sexta-feira, 19 de outubro de 2012

O Adeus de um homem livre: Manuel António Pina

Manuel António Pina, Prémio Camões 2011, partiu. Deixo a minha homenagem ao homem das letras e da cidadania.


O Tesouro é um hino à Revolução dos Cravos, um Tesouro duas vezes: por trazer para tão perto um país tão distante; por, com palavras claras e sábias, ensinar às crianças, e relembrar-nos a todos, o valor essencial à vida: a Liberdade – «A liberdade é como o ar que respiramos. Só quando nos falta, e sufocamos cheios de aflição, é que descobrimos que, sem ele, não podemos viver…».
O Tesouro é um
livro com um pássaro azul no seu interior, que se cumpre e se liberta em páginas mágicas, prodigamente ilustradas por Evelina Oliveira; quem detiver este Tesouro garante a imortalidade das asas.


 Contar aos mais novos uma história não inventada, a do seu país, Portugal, que outrora se chamou “País das Pessoas Tristes”, é possibilitar-lhes a inscrição da sua identidade e projectar-lhes a sua missão: «E o tesouro pertence-te a ti, és tu que agora tens que cuidar dele, guardando-o muito bem no fundo do teu coração para que ninguém to roube outra vez.». Para isso, explica-se o medo, a violentação do silêncio que nega o homem na sua existência social e pessoal, e o torna infeliz, solitário e triste: as «Pessoas falavam baixo como se um segredo terrível as amedrontasse.»; tinham até medo que «alguém pudesse ler os seus pensamentos e sair da sombra para os castigar por causa deles.».

São explicados os polícias por toda a parte, «não policias bons, que orientam o trânsito e prendem os ladrões, mas para vigiar as pessoas e impedir que elas falassem entre si; policias nas fronteiras para não as deixar sair; até policias que «abriam as suas cartas e ouviam as suas conversas para descobrir o que diziam e o que pensavam, e que as perseguiam e lhes batiam se elas não dissessem nem pensassem o que eles queriam que dissessem e que pensassem.».

Fala-se do destino minuciosamente traçado por homens poderosos que construíam a sua causa com desprezo pela causa de cada um: os meninos e as meninas só tinham acesso ao que não era proibido, não conviviam, e aprendiam em escolas separadas. Aos meninos esperava-os a guerra, onde eram obrigados a matar sem perceberem porquê.
Apresenta-se a felicidade, o dia em que se reconquistou o tesouro, que a gente de palmo e meio hoje tem, o dia em que se soltou o grito de "Viva a Liberdade", pois os «soldados arrancaram o tesouro das mãos dos ladrões».

As ilustrações compõem os tons do estertor psicológico, num jogo pictórico que desafia sensações; a coloração forte de um país luminoso contrasta com o negrume da fisionomia das almas e o interior sombrio, “sustido e clandestino”, das habitações. A cor retoma a pujança da alegria no final da história, com a ansiada Primavera, com a reconciliação do povo com as cores da pátria, com o júbilo da Liberdade resgatada. São páginas para as crianças desatarem os seus "porquês?" e para nós as ajudarmos a construir as suas respostas.

Este O Tesouro, de Manuel António Pina, teve a 1.ª edição em 1994, pela Associação 25 de Abril e pela APRIL, com o alto patrocínio do Presidente da República, o Dr. Mário Soares.
Em 1999, assinalando os 25 anos do 25 de Abril, O Tesouro deu origem ao filme Se a memória existe, de João Botelho, (selecção oficial da secção New Territories do Festival de Cinema de Veneza de 1999).



© Teresa Sá Couto