Partindo de Antígona,
de Sófocles, Renato Roque constrói Aurora,
libreto em verso, dramático e crítico, com direito a habitar a história
dramatúrgica de intervenção, a que denuncia a tirania e a soberba dos poderes
que desprezam a cooperação e confraternização humanas; a escolha do título Aurora, sinónimo dos nomes alvorada,
madrugada ou despertar, evidencia o propósito de alguém comprometido com o seu
tempo. Aliando-se às máscaras diabólicas de Vitor Sá Machado, Aurora
revisita a nossa cultura e arqueologia mental: o Diabo, figura mais grotesca
que terrível, intrépido e vulcânico, é o subversivo estandarte dos humilhados,
o que está onde está a humanidade para que esta crie o espírito humano e este
concretize a Ideia: resgatar o mundo para a verdade.
Numa altura em que o mundo vive a tragédia dos migrantes, em que se assiste à eclosão da extrema direita em lugares de poder e decisão, em que pululam tentativas ditatoriais que abocanham as liberdades, Aurora surge pleno de sentido. Escrito à maneira clássica, o texto propõe-nos um jogo de símbolos cuja animação fica a nosso cargo: os factos narrados implicam experiências, percepções e reacções do leitor incitando-o a avaliar o lugar humano no mundo: “O que vos vai ser narrado /é o que está a acontecer. /E se repete o passado, /anuncia o que há-de ser”, avisa o texto.
Feito de ardis, o texto dispensa as personagens e usa dois coros para apresentar a narrativa e conduzir a eloquente, desditosa e atual história de Aurora. O Coro dos anjos, na advertência para a contenção dos gestos humanos, mostra a solidão que Aurora negou, a desobediência à doutrina da frustração como meta do destino de todos os homens, a recusa da condição de nada pedir e do juízo final exercido por um homem sobre outro. Diz o coro: Sabias bem, muito bem, /devias obediência /aos Crónidas e a quem/devias a existência. Ao invés, O Coro dos diabos apresenta-se conluiado com Aurora e com todos os que se opõem aos ditames de Creonte, como Filomena, irmã de Aurora, Hémon, noivo de Aurora e filho de Creonte, e os estrangeiros ajudados por Aurora. Assim se dá ao séquito diabólico o papel que tradicionalmente lhe pertence: o de viver na terra para cumprir a necessidade de enfrentar o mundo, ao lado do povo para apostrofar os poderosos, arauto dos direitos cívicos à existência, fundamental na empresa de nos relacionarmos com o outro:
Seguiste
o teu coração, queriam que olvidasses, /que não falasses (...)/ que teus
ouvidos cerrasses;
Quem como tu quer viver,/crueldade não
suporta;
É melhor viver a morte /do que morrer a vida;
a morte
para todos chegará, / porque ao Hades não se escapa.
A estrutura externa do texto composto por quadras de rimas cruzadas, simples, melódicas, ao jeito popular, fortalece esta teia de laços mágicos onde se bordam lendas seculares e também agora Aurora. Embora com posicionamento ideológico distinto, os anjos e os diabos de Aurora trabalham em conjunto para a Ideia: os primeiros, lamentando as decisões de Aurora, engrandecem-nas; os segundos, rejubilando-se, legitimam-nas. E é este outro ardil de um texto que propõe a confraternização humana e que também sabe que o embate entre forças antagónicas pode resultar no aniquilamento de ambas. O Creonte de ontem e o de hoje só consegue ver um adversário como inumano, como o “outro”; Antígona e Aurora reconhecem a mesma humanidade em todos, pois todas as pessoas partilham um destino comum. A humanidade de Antígona é a humanidade de Aurora. Ambas saem da sua menoridade, entendendo-se esta como a falta de coragem para se usar o próprio entendimento, como a define Kant ao abordar o uso autónomo da razão: “A preguiça e a cobardia são as causas que explicam que um tão grande número de homens, depois da Natureza os ter há tanto tempo libertado duma direcção estranha, permaneçam, de bom grado, não obstante e durante toda a sua vida como menores, sendo tão fácil a outros constituírem-se como seus tutores. É tão fácil ser-se menor!”, refere Kant. Tal como Antígona, Aurora desobedece aos Creontes do mundo, ergue o peito, repele a cobardia, ajuda os estrangeiros, age à luz do dia. É esta a denúncia, a crítica e a nova escala de sentido que Renato Roque imprime no texto bebido do tragediógrafo grego. Lê-se em Aurora: Perante os deuses e os reis /há que baixar o olhar, /cada um com seus papéis, /cada um em seu lugar - coro dos Anjos;
Não te
queriam é livre,/pois temem a liberdade. /Temem quem a vida vive /e olha para
além da grade. – coro dos Diabos.
Também comprometido com os direitos humanos, com as questões da hybris e do poder, o poeta, dramaturgo e activista Harold Pint escreveu, no poema Morte, sete séculos depois de Antígona em palavras reminiscentes: “Estava morto o corpo quando foi abandonado /O corpo foi abandonado? / Por quem foi o corpo abandonado?//Estava o corpo morto nu ou vestido para a viagem?”. Tal como Antígona, Aurora é executada pela sua desobediência, mas o seu “emparedamento” destrói o mito do poder: no Êxodo de Aurora imprimem-se as lições a tirar da história: a liberdade enfeitiça, os fracos podem ser fortes e os que se pensavam fortes podem revelar-se fracos, a eternidade só é alcançada por poucos.
O poder deste Aurora é o reinado do silêncio, onde se acha a personalidade e a vigília humana. As perguntas que encontramos no texto estão ao serviço da persuasão, do despertar das consciências: “Porque desobedecer /quando o coração nos impele, /e se pode obedecer /vestindo uma outra pele?” , diz o Diabo-Mor no Prólogo; “Queriam que fosses cega, /que não visses o que se via. /Mas como é que se nega /a ajuda a quem agonia?”; “Recolheste no teu lar /estrangeiros proibidos. /Poderias não olhar, /deixá-los desprotegidos?”, lê-se no Coro dos diabos. Ter a coragem de se usar o próprio entendimento, Sapere aude! é, pois, a divisa de Aurora, o grito que ecoa do texto para nos implicar:
Os anjos e os chifrudos
tudo aqui vos vão contar.
E
não vos queremos mudos,
mas sim no fim a pensar.
Aurora, Renato Roque, edições Lema d’Origem, Julho de 2019
© Teresa Sá Couto
nota: O
libreto Aurora foi lançado em Morille, Salamanca durante o PAN , no
passado mês de Julho, bem como a Curta Metragem do mesmo nome, com as máscaras
de Vítor Sá Machado, realizada por Renato Roque e Tiago A. Fonseca.