sábado, 17 de agosto de 2019

Aurora, de Renato Roque

Partindo de Antígona, de Sófocles, Renato Roque constrói Aurora, libreto em verso, dramático e crítico, com direito a habitar a história dramatúrgica de intervenção, a que denuncia a tirania e a soberba dos poderes que desprezam a cooperação e confraternização humanas; a escolha do título Aurora, sinónimo dos nomes alvorada, madrugada ou despertar, evidencia o propósito de alguém comprometido com o seu tempo. Aliando-se às máscaras diabólicas de Vitor Sá Machado, Aurora revisita a nossa cultura e arqueologia mental: o Diabo, figura mais grotesca que terrível, intrépido e vulcânico, é o subversivo estandarte dos humilhados, o que está onde está a humanidade para que esta crie o espírito humano e este concretize a Ideia: resgatar o mundo para a verdade.

Numa altura em que o mundo vive a tragédia dos migrantes, em que se assiste à eclosão da extrema direita em lugares de poder e decisão, em que pululam tentativas ditatoriais que abocanham as liberdades,  Aurora surge  pleno de sentido. Escrito à maneira clássica, o texto propõe-nos um jogo de símbolos cuja animação fica a nosso cargo: os factos narrados implicam experiências, percepções e reacções do leitor incitando-o a avaliar o lugar humano no mundo:  “O que vos vai ser narrado /é o que está a acontecer. /E se repete o passado, /anuncia o que há-de ser”, avisa o texto.

Feito de ardis, o texto dispensa as personagens e usa dois coros para apresentar a narrativa e conduzir a eloquente, desditosa e atual história de Aurora. O Coro dos anjos, na advertência para a contenção dos gestos humanos, mostra a solidão que Aurora negou, a desobediência  à doutrina da frustração como meta do destino de todos os homens, a recusa da condição de nada pedir e do juízo final exercido por um homem sobre outro. Diz o coro: Sabias bem, muito bem, /devias obediência /aos Crónidas e a quem/devias a existência. Ao invés, O Coro dos diabos apresenta-se conluiado com Aurora e com todos os que se opõem aos ditames de Creonte, como Filomena, irmã de Aurora, Hémon, noivo de Aurora e filho de Creonte, e os estrangeiros ajudados por Aurora. Assim se dá ao séquito diabólico o papel que tradicionalmente lhe pertence: o de viver na terra para cumprir a necessidade de enfrentar o mundo,  ao lado do povo para apostrofar os poderosos, arauto dos direitos cívicos à existência,  fundamental na empresa de nos relacionarmos com o outro:  
Seguiste o teu coração, queriam que olvidasses, /que não falasses (...)/ que teus ouvidos cerrasses;
 Quem como tu quer viver,/crueldade não suporta;
 É melhor viver a morte /do que morrer a vida;
a morte para todos chegará, / porque ao Hades não se escapa.

A estrutura externa do texto composto por quadras de rimas cruzadas, simples, melódicas, ao jeito popular, fortalece esta teia  de laços mágicos onde se bordam lendas seculares e também agora Aurora. Embora com posicionamento ideológico distinto, os anjos e os diabos de Aurora trabalham em conjunto para a Ideia: os primeiros, lamentando as decisões de Aurora, engrandecem-nas; os segundos, rejubilando-se, legitimam-nas. E é este outro ardil de um texto que propõe a confraternização humana e que também sabe que o embate entre forças antagónicas pode resultar no aniquilamento de ambas. O Creonte de ontem e o de hoje só consegue ver um adversário como inumano, como o “outro”; Antígona e Aurora reconhecem a mesma humanidade em todos, pois todas as pessoas partilham um destino comum. A humanidade de Antígona é a humanidade de Aurora. Ambas saem da sua menoridade, entendendo-se esta como a falta de coragem para se usar o próprio entendimento, como a define Kant ao abordar o uso autónomo da razão: “A preguiça e a cobardia são as causas que explicam que um tão grande número de homens, depois da Natureza os ter há tanto tempo libertado duma direcção estranha, permaneçam, de bom grado, não obstante e durante toda a sua vida como menores, sendo tão fácil a outros constituírem-se como seus tutores. É tão fácil ser-se menor!”, refere Kant. Tal como Antígona, Aurora desobedece aos Creontes do mundo, ergue o peito, repele a cobardia, ajuda os estrangeiros, age à luz do dia.  É esta a denúncia, a crítica e a nova escala de sentido que Renato Roque imprime no texto bebido do tragediógrafo grego. Lê-se em Aurora: Perante os deuses e os reis /há que baixar o olhar, /cada um com seus papéis, /cada um em seu lugar - coro dos Anjos;
Não te queriam é livre,/pois temem a liberdade. /Temem quem a vida vive /e olha para além da grade. – coro dos Diabos.

Também comprometido com os direitos humanos, com as questões da hybris e do poder, o poeta, dramaturgo e activista Harold Pint escreveu, no poema Morte, sete séculos depois de Antígona em palavras reminiscentes: “Estava morto o corpo quando foi abandonado /O corpo foi abandonado? / Por quem foi o corpo abandonado?//Estava o corpo morto nu ou vestido para a viagem?”.  Tal como Antígona, Aurora é executada pela sua desobediência, mas o seu “emparedamento”  destrói o mito do poder: no Êxodo de Aurora imprimem-se as lições a tirar da história: a liberdade enfeitiça, os fracos podem ser fortes e os que se pensavam fortes podem revelar-se fracos, a eternidade só é alcançada por poucos.

O poder deste Aurora é o reinado do silêncio, onde se acha a personalidade e a vigília humana. As perguntas que encontramos no texto estão ao serviço da persuasão, do despertar das consciências: “Porque desobedecer /quando o coração nos impele, /e se pode obedecer /vestindo uma outra pele?” , diz o Diabo-Mor no Prólogo; “Queriam que fosses cega, /que não visses o que se via. /Mas como é que se nega /a ajuda a quem agonia?”; “Recolheste no teu lar /estrangeiros proibidos. /Poderias não olhar, /deixá-los desprotegidos?”, lê-se no Coro dos diabos. Ter a coragem de se usar o próprio entendimento, Sapere aude! é, pois, a divisa de Aurora, o grito que ecoa do texto para nos implicar:

Os anjos e os chifrudos
   tudo aqui vos vão contar.
      E não vos queremos mudos,
mas sim no fim a pensar.


Aurora, Renato Roque, edições Lema d’Origem, Julho de 2019

© Teresa Sá Couto

nota: O libreto Aurora foi lançado em Morille, Salamanca durante o PAN , no passado mês de Julho, bem como a Curta Metragem do mesmo nome, com as máscaras de Vítor Sá Machado, realizada por Renato Roque e Tiago A. Fonseca.

sábado, 11 de maio de 2019

"Os Animais Perdidos Na Floresta" de Francisco Duarte de Azevedo





 Com o Os Animais Perdidos Na Floresta, Francisco Duarte de Azevedo conclui a trilogia poética proposta há vários anos ; à semelhança dos outros títulos, As Habitações Interrompidas e Livro de Inverno e Transições, também este tem prefácio meu; é esse texto que aqui publico. 



Cântico de solidão 





                                         Enquanto eu bebo a respiração dum fruto / o tempo chama-me, pelo rio.
  
                                                                                                                                     M.S.Lourenço 

                                                     Os rios, obstinados, / abrem sulcos profundos / nos nossos braços.
                                                                                                                    Francisco Duarte Azevedo

  A solidão é um rio, às vezes negro, outras vezes azul intenso, outras, ainda, verde gramíneo, amarelo crepuscular, branco das manhãs ou das areias, mas, indubitavelmente, o rio da solidão escreve-se a vermelho. É um rio revoltoso o que encontramos neste terceiro tomo da trilogia proposta há já alguns anos por Francisco Duarte Azevedo. No seu tutano, uma explosão, o centro das incertezas, a habitação; nas suas artérias, o latejo da demanda, o uivo do tempo, a pulsação do instinto da escrita ininterrupta.

 À semelhança dos dois primeiros títulos da trilogia – As Habitações Interrompidas e Livro de Inverno e Transições -, Os Animais Perdidos na Floresta reverbera os temas da memória, da natureza e da solidão mas este atinge agora um cântico lapidado onde a palavra toca “a polpa das pedras” e, em golpe de asa, liberta-se do “jugo terreno”, a sua condição, acede “a um céu/ delicado sobre a falésia” para se lançar no infinito ao encontro da sua plenitude ou dito, ainda, assim: “Ao acaso./ No centro
 da floresta/ entre a montanha/ e o infinito/ assistiremos/
 ao voo metálico/ de um pássaro/ de fogo contornando/ as asas da imaginação.”.
  Jorge Luís Borges, no Prólogo de A Rosa Profunda, de 1975, escreveu: “A palavra teria no princípio um símbolo mágico, que a usura do tempo desgastaria. A missão do poeta seria restituir à palavra, mesmo parcialmente, a sua primitiva e agora oculta virtualidade. Dois deveres teria qualquer verso: comunicar um facto preciso e tocar-nos fisicamente, como a vizinhança do mar.”(2). Em Os Animais Perdidos Na Floresta, a água é o discurso sobre a génese, sobre os sacrifícios da viagem, a luz é o discurso sobre o efémero, o transitório, o vento é inquietação, o sopro criador que dissemina, avança e inventa o canto dos “pássaros que já não falam”, que produz um eco sonoro que nos envolve, despe e impele para novas significações da palavra. Água, luz e vento são, assim, princípios fundadores, artérias deste cântico poético sobre a solidão. Diz-nos o texto: “Navegamos no âmago/ de substâncias etéreas./ Para tocar a polpa
das pedras,/ o coração necessita de água/ e da tua voz. Para isso me iniciei.”.
  Com efeito, há uma solidão lacustre nesta poesia que procura as ruínas no fundo das águas doces: “Na macieza do éter/ são frustrantes/ todas as tentativas/ para alterar o rumo/ da navegação./ O que é isso/ dos navios sorvendo/o lodo dos rios? “, sendo o “isso”  o enigma dos caminhos que se desdobram em múltiplas sendas criando labirintos que são o desígnio da própria  poesia.
   Na viagem que nos é proposta, há uma emergência de quietude que confere à caminhada um principio de onirismo, “Há uma insistência/ para amaciar os gestos/ num campo de girassóis adormecidos.”, há a confiança:  “Como o aprendiz/ montado/ na sua cegueira ansiosa,/ amestrarei
 o corcel /e um cravo
 florescerá/ entre os dentes”; e há também a tensão entre dois polos extremos, a energia e a lassidão, a esperança e o niilismo: “E no desespero/ assimétrico
 do confronto/ entre massa e energia,/ os elementos celestes/ derramam-se 
sobre a terra./ Uma chávena
de café/ amargo e quente 
emerge/ das entranhas do fogo.”.  Por vezes, uma refracção violenta desvela um movimento auto-reflexivo, uma demanda intelectual impregnada de memória de paraísos perdidos e de desejos suspendidos:

Se o pudesse abraçar

abraçava mas não posso.

Os meus braços
são pequenos
para tamanha imensidão.
Precisaria da tua ajuda

e perdi-a. E os braços 
de 
mais duas, três ou quatro

pessoas não bastariam

para abraçar o mundo

da árvore de memórias 
e lendas tão antigas
como
 a criação dos séculos.

Precisaria apenas
do teu abraço 
para abraçar 
o baobá por inteiro. 
  Na viagem, as mãos têm um papel essencial, porquanto são a “bagagem do criador”, o seu “elemento original”: “O silêncio não digerido,/ as mãos aquietadas/ 
sob a sombra das águas
/ e o corcel mansamente
/ estacado à porta dos desejos/ contemplam de soslaio o aprendiz.“; embebida numa luz “crepuscular”,  a palavra é projectada pela mão que percorre a tela “como um caminho cego”, desenha o silêncio que “uiva no vento”, certa de que “Uma árvore estremecerá./ Apenas uma.
 Aquela/ onde depositas
 o reencontro/ dos elementos/ e acolhe as nossas habitações.”, lê-se.
  “Que pássaro/ é este que na ponta / dos dedos/ faz o ninho?”, escreveu o nosso saudoso poeta Albano Martins no poema Para a Flautista de “O Pássaro de Fogo”, de Stravinsky (3), onde se evidencia que a Arte é o lugar onde habita a voz ;  “digerido” o silêncio, é preciso dar-lhe voz, e cabe às mãos instaurar o silêncio no silêncio da tela – e recordo que as capas que envolvem os três títulos da trilogia são reproduções de quadros de Francisco Duarte Azevedo – ou, no caso, no silêncio estridente das palavras que são jogo, manha, o lugar  onde a incerteza se torna um viático porquanto a dúvida atinge a dimensão reflexiva, a dúvida pela qual o sujeito se interroga sobre as condições do seu próprio pensamento: “E as águas do rio / seguem o seu caminho./ Já não sei onde estancam.
/ Se no deserto imenso /ou nesse outro mar azul / tão distante e incerto.”.
  Disse, ainda, Jorge Luís Borges que a solidão é a sina do transviado mas também do pioneiro. Outrossim do poeta, acrescente-se, e Francisco Duarte Azevedo evidencia-o uma vez mais neste Os Animais Perdidos na Floresta.  Nas “cúpulas dos bosques” cantam os pássaros o cântico febril na vigilância dos dias, sendo a vigília o instinto do poeta: “Sonha-se de olhos abertos
/ no centro da solidão./ Como um dicionário fechado/ no sacrário das palavras.”. Ligada à vigilância, a ansiedade estimula a pesquisa errante, e não  parará de trabalhar subterraneamente na procura das soluções que as suas angústias exigem. Neste tomo, a errância está patente na forma de poemas ora curtos, ora mais longos, em prosa, atrelados ao real ou saltando dele com metáforas frenéticas e enigmáticas, onde as palavras que são a “lucidez da insónia”, as palavras  “importadas de memórias/ derramadas e imprecisas” edificam “Imagens/ passageiras girando na espuma / da madrugada”,  ”cansam-se, irritam-se”, “Explodem
 como um vulcão /outrora indeciso entre água, ar e fogo”. As palavras arriscam, afrontam, mergulham no delírio e na loucura criativa que culmina e desfralda quando há simultaneamente ausência: 

As acácias as casuarinas
regurgitam 
no delírio
dos rios e nas areias
da praia.
Os seres perdidos 
na floresta
rasgam as veias
 sob a pele
a camada do fogo
 e o crepitar 
vermelho 
de bocas exauridas.
Do mar, 
sorvem o sal
o plâncton 
para temperar
o aço dos seus braços.

  São as palavras que se iluminam contra a banalidade, que arrostam o caminho, que procuram  “a migalha/ de podermos /antever/ quão irreais/ os rios/ em busca do mar”, que escutam “o grande rio que habita/ o coração dos animais /perdidos na floresta”, que mergulham “na densidade dos lobos reaprendendo a caminhar” ou dito , ainda, assim:

Caminhamos no coração
das trevas modernas de betão.
O peso da solidão
é tão grande como o arco
planetário de Deus;
a aliança entre os mitos e os rios
bíblicos permanece
na densidade da memória.
A solidão esgueira-se
na silhueta das trovoadas,
cíclicas, da floresta.
A chuva asperge-nos
de frescura, eis o maná
da fertilidade.
  A assunção da escrita como poalha, o carácter efémero da palavra - a “varanda provisória”-,  e o elogio da imperfeição são senhas para a escrita ininterrupta.. A palavra é frágil, é um ser sensível “perdido na floresta”,  é imperfeita, de uma imperfeição absoluta a exigir constantes reparações:

Súbito, um estremecimento
reacende as vozes a galope
do corcel das trevas.
A insónia, essa coisa
brumosa de dormir
acordado, apodera-se
de reflexos, 
denuncia o corpo
entre sono e morte,
vampiriza o vocabulário
torna-o redondo
 e repetitivo.

 Pensar, analisar, reinventar a voz da solidão serão etapas do método do Eu monologante em demanda intelectual, do Eu dialogante com o Tu da poesia e com o Nós de um leitor implicado no peso das fadigas humanas, atento aos movimentos do mundo,  impelido, também ele, para a caminhada de pensar, analisar e reinventar a sua própria solidão.
 “Não fosse tão intenso/ e tão azul/ este voo iniciático / contemplaria os seres/ que pululam/ fora das nossas vidas,/ pulsando, pulsando, pulsando/ como as veias/ nos pulsos dos nossos braços.”, lê-se neste último título da trilogia. Crê-se que o laboratório poético de diálogos interrompidos,  que assume  “amaciar o corpo” da palavra nas noites de chuva, não se ficará por este tomo. Deseje-se, pois, chuva à palavra policromada de Francisco Duarte Azevedo.


Teresa Sá Couto
Lisboa, Novembro de 2018

Notas:
(1). M.S.Lourenço, O Caminho dos Pisões, Assírio & Alvim, Lisboa 2009, p.13
(2). Jorge Luís Borges, Obras Completas 1975-1985, Editorial Teorema, Lisboa, 1998, p.79
(3) Albano Martins, Livro de Viagens, Edições Afrontamento, Porto, Março de 2015, p.47


quarta-feira, 1 de maio de 2019

Jorge Velhote: o abismo da luz





Envolvo de pele as pedras e as sombras brilham (1)
                                                  Jorge Velhote



Ponho os frutos negros na boca e a sua doçura é de
outro mundo
como o meu pensamento arrasado pela luz. (2)


                                                              Antonio Gamoneda




  Luz e trevas, leveza e densidade, despojamento e complexidade, desvelamento e ocultação, união entre realidade e espírito  são os elementos essenciais da correnteza de Âmago, o mais recente livro de poemas e fotografias de Jorge Velhote. Discreto, longe das luzes e fanfarras mediáticas, Jorge Velhote tem, no tempo e no modo, dado à estampa alguns títulos sem preocupações de agenda, mas sempre fiel à beleza e à exploração dos enigmas da linguagem poética. A chancela é da zelosa, e também discreta, Edições Sem Nome dirigida pelo incansável Luiz Pires dos Reys.

 “Ofício e peregrinação”: assim se assume este Âmago na epígrafe assinada por Jorge Velhote, tendo o olhar como ofício e uma poesia que decanta a luz para atingir a medula, o centro perdido. Logo a abrir, as trevas oferecem ao poema a sua resistência e a sua impulsão e de imediato divisamos o programa poético do autor, irradiante neste título, outrossim em títulos anteriores: surgem-nos as trevas de um “olhar cego”, contrariadas por uma “luz virulenta” que faz acordar “o animal do poema” a fim de cumprir “funções ásperas” : indagar a voz da solidão,  da dor, da morte.  Impelido pela busca, o “olhar dobra-se como um seixo”, curva-se no jogo que a luz lhe dá a jogar: procurar o  “segredo exclusivo” da voz poética, numa trama que vai urdindo com fios de diferentes espessuras, num percurso labiríntico, aracnídeo, como anunciado na fotografia que abre o conjunto de poemas seguida de outra imagem com, interpretemos, a dissipação de uma “inevitável neblina”.  A partir daqui, com “vagar luminoso que arde inabalável e engenhoso”, o  olhar ocupa-se na sua missão de procurar a luz nas trevas, de levedar a imaginação:

Há uma luz branca que chega
Como antes chegou uma luz
negra ou o frio vertiginoso
do esquecimento.
Olhavas as tuas mãos
enquanto nas veias escorriam
líquidos furiosos abrasando.
Por vezes a melancolia inclinava-te
a cabeça para lugares enxutos
e velozes. Ou escuros.
Vias os melros entre ramagens ocultos
como sombras e tangias o vento
para selar o inverno.

  Canto das profundezas e de triunfo da dor, esta poética não transmite, porém,  angústia ao leitor, mas uma inquietação agasalhadora, uma sensação de consolo, de abrigo. Para tal concorrem a mestria do autor no declinar com naturalidade a fragilidade, a efemeridade, a dor e a morte envolvendo tudo com serena melancolia, pois são “simples e eternos /os instrumentos da agonia” ou dito, ainda, assim: “Diante da chuva o medo cresce / como bosque inacessível. / Mais tarde, destinaste à morte / Um relâmpago de tristeza. / E a serenidade das sementes.”; também a musicalidade que atravessa, dominadora, todas as composições, imprimindo no poema um jogo tensional e dramático enformado por metáforas de beleza arrebatadora:

É a luz, dizias, essa fístula.
E no limite os vestígios da penumbra ou da tristeza
com que humedeces a música.
Lambes a vertigem como num espelho
os líquenes devoram a espessura da terra.
Um pastor vem e deixa indecifrável o seu rasto
como um rosto o seu destino.
E nos seus claustros a água apenas varre
os lilases do medo.

 Por tudo isto entendemos o que o autor nos quer dizer quando diz que “A beleza não é um lugar maldito” (3). Se a noite impulsiona a procura da luz,  a luz dispara os enigmas, torna leve a densidade, desnuda a complexidade e revela outros enigmas num círculo infinito onde enreda o leitor, ou dito assim:

Na noite cintilam entre paredes
os despojos da pele e  uma labareda
devastando os ossos dispara
a cegueira.
Infinitamente desce no teu olhar
apenas uma gota de luz
que varre das pedras a poeira inútil
a dor e a loucura.

  O poeta Amadeu Baptista, na apresentação pública de Âmago, disse que a “metáfora na poesia de Jorge Velhote integra-se no que os gregos dizem que ela é, um transporte e um vínculo para que outros vínculos se expandam”.  Com efeito, as metáforas abrem sulcos, expandem-se em portas, galerias, labirintos, qualquer lugar é outro lugar, “um enigma inaugura um outro modo de ver”, o olhar declina-se no fogo, “declina  infindo”, como uma “bactéria”. Muitas vezes o palco é um abismo, o alvo da luz é o vazio, outras um círculo, não vicioso, mas espiralado e, por conseguinte, infinito: “são paisagens incrementes e austeras que figuram / o inextinguível, a quase escuridão ou alegoria /luminescente dos labirintos e dos portais da voz”.  
 Amadeu Baptista referiu, ainda, que esta “poemática é filha de um processo criador que vem do mundo antiquíssimo, de uma pangeia inerente ao mundo e à linguagem, ao trabalho ancestral dos dias e das noites, em que tudo está à deriva para se recolocar na vastidão da nossa ignorância e da nossa ousadia.”.  Jorge Velhote procura o “nome despido”; atravessada pela meditação também sobre o fazer poético, nesta poesia os sentimentos são categorias do pensamento, as coisas desmaterializam-se, a realidade é metamorfoseada. Mais do que procurar o sentido da palavra, procura interpelá-la, explorar-lhe a ambiguidade, dando ao leitor espaço amplo de interpretação, desoculta a palavra original, liberta-a dos grilhões do sentido, mas cujo poder de nomeação só é possível no “silêncio de um nome” que não pertence a ninguém, na peugada do expresso por Fernando Guimarães: “A poesia é o silêncio de um nome. Os caminhos a que ela nos conduz são tão próximos como a intimidade de qualquer linguagem. Mas não é em nós que essa linguagem existe. Há nela  uma realidade própria que vem recusar a presença de quem é capaz de a pronunciar, porque só deste modo estaria ao nosso alcance revelá-la aos outros. É essa realidade, que há-de ficar por fim repartida, se poderá chamar silêncio, para que a ninguém pertença.”(4). Essa brecha secreta, essa luz divida é o fundamento da poesia que Jorge Velhote cumpre sabiamente.

  A poesia é um ofício carnal; “Procuramos o amor e a morte em cada rio / para que seja igual ao mar da nossa vida”, escreveu, ainda,  Fernando Guimarães. Também na poesia de Jorge Velhote, o corpo define a tempestade e a veia mais secreta, o pensamento, inventa os modos de dizer: “Há um excesso de luz zunindo húmida”, que é “como um eco/entreabrindo a pele com que cobrimos /os mortos de passagem”, e o poema tece-se procurando sempre o equilíbrio entre luz e sombra, pois sabe que esse equilíbrio dá harmonia à poesia, enunciado assim: “O peso de uma pedra que não sabes/ medir, a quantidade de luz /que compõe o granulado /de uma sombra, a temperatura /do frio que se estende no teu braço”.

  A escrita é “Um espelho onde cuspir a alma”, escreve o autor em Coisas Mínimas &Outras Coisas.  A palavra é respiração: “Alguém acorda e regressa à terra / subindo pelas sementes /resgatando o céu para respirar”; é um lugar onde se redimem os medos;  a página é  “ um mapa ofuscante” percorrido pelos olhos “à procura de uma fronteira ou de um caminho”; é um mapa onde pousa a mão frágil “que percorre /no papel os seus sinais, a invenção /dos nomes, o vento que desfaz /as dunas, o rascunho fiel / da luz e da morte”;  é um rio que faz sede; é um “lugar para morrer”, sempre que a luz encontrar a palavra secreta, e a palavra encontrar a noite;  acumulam-se palavras para “salvar o tempo”, para “salvar a alma” contra a dor, contra o esquecimento, contra a  morte.
 “O sangue embrulha a densidade da alma”, escreveu Jorge Velhote; Âmago é água em movimento cuja amplitude da corrente atinge, em aluvião, o leitor, pelo que o horizonte de leitura desta poesia depende do nosso “horizonte íntimo”, da capacidade de desviarmos o olhar para dentro de nós mesmos ou, como escreveu, ainda, o autor, “talvez um pouco de água baste”.

(1)    Jorge Velhote, Máquina de Relâmpagos, Ed. Afrontamento, Porto, 2005, p.51,
(2)    Antonio Gamoneda, Livro do Frio, tradução e nota biográfica de José Bento, Assírio &Alvim, Lisboa, 1998, p.25
(3)    Jorge Velhote, Coisas Mínimas&Outras Coisas -textos e fotografias, Edições Luz de Papel, 2017
(4)    Fernando Guimarães, Algumas Palavras, Poesia Reunida 1956-2008, Edições Quasi, Lisboa, 2008, p.79


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