domingo, 5 de outubro de 2008

Entrevista a Rui Herbon

Editada noutros espaços ao longo dos últimos 3 anos, edito agora aqui a entrevista a Rui Herbon, feita em Agosto de 2005, que surgiu no ensejo do livro «Absinto - a inútil deambulação da escrita». Como curiosidade, refiro que ao combinar este encontro com o Rui, ele disse-me que costumava ser lacónico nas respostas que dava às perguntas que lhe eram postas. Respondi-lhe que eu não sabia fazer perguntas e, portanto, a entrevista afigurava-se um mistério. Penso que ambos nos aparelhámos para uma brevíssima conversa. Engano! De uma amena cavaqueira de horas que voaram, registei em texto o possível. Saiu assim:

Teresa Sá CoutoAbsinto: «Fada verde», «inteligência artificial», em alternativa e apologia de outro tipo de inteligência…
Rui Herbon - À inteligência “natural”. No fundo, para muitos artistas, quando não lhes vinha a inspiração – que não sei muito bem o que é – bebiam uns copos e parece que ela lhes surgia miraculosamente. Isso comigo não funciona (risos).
TSC - Uma alternativa à inteligência que impede a espontaneidade. Como «In vino veritas», no Banquete de Kierkegaard, onde os convivas só poderiam discursar depois de estarem sob o império do vinho e dizer coisas que de outra forma jamais diriam…
RH - Exacto. O Absinto seria algo libertador. As pessoas revelam-se à noite…durante o dia andam com o seu fato e gravata, com a sua máscara, à noite, às vezes, andam completamente enfrascadas e, se calhar, é como gostavam de passar a vida…(risos)

TSC - Morar sozinho, beber absinto e conhecer Emílio Montalban é a trilogia para a deambulação feita pelo narrador, um Eu, sem nome…
RH – Sim, é quase um pretexto para o livro todo. Está tudo interligado por esses fios. Além desse Eu há personagens que funcionam como fantasmas porque entram na narrativa e saem – como os figurantes do cinema ou teatro –, têm uma fala e desaparecem, sem se saber donde vieram nem para onde vão. A nossa vida é assim…as história da noite representam-no.
TSC - Emílio faz uma parelha de eleição com o Eu sem nome porque, e voltando ao absinto, a Emílio dá-lhe para falar, e ao Eu dá-lhe para escutar…
RH - É uma relação perfeita. E é verdade; o álcool tem efeitos diferentes nas pessoas. O Emílio falava verborreicamente, nas suas divagações. O outro, que passava o dia a divagar, à noite acalmava-se, deixava o outro falar, ouvia-o, abria a janela, ia ver a rapariga da frente…

TSC - A casa do Chiado é a âncora da deambulação, o espaço onde a escrita acontece. Viveste mesmo lá?
RH - Sim. Vivi lá seis meses. Mas o livro foi escrito depois. Não tenho muito jeito para inventar casas…no que estou a escrever agora estou a inventar, mas quase não se descreve a casa. Já morei em tantos sítios…agora estou menos movediço…conhecendo tantas casas diferentes é mais fácil utilizar esses cenários.

TSC - Sobre as personagens femininas…
RH – Ah, eu costumo ser mauzinho com as mulheres….
TSC - Disseste isso na Covilhã, mas não é essa a impressão com que fiquei neste livro…
RH - Este não tem muito, mas a frase «gosto de mulheres que falam senão começo a suspeitar que pensam»…!
TSC - Mas isso é tirares a frase do contexto. Repondo-a lá é uma observação ao serviço da dissecação das personagens, que continua no olhar crítico e irónico pela casa da mesma menina….
RH - Sim. Até porque ele estava a dizer aquilo a um tipo de pessoa específico, um destinatáro definido, à rapariga um bocado "oca", filha de boas famílias, com pretensões culturais, mas sem “grande coisa”…Essa frase fora desse contexto…caíam-me as feministas em cima.
TSC - É gente sombria que na noite anda à procura e encontra o efémero, aliás como o EU. No geral, até se pode ver como uma homenagem às mulheres….
RH - Pode ser. São possíveis várias leituras. E podes também ver este livro cruel para o Eu…com aqueles jogos ele expõe-se…Se fosse uma mulher a escrever, se calhar dizia o mesmo dele…

TSC – São sugestivos, os dois nomes que estão ligados à sexualidade…entre a Sophia, a portuguesa, e Rosário, a espanhola …(risos)
RH - A meio caminho está a virtude…
TSC - E a meio caminho estão as que não são efémeras: a vizinha…e a rapariga do Castelo.
RH – E essa parece ter “mais futuro”…pois reaparece no final, dando origem ao “eterno retorno”. Há também neste livro uma forte preocupação com o tempo…faço isso em todos os livros……como na história do tipo que é imortal e está ali a acabar esse seu tempo;…a rapariga rica dentro do tempo em que ele viveu na casa, mas se foi depois ou antes dele ter conhecido as espanholas…não se sabe…. O Tempo é caótico; não tenho a preocupação de dizer se foi antes ou depois…. São episódios. No fundo há meia dúzia de cenários, e a casa dele é quase a âncora de tudo.

TSC - A tua escrita é impressionista e, arrisco, com muitos traços surrealistas…
RH - é curioso dizeres isso, porque a única critica que surgiu a este livro terminava com «surrealistamente muito bom» Se calhar sim, mas não propositado…
TSC - Mas o caos é organizado propositadamente por numa escrita de interligações, até ao ínfimo pormenor…
RH – Trabalhei 10 anos em informática. Se calhar ao escrever tenho uma preocupação esquemática, sobre as relações que falas, o espírito de análise e de interligação, se calhar vem dessa área. Tenho uma preocupação terrível a rever. Não pode haver falhas. Há aí capítulos que podem existir fora do livro. Mas confesso que não me vejo a escrever contos. Só obras de fôlego. Tenho de concentrar-me, estar 2 meses ou 3 a esquematizar o que quero…demora a fermentar, mas depois disparo…
TSC - A importância da tal «escrita dentro», que falas no livro…
RH - Exacto. A pessoa vai trabalhando e há sempre qualquer coisinha que se aproveita… às vezes, a ponta da linha…e sai tudo por aí fora.

TSC - Uma Originalidade do livro «Absinto» é a relação que se estabelece entre a realidade e a ficção: o Eu desvela-se ao leitor, provocando um sistema de reconhecimentos, e a ficção entra na realidade. Um jogo assumido pelo narrador que até leva para a ficção um autor, um Rui Herbon (risos). Foi pensado ou saiu assim?
RH – Saiu e foi pensado. A maior parte dos escritores são pessoas que sempre escreveram, e eu não tive o Diário, não escrevia poemas. Até aos meus 29 anos fui leitor, e sou escritor há quatro, portanto, se calhar, eu ao escrever, muitas vezes farei ao contrário de muitos escritores, e muitas vezes será o meu lado ainda de leitor a prevalecer, e quando estabeleço esse Eu, digo-o claramente. Aliás há três Eus: quando ele diz que o Eu que escreve neste momento nem é o narrador, que supostamente é a tal ficção, nem o autor, que será a tal realidade, mas a sua máscara, uma terceira entidade; ou seja, um livro não é ficção nem realidade, há uma mancha no meio em que uma e outra se vão misturando. E se calhar o interessante é que uma pessoa chega a uma altura do livro, em que há uma mistura tal entre eles. O Eu sai muito pela tal sombra, a tal máscara.
TSC – O Eu não ter nome contribui para a identificação do leitor…
RH – Pois, pode ser o próprio leitor. Afinal não se sabe muito do Eu. Não se sabe o que ele faz. Escreve sobre tudo, mas não sabes o que faz durante o dia. À noite vai para os copos, durante o dia pode ter uma vida normal e o leitor pode encaixar aí. A personagem olha, vê, regista no seu bloco de notas. Essa é uma das minhas metodologias de escrita.
TSC – O estilo da deambulação, e da confissão…
RH – Sim…isso uso em todos. Normalmente, quando acabo um capítulo, vamos supor que tem 3 páginas, vou rever, e fica com seis…é que entretanto andei pelas ruas e acrescento confissões do Rui Herbon, nem é da máscara.
TSC – E a máscara é isso: esconde revelando, e voltamos ao absinto…
RH – Exactamente. Está aí a máscara para não se saber muito bem quem é…pode ser e pode não ser…E é uma desculpa: “ele se calhar estava a dizer aquilo porque estava com os copos” deixando a incerteza….e assim, “a gente desculpa-o”… (risos).

TSC - Tens a noção que este teu livro é uma fonte de compreensão da urbanidade e, pelo carácter analítico, pode ser uma consulta para estudiosos?
RH – Sim. É um livro urbano que procura as manifestações da cidade em si enquanto um todo, mas vai também a personagens individuais, aos seus comportamentos com a cidade, como se relacionam umas com as outras. Esse livro é uma homenagem à cidade, feita por alguém que interage com ela, que gosta de ouvir a gente dos bairros.
TSC - Com tantos autores a escreverem sobre a urbanidade, ela pode ser uma eterna fonte de inspiração ou tende a esgotar-se?
RH – Os campos têm todos o seu limite, e é curioso que o livro tenha sido escrito num meio rural, quando já era outro Eu… a forma foi já como de alguém que já está um pouco fora dessa urbanidade…
TSC – A distância e a memória têm o poder artístico de transformar…
RH - Transformar e escalperizar as coisas. É-se mais objectivo um pouco fora das coisas… Continuo a vir muito a Lisboa, mas provavelmente esse livro não seria o mesmo se o estivesse a escrever nessa casa, ou noutra em Lisboa, porque estaria dentro do cenário; seria um actor, mas quando se está fora é-se o coreógrafo, encenador. E esse mexe melhor os cordelinhos, do que se estivesse dentro; o Rui estaria dentro do cenário desse livro e ser-lhe-ia mais difícil estar cá fora a espreitar e ser o próprio Rui a rir-se das atitudes que o próprio tem dentro da urbanidade.

TSC - Falas de livros como objectos mágicos e de bolhas que se soltam deles.
RH – Eu já experimentei isso. Ao ler o livro «O Ano da Morte de Ricardo Reis», de Saramago, com o indivíduo a entrar no quarto de hotel, despertaram-se-me muitas ideias. Isso são as bolhas. Os bons livros são os que quantas mais vezes se lerem mais bolhas soltam.
TSC - Dizes que a escrita é um vício e que estás presente nela enquanto leitor. No entanto, também dizes que não lês.
RH – Praticamente leio por uma questão profissional; só leio, o que acho que me traz mais valias para o que escrevo. Depois, enquanto escrevo, não leio nem vou ao cinema. Tem tudo a ver com a tal “escrita interior”. Por exemplo: estou a ler um livro; uma casa desse livro leva-me para a casa do meu livro e quando dou por mim passei um capítulo todo e não sei o que li! Passa-se o mesmo com o cinema; uma qualquer cena faz-me sair do filme para entrar na minha história… de vez em quando acordo e não percebo nada do que estou a ver…

TSC - Dedicas todo o teu tempo à escrita. Dá-te para viver?
RH - Felizmente cada livro que escrevo dá-me um prémio; das vendas, dos direitos de autor, os valores são ridículos. O que me safa são os prémios…


nota: em cima, Rui Herbon fotografado por José Carlos Nascimento, imagem da contracapa do livro Absinto - a inútil deambulação da escrita

© Teresa Sá Couto

Sem comentários: