na área da sombra onde tem «a solidão por habitáculo». O poeta não mata a sede, engana-a, diz-nos, porque «a sua sede é de infinito, de absoluto, e a esta não há fontes que a saciem, mesmo as do Sonho, por mais refrescantes que sejam».

Interrogar, desvelar o real e soltar a imaginação são a «senha» e o «Lugar» de inscrição de Albano Martins, forma de vida plena na palavra plena a dar-nos lições de coerência e de autenticidade que partilha connosco, seus leitores e cúmplices de jornada.

O lugar da palavra de Albano, sabe-o o poeta, é aquele em que a pele das palavras, das que ele libertou, encontra outra pele que passa a ser a sua casa: a pele do leitor: «Como a palavra, Só o dardo /conhece o alvo. Só o dardo / sabe o nome / da ferida. / O seu lugar».

Escreveu José Régio: «Eis como tudo se reduz a pouco: literatura viva é aquela em que o artista insuflou a sua própria vida, e que por isso mesmo passa a viver de vida própria. Sendo esse artista um homem superior pela sensibilidade, pela inteligência e pela imaginação, a literatura que ele produza será superior; inacessível, portanto, às condições do tempo e do espaço». Assim vejo a poesia de Albano Martins: um hausto íntimo que atinge a universalidade e intemporalidade humanas; uma orquestração de palavras que depois de nos deixarem «todos os jardins da terra e do mar» nos incitam e ensinam a plantar «uma flor no vazio».

«Ao amigo e ao companheiro fiel nunca traí, / nem há na minha alma nada de servil», escreveu Teógnis, traduziu-o Albano Martins, lemo-lo como efígie deste homem poeta, tradutor de poetas, farol que nos guia na nossa inevitável condição crepuscular e dote nosso de língua lusa.


Nota: este texto foi editado no livro 80 Anos – Albano Martins, pp. 315 a 319, Edições Universidade Fernando Pessoa, 2010, no ensejo das celebrações do aniversário do poeta (a 24 de Julho) e 60 anos de vida literária em 6 de Agosto de 2010.


*ler outros textos meus sobre Albano Martins na etiqueta correspondente.

© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Juan Rulfo ou o assombro literário

Dois nomes de culto: Juan Rulfo e Pedro Páramo, o mágico e a «carpintaria secreta» reveladora de «insólita sabedoria», o escritor e a novela que o imortalizou. Gabriel García Márquez considerou a escrita do escritor mexicano sua matriz literária. Leitores dos quatro cantos do mundo consideram Pedro Páramo uma das maiores obras de sempre da literatura universal; também eu me inscrevo nessa multidão.
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Publicada em 1955, Pedro Páramo daria a Juan Rulfo (1918-1986) o Prémio Príncipe das Astúrias, de Espanha, quatro anos antes do seu falecimento. Muito se escreveu sobre esta novela, e muito, creio, ainda se escreverá, porquanto ela nunca se acaba. É pejada de vozes, vozes fundas da terra difundidas pelas personagens, que as fazem suas, e que através delas se buscam.
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Juan Rulfo escreveu pouco mais que essa novela e essa lhe bastaria para o nosso redondo assombro. É esse pouco que é tanto que nos acaba de chegar no tomo de 366 páginas: Juan Rulfo, Obra Reunida, pela Cavalo de Ferro, com o prefácio Breves nostalgias sobre Ruan Rulfo, por Gabriel García Márquez, tradução de Rui Lagartinho, Sofia Castro Rodrigues e Virgílio Tenreiro Viseu. Junto com Pedro Páramo, estão o llano em chamas e o galo de ouro; assim, três portentos literários, três viagens ao inefável, e ao indizível depois de Juan Rulfo.

Extractos:
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«Dormi entre interrupções.
Numa dessas interrupções, ouvi o grito. Era um grito arrastado como o alarido de um bêbado: "Ai vida, não me mereces!"
Pus-me de pé rapidamente porque quase o ouvi aos meus ouvidos; podia ter sido na rua; mas eu ouvi-o aqui, colado às paredes do meu quarto. Ao acordar, tudo estava em silêncio; apenas o cair do pó e o rumor do silêncio.
Não, não era possível calcular a profundidade do silêncio que aquele grito produziu. Como se a Terra se tivesse esvaziado de todo o ar. Nenhum som; nem o da respiração, nem o do bater do coração; como se o próprio ruído da consciência se tivesse interrompido. E quando a interrupção terminou e voltei a acalmar-me, o grito regressou e continuou a ouvir-se durante um longo momento: "Deixem-me ainda que seja apenas o direito de empurrar a cadeira do enforcado!"».
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Pedro Páramo, p.48
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«Cai uma gota de água, grande, gorda, fazendo um buraco na terra e deixando um empate como de uma cuspidela. Cai sozinha. Nós esperamos que continuem a cair mais. Não chove. Agora, se olharmos para o céu, vê-se a nuvem aguaceira correndo para bem longe, cheia de pressa. O vento que vem da aldeia arrima-se-lhe empurrando-a contra as sombras azuis cerros. E a gota caída por engano é comida pela terra, que a faz desaparecer na sua sede.
Quem diabo terá feito esta planície tão grande? Para que é que serve, hã?
Voltámos a caminhar. Tínhamos parado para ver chover. Não choveu. Agora voltamos a caminhar. E a mim vem-me à cabeça que já caminhámos mais do que aquilo que andámos.»
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O Llano em Chamas, p.146
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«Passaram os dias. Dionisio Pinzón vivia unicamente preocupado com o seu galo, que enchia de cuidados. Levava-lhe água e comida. Metia-lhe migalhas de tortilha e folhas de alfafa dentro do bico, esforçando-se por fazê-lo comer. Mas o animal não tinha fome nem sede, parecia ter apenas vontade de morrer; embora ele ali estivesse para o impedir, vigiando-o constantemente, sem descolar os seus olhos dos olhos semi-adormecidos do galo enterrado.
Contudo, uma manhã, deparou-se com a novidade de que o galo já não abria os olhos e tinha o pescoço torcido, caído sob o seu próprio peso. Colocou rapidamente um caixote sobre a cova e pôs-se a bater-lhe com uma pedra durante horas e horas.
Quando, por fim, tirou o caixote, o galo olhava-o aturdido e pelo bico entreaberto entrava e saía o ar da ressurreição. Aproximou dele a tigela da água e o galo bebeu; deu-lhe de comer massa de milho e este engoliu-a, em seguida.
Poucas horas depois, pastoreava o seu galo pelo terreiro do curral. Aquele galo dourado ainda cinzento de terra que, apesar de se alquebrar a cada instante por lhe faltar o apoio da sua asa partida, dava mostras da sua fina condição, erguendo-se cheio de coragem perante a vida.».
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.O Galo de Ouro, p.p.310,311

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domingo, 17 de outubro de 2010

Luís Norberto Lourenço na tertúlia da História

O historiador e professor albicastrense Luís Norberto Lourenço acaba de lançar o livro Auto de arrolamento dos bens existentes na egreja matriz da freguesia de Penamacor, concelho do mesmo, distrito de Castello Branco, realisado no dia 6 de Julho de 1911 (Ver aqui). Segundo informações do próprio autor, a quem agradeço, o título terá distribuição gratuita: serão entregues 11 exemplares à Biblioteca Nacional (BN), um à Torre do Tombo, um a cada Arquivo Distrital, distribuídos pelas bibliotecas , por alguns arquivos municipais e em várias apresentações públicas pelo país.
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Para muitos, Luís Norberto Lourenço dispensa apresentações, pois tem vindo, há cerca de uma década, a aplicar o conceito de terlúlia com envolvência cultural ímpar, e com o nome exacto de Casa Comum Das Tertúlias; o segredo estará na dedicação e tenacidade que corporizam um trabalho sólido estendido por apresentação de livros, declamação de poesia,  organização de tertúlias, organização de exposições (cerâmica, desenho, escultura, fotografia, pintura), concertos, visitas culturais, feiras do livro, revistas e fanzines e versátil actividade editorial.
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Entre iniciativas de sucesso, a casa tertuliana de Castelo Branco ganhou asas e fôlego, pelo que o seu roteiro contempla já Cidade Rodrigo, Mangualde, Marvão, Nisa, Penamacor, Portalegre, Porto, Proença-a-Nova, Sátão, Vila Nova de Paiva, Vila Velha de Ródão, Salamanca, Seia, Setúbal. Ver aqui o resumo das actividades da Casa Comum das Tertúlias, e facilmente se conclui ser este um local que é obrigatório acompanhar.