quinta-feira, 31 de março de 2011

Celulose, poesia premiada de Paulo Assim

Celulose, primeiro livro de poesia de Paulo Assim, e Prémio Nacional de Poesia da Vila de Fânzeres 2010, reúne 53 poemas curtos de respiração ampla, batidos por ventos vários e inconstantes, tecidos de vozes e ecos, a mostrarem que, pela mão hábil da metamorfose, o alfabeto do barro é inexaurível.

Paulo Assim, pseudónimo de Paulo Carreira, nasceu em 1965. Em poesia, além deste Celulose, tem participações nas I, II e III Antologia de Poetas Lusófonos, das Edições Folheto, de Leiria; em prosa, tem publicado o romance A Quinta-feira dos Pássaros, prémios Paul Harris 2005 e Gaspar Fructuoso 2009.

«Busco a flor das palavras raras, a medicina do seu silêncio. /Busco a flor das palavras simples, o silêncio da sua pureza. /Busco as palavras que não te consigo dizer em voz alta», lê-se em «Este poema é uma montanha», poema que nomeia características da poesia de Paulo Assim e indicia o método do fazer poético. Feita de palavras claras, puras e imagens universais, esta poesia é, todavia, de uma simplicidade ilusória, porquanto a combinação das palavras, a sua urdidura, obscurece-lhe o sentido, tornando-a secreta. Na mesa do poema, a palavra, essa «centopeia» de corpo interminável, é metamorfoseada em frutos que esperam pela faca para serem cortados ao meio, e assim se perpetuarem, uma dissecação secreta, silenciosa e voluptuosa que anima todos os poemas. Ainda, e porque as palavras são sangue e «o sangue é a roupa que nos veste», há que colocá-las no «Estendal», porquanto estas querem-se «ao sol. /A poesia quer-se ao vento». Se a limpidez vocabular possibilita imediata adesão do leitor, o carácter secreto lança o diálogo. É neste dialogismo talentoso e iluminado que surgem poemas como este:


Dizias que eras capaz de imitar uma árvore de fruto.
E como eu não acreditava, um dia fizeste isso: nua,
fincaste-te ao chão e criaste uma cabeleira de raízes, depois
ergueste os braços, abriste os dedos em forma de ramos
e deixaste que as folhas te pintassem de verde.
Absorveste todo o sol no ventre, floriste.
Por fim frutificaste o corpo:
agora és um voluptuoso dióspiro
no frio de Janeiro. (p.18)

No seu exercício de liberdade, a poesia agarra-se com força ao instante, apanha frases no ar que o poeta modela como o oleiro faz à argila vermelha, com todos os dedos «até a lama escorrer como sangue».

Mas «de quantas mãos se faz um pão de argila?», escreveu o poeta Ruy Duarte de Carvalho; Paulo Assim mostra-nos que o alfabeto do barro se faz de ecos e bramidos, e procura desvendar as suas anatomias, dito assim: «Há vozes que se desdobram em línguas de fogo e queimam a garganta /quando se soltam entre quatro paredes: e morrem de claustrofobia/ […] ouvimos sons subterrâneos que vagueiam pelas brechas da pedra/ […] Somos ocos por dentro, somos feitos de ecos, ecos, ecos…». É esta condição de eco que enforma o Eu polifónico, no qual a maioria dos poemas se centra; um Eu que ouve a «música submersa» que embala as «águas dos rios sem pontes» e «as faz enovelar os corpos frementes», os ecos das crianças na aldeia da infância, as vozes dos mortos que lhe falam pelo «murmúrio do vento», as vozes dos antepassados que o «ensinaram a caminhar» em trilhos que vêm dar ao poema: a Avó, «velha andorinha»; a Mãe, com a sabedoria das esperas; o Pai, «árvore e pássaro» e o legado do «relógio de silêncio».

Dissecando os ecos para os alojar na palavra certa, o poema vai-se construindo «mais a sul», onde a memória escava até se reinventar nos cinco sentidos:

Tiveste o canto das cotovias na mão
e os cachos de uvas maduras de fim do Verão,
ceifaste os campos de espigas promissoras
e ouviste o êxtase das velas dos antigos moinhos.
Sabes que o silêncio das vinhas é feito de sol
e sabes que as mãos que colhem os cachos
têm na pele os estigmas de Agosto. Sabes ainda
que os pés que andam e dançam no largo do coreto, os pés
que pisam o barro, o chão, são a primeira língua dos homens:
degustam o vinho antes de o ser […] (p.44)

Se o poema germina do barro e fermenta nas mãos, a noite surge a encaminhar os olhos do poeta que furta o azul nocturno, «cor efémera com o preço dos diamantes /incrustados na cauda rebelde dos cometas /e à qual só os vagabundos dão valor. / (E os poetas)», e acentua o drama da criação manifesto na mão que tacteia a luz arisca das palavras, no som do “poema arrancado a ferros” e no espelho que, ímpio, testemunha tudo: «Olho o espelho e não me vejo. /Vejo a mão vazia avançando pela noite dentro.».

Rica nos processos com que se problematiza, a poesia de Paulo Assim é também habilíssima em enredar o leitor na construção do objecto artístico – «me disfarço de oleiro para me libertar, ou antes /para libertar as peças de cerâmica que se materializam na argila que somos. /Quero pensar que te libertas quando te disfarças perante mim; /por isso disseste: o disfarce é… e partiste como uma bela ave /deixando-me só – à luta com o barro, com a frase» – ao mesmo tempo que lhe mostra o desassossego fecundo do poema ter «vista para um castelo de areia», o que nos remete para estes versos de Manoel de Barros: «Todos os caminhos - nenhum caminho /Muitos caminhos - nenhum caminho /Nenhum caminho - a maldição dos poetas.».

«A força mais guardada que há na luz /só se consente em superfícies raras», escreveu, ainda, Ruy Duarte de Carvalho. As 63 páginas deste Celulose têm o apanágio daquelas superfícies raras, locais dos encontros inefáveis: da palavra com a poesia e do leitor com o poema.


Paulo Assim, Celulose; Lugar da Palavra,  2010
 
© Teresa Sá Couto

domingo, 27 de março de 2011

Resumo da poesia de 2010

No ensejo do dia Mundial da Poesia, chegou ao mercado o Resumo – a poesia em 2010, uma edição da Assírio&Alvim e Fnac, ao preço de 4€ que revertem na totalidade para a AMI. À semelhança do livro editado no ano passado, este Resumo pretende coligir os «melhores poemas publicados» durante o ano que findou; a escolha dos poemas é de José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas.

Entre os 44 nomes de poetas, encontramos Adília Lopes, António Barahona, José António Almeida, Renata Correia Botelho, Vitor Nogueira (que já estavam no compêndio de 2009), Armando da Silva Carvalho, Gastão Cruz, Helder Moura Pereira, Margarida Vale de Gato, Pedro Tamen e Teresa Jardim. Não estão contemplados os poetas Nuno Dempster (que publicou Londres) nem Amadeu Baptista (que publicou O Ano da Morte de José Saramago), o que só se pode aceitar por serem ambos títulos de poema longo.

Em Nota Editorial, assinada pelos quatro autores que seleccionaram os textos, apresentam-se razões para esta «colheita do ano» bem como o desejo da continuidade deste trabalho de divulgação nos próximos anos. Uma ideia, convenhamos, muito interessante, pelo gesto de solidariedade, pelo conteúdo poético, pela beleza do livro e pelo preço que possibilita o acesso à poesia mais representativa que actualmente se produz.

Dois textos:

Enquanto ponto a ponto coso
uma coisa a outra coisa
tornando um o que era dois ou mais
morreram tantas tantas pessoas

e eu também morri
deixando as minhas mãos
e as partes que cosi.
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Pedro Tamen, p.140

**
O acto de ler reabre feridas. Nos livros
em que isso acontece, com frequência,
poderia ao menos haver um aviso na capa;
assim como se faz com as carteiras de tabaco,
embora se saiba que poucos deixam
de fumar
por isso.

Teresa Jardim, p.156

domingo, 13 de março de 2011

literaturas ibéricas na Suroeste

A dualidade Portugal e Espanha é afinal o segredo da vitalidade da península ibérica e da sua civilização.
Portugal e Espanha são dois opostos e não dois rivais. Os opostos são complementos iguais de um todo. Este todo está representado geograficamente pela península ibérica e em espírito pela civilização ibérica. Estas são palavras de Almada Negreiros, e é com elas, impressas na contracapa, que nos surge a Suroeste, revista de literaturas ibéricas.
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Feita em Mérida, e distribuída entre  nós  pela Assírio & Alvim, a revista, dirigida por Antonio Sáez Delgado, é uma edição notável, pelo grafismo, materiais utilizados, textos, fotografias, ilustrações.

Em poesia encontramos textos de Antonio Gamoneda, Fernando Pinto do Amaral, César Antonio Molina, Xosé María Álvarez Cáccamo, Antón Castro, Francisco Ferrer Lerín, Francisco Javier Irazoki, Manuela Parreira da Silva, Jaume Subirana, Ruy Ventura, Juan Antonio González Iglesias e Almada Negreiros com o poema Litoral acompanhado de pintura de Luís Manuel Gaspar.
Em narrativa surgem textos de Mário de Carvalho, Fernando Aramburu, Xuan Bello, Teolinda Gersão, Gonçalo M. Tavares, Possidónio Cachapa, Rita Taborda Duarte, João de Melo e Félix Romero.
Há ainda uma secção de Ensayo – onde, além do texto “Ojeadas al porno”, de Javier Codesal, se abordam Miguel de Unamuno e Antero de Quental, por Steffen Dix, Fernando Pessoa e Iván de Nogales, por Pablo López, David Mourão-Ferreira, por Joana Varela – e um escaparate de libros com críticas a alguns títulos editados cá e lá, durante 2010.

A Suroeste nº1 encontra-se nas melhores livrarias e custa 12 €.
Na fotografia, imagem da capa, contracapa e interior.