segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Retrato do ódio no Médio Oriente

«O homem é como uma libélula. Voa sobre o rio, sobe mais alto para ver o sol e num minuto desaparece», ia repetindo Salua, uma jovem mulher, personagem principal da narrativa «A Esposa de Assuão». A lição que ia repetindo foi-a aprendendo na cadência do ódio, da violência, das balas e das bombas em nome de um Deus que parecia descer ímpio para o interior dos homens. Na faixa de Gaza, na Palestina violentada pelos israelitas, onde antes imperara a harmonia entre as três religiões monoteístas, Salua aprendia outra lição: que o Deus ganhador é o que tem força militar e política conferidas pelo poder económico.

Numa surpresa narrativa, a «A esposa de Assuão» dá-nos a explicação do ódio, como nasceu e cresceu no interior dos homens e como daí deflagra, sequioso de sangue. Com as lições de Salua, aprende o leitor a tessitura da injustiça e da revolta; se os homens de poder assim se inquietassem, talvez Jerusalém, a cidade de David, pudesse ser efectivamente a Cidade da Paz.

Escrita por Rula Jebreal, uma jornalista palestiniana com passaporte israelita, e traduzida por Carlos Aboim de Brito, a narrativa é um retrato de cerca de um século da História do Médio Oriente desvelado na sua vertente mais perturbadora: original e inquietante é o olhar da autora sobre as vítimas que não estão envolvidas nas lutas armadas, gente anónima, trabalhadora, pacífica, tolerante e com valores humanos elevados, que é emaranhada no ódio religioso fratricida das três religiões (cristianismo, judaísmo e islamismo), e o enfoque dado à força das mulheres que, mortos os seus homens por obra da insanidade humana, têm de tomar as rédeas das suas vidas.

A acção central é a fuga da família de um comerciante, um casal com uma filha, cristãos coptas do Egipto, após o assassinato do primeiro-ministro copta com o consequente atear das tensões inter-religiosas. Casadoira, Salua, a rapariga, seria entregue ao noivo, na Palestina, local para onde a família se dirige à procura da tolerância, mas ao encontro dos equívocos e da destruição: Mazen, o patriarca, é assassinado, erradamente, por suspeitas de colaboracionismo com forças britânicas, um engano que leva, todavia, o noivo de Salua a repudiá-la. Sós, numa terra estrangeira, as mulheres recomeçam a sua vida. Salua acaba por casar, com amor correspondido, com um humilde pescador muçulmano, de quem tem quatro filhos.

A sua casa do Monte Carmelo é, todavia, o espaço da felicidade a prazo, porquanto proibida naquela faixa negra do Médio Oriente: o marido é atingido por uma bomba israelita quando se dirigia a casa para junto da família e Salua vê-se espoliada pelo governo de Israel. O diálogo que aqui reproduzimos surge no clímax de um processo gradativo de densidade psicológica a fazer-nos reflectir sobre o legado de humilhação e violência humanas e as consequentes motivações para a luta armada de uma nova geração, filha de inocentes, numa explicação do círculo vicioso do ódio.
Extracto:

«- Lamento, mas esta casa foi-nos atribuída – tinha dito gentil mas decididamente a mulher, mantendo aquela visita importuna de pé na soleira da porta. Salua só conseguia olhar para trás da mulher aquele ambiente tão familiar, os belos muros brancos sobre os quais restavam dos panos bordados que aí havia até há poucos dias.
- Mas não pode ter sido “atribuída”, a casa é minha! – gritou.
- Agora a casa é nossa. Estou certa que o governo israelita providenciará uma compensação, se era realmente a proprietária.
- Compensação? – o sentido do absurdo, de injustiça, foi forte como uma bofetada. Esta casa foi comprada pela minha mãe, foi reconstruída pelo meu marido, peça a peça, e o jardim foi tratado por mim, planta a planta. Vivemos aqui durante décadas, aqui nasceram e cresceram os nossos três filhos, como pode falar de “compensação”?
- Estou certa de que o seu marido pode dirigir-se ao governo israelita – disse a mulher. (…)
- O meu marido morreu – repetiu Salua, desta vez sem gritar mas fixando os olhos daquela mulher (…) – foi morto por uma bomba israelita. O meu filho mais pequeno e a minha mãe estão bloqueados em Damasco pelo exército israelita. E enquanto as minhas duas filhas dormem numa cozinha, eu passo os dias a fazer comida para o exército israelita. (…) já me esquecia: estou grávida. Que “compensação” crê que o seu governo pode oferecer-me?
A mulher olhava-a emudecida.
- O seu filho nascerá israelita – foi o que conseguiu dizer. – Em breve teremos a paz.
- O meu filho nascerá órfão!»

A Esposa de Assuão, Rula Jebreal; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007

© Teresa Sá Couto

8 comentários:

Anónimo disse...

Cara Teresa,
Se olhar bem para uma moeda, reparará, com toda a certeza, que ela tem duas faces! Todas têm!
Assim acontece, de igual modo, com cada evento ou acontecimento relatado!
Todos temos o direito, senão a obrigação, de tomar uma posição sobre todo e qualquer tema. Não se o pode é fazer sem abertura de mente, espírito crítico e conhecimento de causa.
Até porque os rebanhos só fazem falta às ovelhas!
Não concorda?

Teresa disse...

Caro Tiago
Sim, concordo: com uma moeda ter duas faces, na importância do contraditório na abordagem dos assuntos e na abertura mental necessária ao espírito crítico. Aliás, é também isso que pretendo com os meus textos e está aqui a prova em forma de repto que você abraçou. A autora relata - evidentemente à sua maneira emotiva e romanesca - situações que foram noticiadas na imprensa e, pelo seu carácter noticioso, é de crer que sejam verídicas. Vivendo no território, creio que terá o «conhecimento de causa», ainda que seja tão-só a sua face da moeda.

Todavia, e perdão pela ousadia, tenho de desconjuntar-lhe a metáfora «os rebanhos só fazem falta às ovelhas», pois não me parece de todo adequada à realidade humana, que, avento, supostamente quer referir: é que, se até no reino animal há ovelhas que não se enquadram em determinados rebanhos, mas permanecem lá por via da chicotada e por temor de uma dentuça canina afiada, é difícil ver essa anuência no ser humano, que certamente o seu sonho não é ser ovelha. Digo eu…
Concorda?
TSC

Anónimo disse...

Sobre as "situações que foram noticiadas na imprensa e, pelo seu carácter noticioso, é de crer que sejam verídicas.", assim como sobre o avançado de que "vivendo no território, terá o conhecimento de causa", permita-me, com o devido respeito, não partilhar da sua credulidade! Desde que, ainda em tenra idade, fugi da cerimónia da Comunhão Solene, livrando-me também do crisma sacramental, nunca mais aceitei qualquer confirmação, especialmente vinda de quem professa dogmas como se de verdades se tratassem!

Quanto à sua certeza de que "o sonho do ser humano não é ser ovelha", pelo que vou amiúde constatando, avançaria, sem grande risco de errar, para a convicção contrária de que são cada vez mais os que sonham com tal metamorfose!
Que o direito a um emprego garantido e a um ordenado mínimo, vai sendo sempre preferível ao emprego na luta pela ordem e garantia do máximo dos direitos!...

Claudia Sousa Dias disse...

As coisas mudaram muito desde 1945.

Acontece um pouco 9o mesmo como com os cristãos nos primeiros séculos da era cristã, onde os perseguidos pasam a perseguidores.

hoje é difícil atirar as culpas para alguém por o ódio não tem fronteiras naquela localidade, é mútuo, e misturado, fundido e escorre por todas as ruas como lava vermelha...

o que não significa que se devam esquecer holocaustos passados...

principalmente a quota parte da culpa de nós, os europeus, na situação actual...

que é algo de que ninguém fala.

porque não convém.

CSD

Luís Sampaio disse...

A magnífica Teresa sempre a incentivar-nos ao diálogo, sempre com inteligência, subtileza e elegância!!!

Gosto do enfoque que dá à «gente anónima, trabalhadora, pacífica, tolerante e com valores humanos elevados, que é emaranhada no ódio religioso fratricida das três religiões». É extraordinário que destes pouco se fale.

Teresa disse...

Exactamente, Cláudia. Depois da Segunda Grande Guerra muito mudou...
Depois do Holocausto de mão europeia a assunção de responsabilidades da Europa neste tipo de conflitos é matéria silenciosa, ruidosamente silenciosa...

TSC

Teresa disse...

Tiago,

É realmente "garra precoce" ter fugido, em tenra idade, do Dogma da «Comunhão Solene». Tem, no entanto, de registar que muitos povos vivem no cruzamento de balas de dogmas religiosos e têm a sua missão de vida num dos lados do disparo...
o Médio Oriente é um dos laboratórios mais inquietantes...

Bom Ano
TSC

Teresa disse...

Obrigada, Serrano

Um abraço
Bom Ano
TSC