domingo, 3 de maio de 2009

«O Homem que Julgou Morrer de Amor»

O Homem que Julgou Morrer de Amor é o romance de estreia de Manuel Jorge Marmelo, editado em 1996. Uma «excelente novela», segundo Mário Cláudio, que em 2006 surgiu em segunda edição revista, reescrita e depurada, zelos do seu incansável autor.

Comummente considerada uma história de amor, esta novela é, principalmente, uma história sobre os demónios do ser humano, que entrevemos na missiva de Goethe: «Somos os nossos próprios demónios, expulsamo-nos do paraíso»: Transímaco ama Helena – um amor impossível porque ela é pertença de Sócrates – e ama a justiça – um amor frustrado porque em Atenas grassa a corrupção. As duas impossibilidades de amor conjuram a destruição da razão e alma de Transímaco que acaba por se suicidar. Todavia, esta é mais um capítulo da história de um outro amor maior e, este sim, feliz: o amor de Manuel Jorge Marmelo pela escrita, amor arrebatado, humilde e zeloso comprovado na produção contínua que tem fidelizado sempre mais leitores.

«A vida tem, na verdade, um rumo definido, como o dos rios. Mas sempre há um ponto, nesse curso, em que o relevo das montanhas permite que as águas se bifurquem. É então que cabe ao homem escolher qual dos caminhos tomar», diz o sacerdote do templo de Apolo a Transímaco, um dos mais respeitosos advogados atenienses, orador de excepção que pasmava a plateia da Ágora argumentando «como se litigasse uma qualquer coisa». Fazendo da Justiça o seu estandarte, Transímaco acusava Sócrates e Platão de não a praticarem, e de minarem a cidade e a pátria com «palavras vãs». Mas, disse-lhe o mesmo sacerdote: «A justiça é apenas um dos elementos de que a razão é composta na mesma proporção em que a injustiça a integra. E o mesmo sucede entre o coração e a cabeça, que repartem igualmente o espaço que a razão lhes reserva.». No coração de Transímaco, onde estava instalado o amor pela Justiça, tatuava-se o amor por Helena, escrava de Sócrates, outrossim o ódio pelo velho filósofo.

O correr da escrita, enformada por uma prosa poética límpida e com admirável plasticidade, ilumina-nos os degraus da queda do jovem e, por eles, a reflexão sobre os desmandos dos homens: «um homem que, de noite, caminha sozinho e nada vê, já se sabe, leva a cabeça livre para todos os pensamentos, os mais amenos e também aqueles mais ásperos, conforme for a sua predisposição para matutar nuns e noutros». E Transímaco «ora suspirava por Helena, ora espumava de ódio a Sócrates»; «esforçava-se para recordar o rosto de Helena, mas eram as frases de Sócrates que lhe ocorriam», e logo define a sua missão: «libertá-la-ei ou pagarei o meu fracasso com a própria vida», pois é justo matar Sócrates para libertar Helena. Mas não é justo «construir o edifício do amor sobre a dor da morte», diz-lhe Helena.

Górgias, Sólon, Meleto e Hipofonte, são nomes grandes do pensamento da Grécia antiga convocados com mestria para o enredo ficcional de Manuel Jorge Marmelo.

Ser homem e lobo...

«Algo há que nos move e impele – mas muitas vezes, sabemo-lo, somos pouco mais do que autómatos obedecendo a misteriosos desígnios. Chame-se destino ou fado a essa pulsão, ela não será mais do que desvario, loucura, teimosia. O homem é uma máquina cruel e destrutiva». Assim fala o narrador, falando por Hipofonte – o sábio que cegara por excesso de realidade ou «para perder de vista tudo o que sobre os homens aprendera» – que, por sua vez, se dirige a Transímaco dizendo que o jovem advogado «sofria de amor, ciúme e de ódio, o que vem a ser, quase sempre, a mesma coisa».

Na busca dos demónios humanos, o mesmo narrador, não participante, mas omnisciente, e também ele – à semelhança de Transímaco – com a arte da persuasão, instiga o leitor a reflectir sobre a coexistência de duas naturezas no homem: o espírito e o instinto; a natureza humana, que nutre ideais humanos, e a natureza lupina, feroz e selvagem: «o homem é, de entre todos os animais, aquele que mais se assemelha ao lobo»; deixe-se que ao homem dócil «se avilte e observe as desarmonias da natureza e as imperfeições do mundo; que se encerre», «remoído pela fome e pela saudade de um amor proibido» e o homem transfigura-se num ser selvagem, «uma besta capaz de eliminar todos os obstáculos».

Sem conseguir domar os sentimentos, sublimar o amor, Transímaco deixa à solta a sua natureza selvagem e o Eu tende para a destruição, patente numa «pulsão qualquer que lhe afogueava o rosto e lhe humedecia as entranhas» e na ideia fixa e sinistra de matar Sócrates para libertar, para si, Helena. Inapto para executar o golpe fatal, o suicídio afigura-se-lhe uma saída de emergência para a vergonha pela sua incapacidade. Ele que, antes, do alto da colina com vista sobre Atenas, pensou, ou o narrador por ele, que «enquanto pudesse recordar aquele primeiro vislumbre de Helena, seria incapaz de morrer», e no instante da morte «ocorreu-lhe que morria por amor». Conclui o leitor sobre a “ilusão” da personagem: matar-se significaria que o amor por Helena também teria morrido, subtileza patente no título deste romance, de narrativa aberta que permite ao leitor deter-se "no final proposto" para o moldar segundo os sentidos da sua leitura.

E onde fica a justiça? Diz-se do Deus Cristão que «escreve direito por linhas tortas». O mesmo se pode dizer aos Deuses Pagãos desta Grécia antiga: enquanto o jovem Transímaco se enforcava na Oliveira da colina com vista para Atenas – muito, como se viu, por móbil de Sócrates –, a cidade condenava Sócrates por «corromper a juventude», o que o levou a beber a cicuta fatal. Por outro lado, o elemento feminino, símbolo da fecundidade e, por isso, de inícios – parece sair vitorioso: Helena fica livre e Atenas, sem dois dos seus grandes oradores, pode soltar as águas do bem… ou do mal….


O Homem que julgou Morrer de Amor, Manuel Jorge Marmelo, 2ª edição; Editorial Campo das Letras, Porto, 2006

© Teresa Sá Couto


2 comentários:

Claudia Sousa Dias disse...

ai que delícia...só os gregos e as suas paixões, as suas traédias para nos inspirarem.


um beijos


csd

Teresa disse...

Pois, Cláudia :)))

Bjos

Teresa