domingo, 29 de março de 2009

Carlos Paredes - O menino da guitarra encantada

Símbolo da Liberdade, o mês de Abril não poderia começar melhor. A abrir, logo dia 2, celebra-se o Dia Mundial do Livro Infantil. Associo-me às celebrações com a história do «menino que se apaixonou por uma guitarra», a mais bela homenagem a Carlos Paredes, quase a completarem-se 5 anos da sua morte.

Mas como pode um pequeno livro de literatura infanto-juvenil ser a mais bela homenagem à lenda da guitarra portuguesa? Mostrando aos miúdos que a genialidade só pode ser consequência do amor; permitindo-lhes levar para o futuro o virtuosismo daquele que um dia disse: “Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco... E eu não compreendia isto, mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas".

O livro O menino que se apaixonou por uma guitarra – Carlos Paredes segue cronologicamente os passos físicos e o dedilhar apaixonado do compositor que nasceu em Coimbra a 16 de Fevereiro de 1925 e morreu no dia 23 de Julho de 2004, após 11 anos de agonia que o afastaram da guitarra.

É escrito, com uma ternura infinita, por José Jorge Letria, que pretende eternizar a memória do amigo, escolhendo para isso os únicos interlocutores capazes de o fazer: as crianças. Para elas, a narrativa é encantada e certamente vão fazer muitas perguntas. Para nós é um revisitar comovente e, indubitavelmente, vamos gostar de lhes responder.A narrativa apresenta-nos Carlos Paredes desde a sua meninice, numa família que já conhecia os acordes da guitarra e da poesia. Com a oferta da primeira guitarra – “bisneta de outra vinda de Inglaterra dois séculos antes”, mas que falava português, com o som do Mondego e do Choupal” – começa a paixão da sua vida. Descobre-lhe os “Sons de oiro e trigo” e devota-lhe juras “de amor com a timidez dos grandes apaixonados”.

Segue-se a sua partida para Lisboa, aos nove anos de idade, para junto do “rio largo e muito azul”. Enquanto “os dedos cresceram, e os indomáveis sonhos”, o menino/homem observava a azáfama dos cacilheiros, os golfinhos, o “Voo circular das gaivotas". Cresciam a timidez, a humildade, a distracção e a delicadeza na mesma proporção do amor à sua guitarra. Só a ela, por ela e através dela se desvelava e comunicava com o mundo: “foi sempre com a bela guitarra que preferiu conversar e trocar promessas de fidelidade e eterna ternura. Amores assim não se explicam, porque talvez façam parte de um destino secreto que só as estrelas conhecem lá no fundo.”

Não foram esquecidos os momentos tortuosos de afastamento da sua “amada guitarra”, como o tempo que esteve preso e os últimos anos da sua vida, atraiçoado pela doença. Não é esquecida a sua partida, “entre gaivotas e nuvens, sobre as águas do Tejo”, sempre ao som de uma guitarra encantada que jamais se calará. As ilustrações são de José Emídio e compõem a caixa de som e sonho que é este livro. Simples e esplendorosas, recriam afectivamente os locais, as expressões inefáveis de Carlos Paredes, pintam sensações e emoções, dão forma à Saudade da guitarra e à nossa saudade da sua música.

Estão de parabéns os autores e a Editora Campo das Letras, que nos cederam estas doze cordas, estes doze pares de asas, mas estão sobretudo de parabéns todas as crianças que os tomem, porque com eles aprendem a voar. Obrigatório, pois, procurar-se este livro.

O Menino que se Apaixonou por uma Guitarra - Carlos Paredes, José Jorge Letria / Ilustrações de José Emídio, Campo das Letras, Porto, 2004

© Teresa Sá Couto


quarta-feira, 25 de março de 2009

As mãos que nos dá Manuel Gusmão

«Corta a minha mão e escreve com ela um poema que seja teu», escreveu o poeta Manuel Gusmão, no livro «Migrações do Fogo», livro que lhe deu o «Prémio Literário D. Diniz 2004». No ano passado, o poeta trouxe-nos «A Terceira Mão», a mão com que o leitor manufactura a sua alma, guiado por uma poesia única e enorme, que perscruta e rasga o caminho interior mais sombrio, poesia de ecos e labirintos humanos, que desvela o homem como «o migrante de si mesmo»: a mão «que te empurra / para território desconhecido e aquela / que te guia em terra de ninguém: no pavor /que abala a noite do teu corpo, /que abalado fora antes pela alegria».

Juntamente com esta recolha poética, e também com a chancela da Editorial Caminho, chamo a atenção para o «Poesia e Arte – A Arte da Poesia», livro de homenagem ao poeta, e que colige textos vários, entre entrevistas, poemas e ensaios, uma ajuda preciosa para se entender a poesia de Manuel Gusmão. O trabalho de antologia coube a Helena Carvalhão Buescu e Kelly Basílio, nomes reconhecidos pelo trabalho notável na organização de outros compêndios do género que tenho vindo a aconselhar, pela sua qualidade e valor inestimável para a cultura portuguesa. Entre os autores que colaboraram neste livro de homenagem ao poeta e ensaísta nascido em Évora em 1945, figuram Fernando Guerreiro, Fernando J. B. Martinho, Gastão Cruz, João Barrento, Joaquim Manuel Magalhães, Maria Andresen Sousa Tavares, Maria Velho da Costa, Nuno Júdice, Silvina Rodrigues Lopes, Urbano Tavares Rodrigues, Vasco Graça Moura e Vítor Aguiar e Silva.

A Poesia da Inquietação

Segundo o próprio autor, a sua poesia está repleta de «traços muito negros, no modo como são abordados o mundo e os afectos». Poesia negra, sombria, «intermitências da sombra e do coração», ignescente e inquietantemente verdadeira, assim patente em «Migrações do Fogo»: «Por terra muito antiga – e contudo chão recente / filha de um fogo que esfriou e a abriu nas águas, / andámos hoje»; «Depois atirados para um canto / desta ou da outra casa, há esses corpos que não / se entendem: repetem-se mas não se ajustam.»; «com o comando vais mudando as imagens / à espera que elas próprias te digam o que ali procuras. / No ecrã da insónia, as imagens são labaredas claras / deitando as sombras sobre a mesa do trabalho que / sonha o filme. O pesadelo bate com a noite nas janelas».

Estas "Migrações" fazem-nos leitores do eco de um eco: o poema que «traz consigo a voz que ele próprio / escreveu: essa voz emprestada / que um dia te inventou para o amor: / a razão enquanto ardia, a única razão.». É do poeta o dom da palavra e do incentivo que rasga o caminho mais sombrio da alma. Cabe ao poeta a dor desse desbravar:«Sem outras qualidades que não a de se ter perdido / e a de perdendo-se continuar, o migrante dança.(…) Enquanto tu lês (...)Tu vês: o migrante beija a morte na boca.».

A mão do mestre

As mãos talham a memória. «As mãos lembram-se: recordam o coração». Com as mãos ligamo-nos ao mundo e reinventamo-lo, diz-nos Manuel Gusmão, enquanto nos ensina a perscrutar as sensações que elas recolhem, os gestos que elas executam, autobiografando as suas próprias mãos:

Repetes, recapitulas, recuperas esse gesto antigo:
Estender as mãos em frente –
não para a memória mas para a vida,
não para o sonho mas para a invenção
num gesto ou numa teia de gestos quase
automáticos,
quase pensativos;
Ver pelas mãos o halo da lua que alucina –
Poisar as mãos na madeira da mesa ou
na pedra do parapeito ou no pescoço alto
por onde subia o canto –
E de súbito há uma coisa que descobres
onde a não esperavas: quando escrevendo o «Soneto»
de Cantata ela calculava o peso que deveriam ter
as palavras para poderem voar;
quando o poema era levantar a torre do meu canto
e recriar o mundo pedra a pedra
.

O poema que troca de mão

Já sobre «Migrações do Fogo», noutras ocasiões, referi que a poesia de Manuel Gusmão faz-se com gestos primordiais, «Por terra muito antiga – e contudo chão recente», convocando o leitor para o seu interior de vozes, corpos outros que desaguaram no corpo de agora, ecos e espelhos para encontrar o seu reflexo, a sua inquietação, e o poema troca de alma, troca de mão, sempre à procura do sítio para habitar: «Que podem os versos saber /desse sítio que o papel não chega para estancar.»

«Quem lê é levado pela mão nesse “movimento” que os textos pedem», escreve Paula Morão no texto «A inquietante arte de escrever», compreendido no livro de Homenagem; «Entendemos agora que / quando cruelmente triunfamos / é fugaz o furor voraz dos músculos / e por isso terror e alegria, então / e hoje, nos trespassam», escreve, por sua vez Gastão Cruz, que também recolheu os ecos das palavras de Manuel Gusmão. «Onde está o mundo quando não / estamos a olhar?», qual a sua vibração, que nos enreda, fugazes e transitórios, na «arquitectura do mundo», no movimento infinito das coisas? O poeta que nos desafia dá-nos a hipótese da terceira mão, do desequilíbrio e do desassossego, mas também a do amparo, pela luz com que nos alumia:
(…)
Quando não estás a olhar é o mundo
que te olha. Nunca saberás o que vê.
Obscuramente imaginas que testemunhará
por ti, mas ignoras de todo – e que importa? –

onde, a que propósito e perante quem.


Manuel Gusmão, Migrações do Fogo, Editorial Caminho, Lx 2004

Manuel Gusmão, A Terceira Mão ; Editorial Caminho, Lisboa, 2008

Poesia e Arte – A Arte da Poesia, Homenagem a Manuel Gusmão, vários autores; Editorial Caminho, Lisboa, 2008

© Teresa Sá Couto

quarta-feira, 18 de março de 2009

Dia Mundial da Poesia

A ciência desenha a onda; a poesia enche-a de água. - Teixeira de Pascoaes.

Quando um dia acabem os poetas...Há-de...ser tudo uma grande sensaboria. - Adolfo Casais Monteiro

Dia 21 de Março é o dia Mundial da Poesia. Sabe-se que, entre nós, as primeiras composições poéticas são anteriores ao séc. XII. Em Galaico-português, a alma encontrava a forma perfeita em versos melódicos e repletos de saudade. Falamos das cantigas de amigo que são, ainda hoje, um registo de verdade e emoção profundas. Os trovadores iniciavam, assim, a “saga maldita” da inquietação, porque a ousaram aliar à palavra. Nascia a poesia portuguesa.

Sem os poetas, teríamos chão seguro e paz nas veias. Então, porque buscamos exactamente o oposto? «Quando um dia acabem os poetas /há-de ser o mais belo dia deste mundo. /Hão-de cair do céu as divindades /sair do subsolo os medos e as sombras /reduzir-se ao tamanho natural /as coisas que eles aumentam e diminuem. /Há-de – não tenham dúvidas – /ser tudo uma grande sensaboria.» (Adolfo Casais Monteiro)

O que é a Poesia?

A poesia aparece-nos como uma negação: nega os lugares comuns, subverte a ordem das coisas, recusa o conhecido, procura o extraordinário: «A minha poesia é talvez esta luta contra paredes, muros e pedras – na tentativa de atravessá-los, em busca de um universo perdido…» (José Gomes Ferreira).

Na temática do amor, a negação surge como recusa da ausência, produzindo delírios encantados: «Agora, dormes, nua, /Sobre os lençóis – distante e ao mesmo tempo, aqui. /E essa réstia de lua /Vem da Lua, ou de ti?» (José Régio).

Sendo a descoberta a alavanca da inquietação, está criado o sangue e a correnteza que brotam do silêncio e alimentam a poesia: «eu quero a ânsia da onda/ o eterno rebentar da espuma» (Mia Couto); ou ainda, «O valor das palavras na poesia é o de nos conduzirem ao ponto onde nos esquecemos delas. O ponto onde nos esquecemos delas é onde nunca mais se pode ter repouso.» (Natália Correia).

A poesia é arroubo e êxtase. Para isso, surgem as antíteses: o sujeito elabora a poesia com lágrimas e risos, felicidade e dor, ódio e amor. Afinal, a Poesia é a Alma, com todos os seus recantos e labirintos: «Não, não posso adiar este abraço / que é uma arma de dois gumes /amor e ódio.» (António Ramos Rosa); «Anda sempre tão unido /o meu tormento comigo /que eu mesmo sou meu perigo. /E se de mim me livrasse, /nenhum gosto me seria; /que, não sendo eu, não teria /mal que esse bem me tirasse.» (Camões).

O Destino de Ser Poeta

Ser poeta é cumprir um estranho Destino: «Poeta sou! Cumpro o meu fado, estranho / Como o dum santo ou um louco: /Só posso dar de mais ou muito pouco, /Que é tudo quanto tenho.», e ainda, «Ser poeta é achar deleite /Nas suas próprias feridas. / Ai dos seios que dão leite /A bocas tão iludidas!» (José Régio)

Ser poeta é lançar um braço além-terra, sonhando a asa, para atingir um pássaro qualquer, ou "aquela voz" que não é voz, mais inflexão, interna, e secreta: «Enquanto na escola me ensinavam /a exactidão da bilha verde /para a minha boca/de-não-ter-sede... /...no papel que via? /Uma bilha torta /onde apodrecia /a água para a outra boca, /a secreta, /de sede intacta /no fundo da saliva. / E foi assim que me fiz poeta. / Com esta exactidão inexacta.» (José Gomes Ferreira)

Finalmente, diremos que ser poeta é, com «Voz activa», atirar sementes ao vento, ânsias e fomes, e congeminar o desassossego: «Canta, poeta, canta! /Violenta o silêncio conformado. / Cega com outra luz a luz do dia. /Desassossega o mundo sossegado. /Ensina a cada alma a sua rebeldia.» (Miguel Torga)


(dedicado a todos os poetas)


© Teresa Sá Couto

sábado, 14 de março de 2009

A Nação dos Chefes e dos Auxiliares

No dia que se seguiu às eleições, o senhor kraus, que escrevia crónicas num jornal, apontou no seu caderno: «No contacto com a população mais simples, alguns políticos dão beijos na cara como quem do cais diz adeus ao barco que parte para nunca mais voltar».

Assim se vê a oleada engrenagem dos Senhores do Bairro, de Gonçalo M Tavares, agora ainda mais afinada pela sátira aos tempos que correm – «para trás?, para o lado?». Perto da roda-viva de processos eleitorais, a narrativa d`«O Senhor Kraus», tendo a actuação política como uma brincadeira de crianças, purga-nos a alma: «Quando um político nos fala do céu, e aponta o dedo para o alto dizendo, vêem?, é aí, nesse momento, que devemos olhar atentamente para os objectos que ele guarda na cave.».

Os Chefes da Nação e o seu séquito de Auxiliares subservientes, deslumbrados com os métodos com que se convencem eleitores, constroem o teatro cómico que é a relação dos políticos com a população, onde todos somos rodas dentadas do burlesco. Directamente do olhar arguto, divulgado com humor original, de um autor que continua a surpreender.

Sobre o processo eleitoral, escreve o senhor Kraus: «Depois de qualquer eleição a sensação dos políticos – quer tenham perdido quer tenham ganho – é a de que o povo mais profundo acaba de entrar num comboio, dirigindo-se, compactamente, para uma terra distante. Esse povo voltará apenas, no mesmo comboio, nas semanas que antecedem a eleição seguinte. Esse intervalo temporal é indispensável para que o politico tenha tempo para transformar, delicadamente, o ódio ou indiferença em nova paixão genuína.».

Os Chefes construídos pelo senhor Kraus não têm nomes. Nem os Auxiliares. Nem «Os Outros», os eleitores, os que não são fascinantes para os primeiros e segundos, sim Necessários. Não têm nomes, por ser dispensável. Reconhecem-se os das duas primeiras categorias e, como a uns seguem-se sempre outros, e sendo todos tão iguais, dar-se-lhes um nome é supérfluo. Talvez isso explique a dificuldade que a maioria dos portugueses tem em saber o nome, por exemplo, dos ministros da Nação. Sabem que são ministros, como eram os antecessores e os que se lhes seguirão. E isso basta-lhes. Quanto aos últimos, «Os Outros», conservam o seu anonimato original na Nação de Chefes e Auxiliares. É nesta trilogia de “anónimos identificáveis” que se joga o jogo da reflexão e da sátira sobre a política que se faz, e se estende o contentamento do leitor.

Como os chefes lidam com o país

O Chefe aparece com aborrecimentos que «vinham sempre lá do fundo», quase como um decreto-lei. Defendia o instinto que nascia no estômago e subia até a garganta…melhor, ao vocabulário, conferindo-lhe uma força invulgar: «não é inteligência, que ela não é capaz de entender os meus discursos. Eu falo à população!». População que ele não conhecia. Os Auxiliares zelosos iam oferecendo ao Chefe mapas do país «para ele deixar de confundir tudo com o seu contrário». Porém, o Chefe era distraído, e ora perdia-os ora «punha-os debaixo de uma garrafa de vinho, para não sujar a mesa» ora assoava-se a eles, como lenço de socorro à constipação.

Descartando os mapas, o Chefe defendia que «o mapa mais real do país era o aparelho de televisão que tinha em casa». Com o país no botão da TV, era imprescindível ter todos os canais ligados. Enquanto ia assim “aprofundando” o conhecimento do país, um Auxiliarzinho alertava-o para a importância de saber geografia: «Se souber geografia as suas ordens podem ser exaustivas, ao metro quadrado» e assim não deixar nada «fora do benfazejo alcance das suas medidas politicas». Uma luz para o Chefe que nunca tinha pensado naquilo. As inaugurações onde se inaugura a figura do político, entenda-se, se inaugura o invisível, é outra boa estratégia do Chefe: «Inaugurar e ser a coisa inaugurada ao mesmo tempo» e depois fazer passar a mensagem: «tudo o que não se vê fomos nós que fizemos (…) porque em relação àquilo que se vê há sempre contestações».

Também o movimento e a mudança são imprescindíveis a quem quer ser Chefe. Por isso, ele mandou os seus Auxiliares sentarem-se numa cadeira e bater os pés no chão até às eleições. Para se consolidar a mudança, o Chefe seguiu outro «conceito estratégico»: pediu aos auxiliares que trocassem de lugares nas cadeiras a cada hora ou hora e meia, alternando, vice-versa, «sempre a bater com os pés no chão».

Como estratégia para estas estratégias dos políticos, o senhor Kraus adverte: «todo o número exacto atirado aos olhos da população insegura e distraída produz cegueira. Porém, se quando esse número for atirado nos fingirmos distraídos, imitar certos actores cómicos do cinema mudo, e aproveitar esse exacto instante para apertar os cordões dos sapatos», o número passa-nos por cima e «já não nos afectará a visão. (…) Com a visão intacta poderemos então assistir ao lamentável espectáculo das ruínas incoerentes, daquilo que parecia, ainda há instantes, ser um número exacto, convincente e decisivo».


O Senhor Kraus, Gonçalo M Tavares, ilustrações de Rachel Caiano, Editorial Caminho, Lisboa 2005


© Teresa Sá Couto

terça-feira, 10 de março de 2009

Recados de amor - poesia de Fernando Rente

«Quando um homem /abraça alguém /com a pureza de uma ave /de um peixe de uma flor /inventa /o ouro do mar /o abrigo do céu». Assim escreve Fernando Rente, em Amor do Mar e Outros Poemas (2004-2005), cantos distantes, «onde o mar e a terra pernoitam», donde tudo principia, onde tudo regressa e tudo se explica.

Fala-se de pureza, verdade e serenidade que consolidam a existência humana; nomeia-se «uma ilha situada aquém e além de todo o horizonte», com recados do vento que nos falam de amor: «Longe, nas brancas /ondas do escuro mar /surges a nado /cabelos molhados e amados /lentamente /o desejo cresce /nadas para a costa /onde meu corpo te espera /teus dedos, tuas mãos /molham-me /de água marítima /teu beijo de sal é amor».

Trilhar este percurso de Fernando Rente é seguir os passos de Afrodite que cria o mundo «gloriosamente profano que nos coube», refere Mário Cláudio no texto introdutório, intitulado «Os passos de Afrodite», acrescentando: «Cingido por agrura e esperança, atento a vozes interiores que serão o sopro dos espíritos, escutará Fernando Rente sempre “o vento que desenha /teu corpo”. Em tempo de desamparo converter-se-lhe-á a reminiscência de Afrodite em sustentáculo de esperança. E tomado de uma certeza única, segredará ao nosso ouvido, apenas ao nosso ouvido, esse mistério maior, “Aprendi / a comer o silêncio /dos que não amam”».

Nascido em Penafiel em 1933, Fernando Rente começou a escrever poesia na década de 60. A sua ligação às artes plásticas – curso de Pintura na Escola Superior de Belas-Artes do Porto – explicará a forma da sua poesia que parece escorrer em telas com a pureza da aguarela e com o mistério da suavidade da cor, mesmo para desenhar o ímpeto e o fogo do desejo, mesmo para deter a pungência da perda, como a seguir se comprova.

São palavras de «espuma e recados dos peixes», na garupa do vento que desvela o enredo amoroso; é a indizível sensualidade de uma poesia decantada, fugaz e perene, suave e intensa, de toque, aromas e segredos ciciados ao ouvido:

Espero-te como o marulhar
das tentações das areias e do mar
esperam o peito das gaivotas

esse rumor é a tua presença
e o voltar aos nossos dias
desfolha-nos em abraços

o sentir da tua vinda
alertou-me
embalando meu corpo
até que tua noite me tocou

***
Conhecemo-nos pelos teus olhos
o amor nasceu
com um sorriso
unimos as mãos
o rosto o flanco

não tínhamos um lar
não tínhamos um leito

o meu abraço
cobriu-te os ombros
quando nasceu a manhã
encontrou-nos nas ruas
cansados
mas felizes

***
Ouvir sem ver
solidão triste
querer e não ter
água que não
se bebe nem abraça
ensinar com o tempo
as mãos desenhar
teus lábios soletrando
letra a letra
o fogo de seu ser

***
Conheci o amor
que não existe
fiquei triste

dias longos
terras desconhecidas
só o sonho ama
o que existe

***
Quando partires irás
pelo mar Atlântico
as ondas são meus abraços
o sal, o sabor dos lábios
sei que ilha a ilha
continente a continente
terra e mares oceânicos
voltarás um dia, uma noite
cheia de gotas de espuma
cheia de beijos de lágrimas
o olhar fixando um rosto
velho, de traços vincados

* * *
O fogo do cimo
os rochedos têm fome
do abraço das tuas águas
de espuma e recados dos peixes

com algas de areia
teci uma rede
para amar os seres marinhos

nós dois neste mundo
mentido amamos
a liberdade dos homens

***
Contigo vivi
junto ao mar
na casa da água

da última das ondas
descámos com as gotas
até à profundidade das tuas
montanhas submarinas

nesse leito de água
concebemos um filho
que nunca tivemos

***
O amor que tive
Erguendo-se pelo mar
Como o voo de pássaro
a ti me levou

Pernoitámos
os olhos fixaram-se
os lábios tocaram-se
e fugimos
um do outro

Amor do Mar e Outros Poemas, Fernando Rente, Campo das Letras, Porto, 2007


(to Artur)

© Teresa Sá Couto

domingo, 8 de março de 2009

Natália Correia, uma força superior

Incontornável: falar de Natália Correia é entrar em revoada. Mulher de voz diversa, rebelde e intelectualmente avassaladora, de «Espáduas brancas palpitantes:/ asas no exílio dum corpo», «Por vezes fêmea. Por vezes monja./Conforme a noite. Conforme o dia», cumpriu-se na palavra e pela palavra, estendida em poesia, romance, teatro, ensaio, memórias, relatos de viagem, registando sempre a peculiar forma de viver, indignada e insubmissa.

«Além de mim age um ignotus que ainda estou para saber o que é», dizia Natália para nos explicar, assim inexplicavelmente, a natalidade da sua criação genial. Concretamente, sabemo-la a feiticeira que se adiantou ao tempo e que continua a deslumbrar-nos com a sua verve original e inconfundível que nos atira na odisseia da existência.

O livro de Natália «Contos Inéditos e Crónicas de Viagem» é uma exibição, mais uma, da força superior e da escrita maior da autora. Prefaciado soberanamente por Zheto Cunha Gonçalves, é o 3º volume da colecção, por ele dirigida, que colige a obra jornalística de Natália Correia jamais editada em livro. Uma surpresa imperdível.

O livro de inéditos, editado pela Parceria A.M.Pereira, está dividido em duas partes, com textos escritos entre 1948 e 1985 e dispostos de forma cronológica. A primeira parte contém a estupenda lavra ficcional de Natália, em sete contos, e a segunda, mais de cariz jornalístico, traz-nos encontros com diversas personalidades, nacionais e estrangeiras (Norton de Matos ou Kadafi, por exemplo), além de narrativas de viagens. Contudo, em todos os textos, irrompe a surpresa narrativa, rutila a poesia, produto de um ministério de assombro literário; todos os textos nos dão «notícias do homem», escritos com «êxtases e intemperanças do sentimento», segundo palavras de Natália, agora relembradas por Zheto Cunha Gonçalves que, no prefácio, contextualiza a autora e dá-nos uma leitura de cada um dos contos inéditos.

Defende o prefaciador, e não poderíamos concordar mais, que «uma fortíssima carga poética subjaz e alimenta, da primeira à ultima linha, a par da ironia, ora branca como a magia, ora negra como o mais negro, cáustico e corrosivo humor, a narração e a factura desta escrita – nua e límpida como a desobediência que advém da rebeldia e da paixão, do encantamento do mundo e da intransigência para com a estupidez que é a falsificação da vida submetida às leis de moralismos utilitários.». A factura paga por Natália por deter esta inexcedível força da natureza – e que por se sentir um ser livre interveio conforme a sua consciência, sempre com coragem e frontalidade –, agrilhoou-a no epíteto de «excêntrica», do qual jamais se liberta, e que fez com que se desprezasse a sua criação artística. À adversidade do seu tempo, Natália responde com a ética de se inventar constantemente, e ora se rebela e se agita, ora se recolhe e medita, sempre produzindo palavras alquímicas.

«Feliz» é o título do primeiro conto e da personagem que ele edifica: uma mulher, «a idiota da região», que «nascera aleijadinha do juízo» e ostentava sempre um sorriso no rosto. Sozinha no mundo, Feliz encontra em Bento Gaiato o «único amigo, o único animal humano que a acariciara» e, mesmo sendo «coisa ruim» que se aproveita dela, Feliz, numa prova de gratidão assume o assassinato praticado pelo seu Bento. A crítica corrosiva «do português médio» irrompe em «Filme Tragicómico da Vida nas Praias em 3 Partes» com «heróicas virgens de bairro», «aves tontas» com ambições das «stars hollywoodenses» e de «um possível marido». Revelam-se «os títeres» de sempre, traçam-se retratos vibrantes da «urbe trágica e ridícula que se petrifica numa lágrima de Charlot».

Repletos de desamparo e desenraizamento, os contos «Um Homem Enamorado do Outono» e «Esplanada» trazem vozes de pessoas que «não são mais do que solidão», loucura e demência, e desatam-nos emoções antiquíssimas, fulgurações de sangue intemporais: «a música sai dum violino roído pelo tempo e o cego do violino é apenas mais uma sombra dessa tarde que se esvai num sopro de amargura.» Estupendamente inusitados, ou não fossem natalianos, surgem os contos «Barbo», «O Espelho de Anaita» e «Memórias de Uma Tia Tonta», este último, com um monólogo da personagem dirigido a Jesus, uma demência hilariante, construída com singular engenho narrativo.

As «Crónicas de Viagem», o conjunto de apontamentos jornalísticos, não perdem o arroubo da escrita dos contos, enleando-nos no deslumbramento da leitura. Assim é quando regista a sua viagem turística ao reduto do pintor El Greco e, como ele, arranca à sua arte «as expressões mais vivas e originais».
Na Líbia, “descasca” a imagem mítica de Moammar Kaddafi, o «controverso ungido da Unidade Árabe», em diversos pontos: o puritano, o misógino, o fanático, e, quanto «o mito se faz carne», a figura carismática daquele líder. Regista a sua visita a Moscovo, à «Mãe heroína» em plena «Perestroika».

Em Londres, numa marcha anti-atómica, encontra-se com Bertrand Russel, «o pacifista mais teimoso do mundo» um homem «radicalmente livre» e parece mostrar-nos no seu próprio reflexo: «a liberdade não é o privilégio de nenhuma ideologia mas antes aquilo que permite ao homem denunciar as pseudo-liberdades com que as ideologias nos atraem.».

Em Ponte de Lima, «numa viagem recreativa», descobre a eterna juventude do General Norton de Matos que mostrou «alta impetuosidade patriótica, que galvaniza o mais céptico apátrida », numa conversa «em que as horas rolaram nas fulgurações do espírito jovem».

Natália Correia, que soube a solidão do desprezo e das portas fechadas, soube olhar a solidão do Alentejo, esse «meio sem ponta» que espera, escrevendo-o desta forma:

Campos de ouro… muita terra… campos lilases… muita terra… Aldeias cenográficas de peças realistas com um toque Iorquiano… tão realistas que chegam a ser irreais… Homens atarracados que descobriram a atitude que convém à situação humana de estar… Estar… à espera de quê? (…) O humor que perpassa como uma aragem neste mundo ardente e estático, responde: "À espera de nada. À espera apenas… Acaso não é a existência, em toda a sua gama humílima e grandiosa, um tecido infinito de compassos de espera?".


Natália Correia, Contos Inéditos e crónicas de viagem; Editora Parceria A.M.Pereira, Lisboa 2005


© Teresa Sá Couto

sábado, 7 de março de 2009

Saudades de Egito Gonçalves

Dizia Egito Gonçalves que os poetas «têm um sonho, todos/ se esforçam por valer o pão/ que amassam». Sabemos nós que as penas da criação têm de lutar também contra as penas do olvido. E tão esquecido tem andado o poeta que escrevia sobre o presente, raspando o real quotidiano até atingir «o cerne emparedado», esculpindo no cerne das nossas emoções a memória e a saudade.

Porque «Nós vamos deixando pelo caminho/ os farrapos da pele», o rogo silencioso da criação foi escutado pela Campo das Letras que editou um daqueles farrapos com que se entende o mundo: «Entre Mim e a Minha Morte Há ainda um Copo de Crepúsculo» é um livro de inéditos do poeta que faleceu no ano 2000, quando completou 80 anos de idade. Agora, que se abram de novo as artérias para que elas povoem os lugares da poética egiteana. É hora de redescobrir o poeta.

Egipto Gonçalves começou a publicar poesia nos anos 50. Influenciado pelo Neo-realismo – e surrealismo –, o autor, todavia, não se deteve na poesia de circunstância ideológica e traçou o seu percurso de originalidade que nos chega até este livro com profunda homogeneidade temática. O espaço da escrita é um espaço luminoso com imagens do real a irromper nas páginas, como «rio de rápidos nervosos» que guiam o poeta no labirinto onde se perde e se reconhece, «em cada encontro, em cada linguagem»:

os versos que me surgem pelas ruas
têm o sono de um cavalo selvagem,
logo voam como flamingos. Deles
falo com cuidado; expurgo o insuportável
para a pele do leitor, os espinhos
que as picadas dos insectos segregam,
os dentes que se revelam flores carnívoras;
arcas inesgotáveis, caligrafia de sombras
que reservam a luz. Lanço ao Douro objectos,
memorias, desejos que não passaram
os limites. O mar devolve tudo: abro
as arcas; salgadas, as coisas ganham
novo aspecto; o caleidoscópio alerta
dias, estações, luzes, negativos.
As coisas parecem agora ser poemas
tocados por um pássaro: no seu bico,
uma haste do tempo reverdece.

Construída com quadros visuais e conceptuais, e com forte vertente narrativa, a poesia egiteana mostra-nos de forma singular os espaços da cidade do Porto. Embrenhamo-nos no Majestic, onde «uma névoa cobre os espelhos do café. /A névoa das ruas da cidade /refugiou-se aqui, seguiu o exemplo /dos nossos passos» de mãos dadas com esta poesia, onde as «as ruas são o nosso lugar (…) sermos o espaço /onde a cidade adquire consciência /e revela os seus arquivos, o fluir/ do rio que nos transporta os olhos /para o mar quando a névoa se abre /e deixa que as arvores se derramem /nas encostas (…)/ iremos dar nova forma às coisas, /surpreender os lugares até onde /a paixão nos trouxe; inscrevemo-nos /num espaço de árduas lutas, sonhos /de liberdade, flores nascidas /do sangue dos vencidos. (…)»;

Entramos no Cinema Rivoli onde «por dez tostões subíamos à galeria. /do alto víamos as divas, aprendíamos /a beijar – mal, é evidente: o código /heyes lá estava para nos impedir /de estremecer a fundo»; Sentamo-nos no Cinema batalha, onde os «heróis montavam a cavalo» e «os bandidos também» e à saída «em nós prolongava-se e ardia /o espírito de justiça, a imperecível /imagem do herói, o terreno fértil /para os que se seguiriam: Tom Mix, /Robin dos Bosques, Salvador Allende, Zorro, /Salgueiro Maia…»...

A palavra, corpo do real e do erotismo

Prenhe de tensão emocional, o discurso existencial de Egito Gonçalves constrói-se com expressão minuciosa e rigorosa onde coabitam individual e universal. Escrevendo nesta geografia, o poeta vigilante reage denunciado a castração humana, tudo o que contrarie a liberdade:

No Verão, por vezes, o vento Leste invade
a urbe. O vento da meseta – que o povo
diz não trazer nada de bom – seca tudo
na sua frente. Também a cidade
está cheia de pessoas que secam tudo
na sua frente. Só conhecem pássaros
em gaiolas, árvores em toros
para crepitarem nas lareiras.

A aspiração à liberdade é gritada no acto da criação e a palavra, feita corpo da realidade, encontra o erotismo com o qual se alia numa comunhão surpreendente:

escrever mensagens em que as aves
chilreiem, façam ninhos primaveris,
e pensar a cidade como se eu fosse
um forasteiro, com olhos de espanto: carregar a memória com o crepúsculo,
coleccionar metáforas para,
no regresso, depositar no teu seio e,
sob o teu olhar, avançar a mão
para a floresta, galopar intramuros, ouvir depois o boletim meteorológico
para saber onde iremos amanhã.

Egito Gonçalves disse: «do milénio /atravessaremos a fronteira com asa /rutilante, não perderemos as sementes, /as estrelas prosseguirão nos violinos». Este livro de textos originais, comprova-o.

Entre Mim e a Minha Morte Há ainda um Copo de Crepúsculo, Egito Gonçalves, Editorial Campo das Letras, Porto, Fevereiro de 2006

© Teresa Sá Couto

sexta-feira, 6 de março de 2009

Lisboa entre memória e realidade

O poeta Joaquim Pessoa, cativo de Lisboa, escreveu: «Em Lisboa a gente morre sem idade. /Devagar. Como se faz uma canção. /E há um pássaro que voa. É a saudade. /E uma janela aberta. O coração.». Também Fernando Pessoa, o poeta que tinha a cidade no sangue, nela se desapoquenta, escrevendo «como quem respira melhor sem que a doença haja passado».

Num gesto de grande fotografia, Henrique Dinis da Gama traz-nos a alma de uma cidade inteira que desce até ao rio. Como um pássaro alado e imenso que, sequioso, vai beber ao Tejo. E assim o exterior, uma vez mais, vem beber ao interior das nossas emoções. Trata-se do belíssimo livro «Baixa Pombalina – a luz obscura do iluminismo», de Henrique Dinis da Gama, tem a chancela da Editorial Caminho, editora que está há 30 anos (1975-2005) ao serviço da Cultura em Portugal. Um caminho luxuriante de homenagem à cidade, musa de quem a olha, e uma proposta aos leitores que querem ser espectadores e agentes do indefinível. Um livro que nos ensina a olhar e a sentir um património que é há muito tempo, descuidadamente, nosso.

Centrado na Baixa de Lisboa, o autor convida-nos, a partir de fotografias, a entrar no jogo entre a realidade retratada e a subjectividade do olhar da câmara. A fronteira entre objectividade e subjectividade é esboroada pela teatralidade com que se recriam os espaços, incitando-nos a (re)descobrir os locais e a adoptar uma postura de questionamento e reflexão em torno da fotografia, e sensações provocadas. Tratar assim a realidade, preenchendo-a de sentidos, é apanágio da grande fotografia. O processo de criação manifesta-se em imagens assombrosas, com muitas das fotografias, ainda, em cumplicidade com a pintura, como se de uma «Tela alucinada» se tratasse – não será ao acaso que o autor invoca a pintura de Mário Eloy (obra Lisboa, de 1934), a qual «terá entendido onde se encontrava o espírito da cidade» e os «os abismos da sua alma».

Fernando Pessoa apresentou-nos Lisboa calcorreada pela sua alma, num compêndio de desassossego e apaziguamento: «amo o Tejo porque há uma cidade grande à beira dele. Gozo o céu porque o vejo de um quarto andar da rua da baixa. Nada o campo ou a natureza me pode dar que valha a majestade irregular da cidade tranquila, sob o luar, vista da Graça ou de S. Pedro de Alcântara. Não há para mim flores como, sob o sol, o colorido vastíssimo de Lisboa.».

O poeta olhava Lisboa, como o próprio diz, com «um êxtase de ver, íntimo e postiço». É este arrebatamento criador que encontramos no olhar de Henrique Dinis da Gama. Surgem-nos ruas numa «quase irrealidade», captadas de muitos dos lugares elevados da cidade das sete colinas, que propiciam quadros de esmagadora beleza. Do plano geral ao plano de pormenor, nada escapa ao olhar atento e íntimo da câmara: a cidade ergue-se «quase a prumo falso», mostra-se a «linha monumental do Terreiro do Paço» e do Bairro Alto sobre o Tejo, largos e pátios, fachadas e arcadas, telhados, saguões, mansardas, coberturas, candeeiros, sacadas, jogos de esquinas, escadas, desníveis e suas resoluções. Não é esquecida a luminosidade singular de Lisboa, «a luz oblíqua nas ruas estreitas», aprisionada no instante mágico que o disparo pereniza. Nem os seus silêncios, janelas de mistério.

A densidade histórica é igualmente apreendida pela câmara fotográfica, e memória e realidade fundem-se num léxico pictórico prenhe de sentido. As fotografias são acompanhadas por textos, também de Dinis da Gama, num todo organizado em pequenos capítulos temáticos. Pretende apresentar-se a história da cidade desde o terramoto de 1755, considerado pelo autor como a «oportunidade única para a reconstrução de Lisboa» e dignificação do espaço. O Marquês de Pombal é tido como o espírito das Luzes em Portugal, espírito que «reincarnou nos que se lhe seguiram», como Fontes Pereira de Melo ou Duarte Pacheco, está presente nos grandes empreendimentos como a exposição do mundo português, em pleno estado novo e até, defende, na Expo 98, tudo «realizações que se destinaram a divulgar, uma vez mais, ao mundo, uma nova imagem de Portugal.».

A história da cidade é feita desde a reprodução de ilustrações dos sécs. XVIII a XIX, realizadas por estrangeiros – o que atesta o fascínio internacional por este espaço luso –, seguindo-se fotografias com a ambiência do Estado Novo, até à actualidade. É mostrada a «Lisboa sinuosa do fado», dos bairros históricos, a Lisboa da «modernidade estendida», mas sempre em reconstrução, sempre «à procura de escala», entre passado e presente, bairros e calçadas, e o sonho do futuro. Joaquim Pessoa escreveu: «É aqui, de bruços sobre a espuma /que o mar nos causa dor de estar em terra. /E as palavras nos doem uma a uma. /E os homens em Lisboa fazem guerra.».

Com a Baixa Pombalina na "guerra das candidaturas" a Património Mundial da UNESCO há, concordemos, muito que fazer para se nobilitar o espaço que anda demasiado vilipendiado. Este livro mostra-nos como se dignifica esse espaço, com uma solução elementar: ensina-nos a senti-lo.

Baixa Pombalina – a luz obscura do iluminismo, Henrique Dinis da Gama, Editorial Caminho, Lisboa 2005

© Teresa Sá Couto

domingo, 1 de março de 2009

Rui Herbon lança novo Romance

O Romper das Ondas é o novo romance de Rui Herbon, que será lançado no próximo dia 02 de Março, às 18 horas, na Livraria Almedina do Atrium Saldanha, estando a apresentação pública a cargo da escritora Lídia Jorge.

O Romper das Ondas recebeu o Prémio Literário da Cidade de Almada 2008, em Outubro último, e é o quarto romance editado de Rui Herbon, a seguir aos Voar como os Pássaros, Chorar como as Nuvens (Um Filme Português), Prémio Eixo-Atlântico de Narrativa Galega e Portuguesa 2002, Absinto (A Inútil Deambulação da Escrita), Prémio António Paulouro 2004, da cidade Fundão e Os Girassóis.

Como Pré-publicação, deixo aqui um extracto do novo romance, com agradecimentos ao Rui Herbon que mo disponibilizou antes de chegar às livrarias. Além deste extracto, pode ler-se um outro que editei no site Orgia Literária.


«(...) Para usar uma frase feita, dir-lhe-ei que então – situemos esse então nos primeiros anos do silêncio – o inconsciente denunciava-me. Eu continuava a ir ao psicanalista, apesar dos riscos que isto implicava e do meu decadente poder aquisitivo. Sonhava profusamente e em cinemascope: pequeno luxo nocturno. Anotava num diário as minhas imagens oníricas, com o propósito de tê-las bem presentes no momento de fazer o meu relatório, desde o divã. Um dos sonhos faz parte do romance e passo a transcrevê-lo:

Ninguém deixa de assombrar-se. O vento duplica o alvoroço. É gente que exclama aqui e ali. Estamos na planície, dispersos em pequenos grupos. Alguns contemplam os firmes torreões e o céu, propiciamente limpo para turistas indómitos. O Professor contempla um plano dedutivo do castelo, onde só falta colocar a capela. Desde a ameia mais alta pode ver-se o fosso e a muralha suja de cinzas, também as cercas e barbacãs que flanqueiam com teimosia o acesso à fortaleza. Agora dirigimo-nos para a ponte levadiça. Asius e o Professor ficaram para trás, ainda entretidos com o mapa e com a descoberta da atalaia desmoronada. Butch toma-me pela cintura e entramos juntos na torre de menagem. Algo ali pertencia-nos; cada coisa parece-nos familiar. Por um resquício do passado surge a recordação de uma caixa contendo três ratazanas. Butch evoca-as. Achá-las mortas, por nosso imperdoável descuido, enche-nos de angústia. Contudo, a possibilidade de encontrá-las ainda com vida inquieta-me. Butch volta-se de costas para mim, inquisidor; ainda sabe como procurar os vestígios da nossa anterior passagem entre as paredes desses habitáculos em ruína.

Debaixo de um colchão de escombros e pó, está a caixa. Butch abre lentamente a tampa. As ratazanas estão aí, como solas de sapatos postas ao sol. Uma, a mais pequena, engana-nos. Salta. Eu corro. Trepa, desce, vem para mim. Oh, não. Está enredada nos meus pés. Por meio de um estalido, transforma-se em múltiplos insectos voláteis que se perdem no meu olhar; o meu olhar que se vira magicamente para a meia-luz de um passadiço subterrâneo. Sobre tarimbas estamos os vivos: o Professor, a sua mulher – muito desgrenhada, com uma enorme gravidez –, Asius, outras pessoas, Butch e eu. Somos prisioneiros dos mortos. Os mortos formam um Tribunal. Têm corpos emprestados. Intuo-o: falam acerca de nós. O lugar é uma armadilha. Suspeito que resolveram provocar-nos um grande sofrimento. É mais que um pressentimento; estou certa de que esperam a nossa desintegração. Deixar-nos-ão morrer de fome?

Extenso e plano é o campo de concentração, ou a antecâmara, para a tortura e a morte. Sempre fui uma rebelde paciente na sala de espera. Vejo-me na porta de serviço, pobremente, com tanta ânsia, com tanto ódio. Isto queima, isto queima-me. Os mortos têm semblantes de um encantador nada; caras azuis, mal pintadas, cheias de hematomas; estão vestidos com retalhos. Usam coletes e jardineiras e olhos alucinados. Transportam-nos para um vestíbulo. Sentamo-nos em círculo, ombro com ombro. Na perna, uma mancha começa a picar-me. Coço-me. Os nervos dão-me mais comichão. Volto a coçar-me, coço freneticamente. Com as unhas provoco uma leve ferida. Os mortos, que nos vigiam de perto, vêm o fio de sangue. Por que se incomodam e me perguntam se vai sarar? Por que necessitam saber se ficará uma cicatriz? Agora sei: querem os nossos corpos bem sãos, inteiros, com uma boa superfície. Os nossos corpos serão a sua nova vestimenta. Portanto, não haverá actos de violência; utilizarão um gás venenoso que não deixe manchas nem marcas na pele. Que farão com Butch? Como não pensei nisso antes? Pela expressão do seu rosto, intuo que urde um plano para escapar. (...)». pp.25,26


nota: ver artigos sobre Rui Herbon na etiqueta correspondente

© Teresa Sá Couto