domingo, 7 de junho de 2009

Peregrinação a Macau - Poderes e saberes dos séculos XVI e XVII

Em 1555, o mercador de elite, aventureiro e escritor Fernão Mendes Pinto passava a carta de nascimento de Macau (Haojing). No mesmo ano, arrolando a magnificência do novo poderio português, Mendes Pinto dizia que «para escrever tudo era necessário que o mar fosse tinta e o céu papel» e, na Peregrinação, escreveria: «...este porto de Macao onde agora se faz a (veniaga), no qual sendo antes ilha deserta, fizeram os nossos uma nobre povoação».
Porto de portugueses na entrada da China, «fronteira múltipla, placa giratória de encontros entre diferentes espaços e mundos», o território projectou desde logo o seu carácter internacional e multicultural.Viajar por aquele tempo de poderes e de ideias que chegam ao século XXI encrostados de romantismo, mas também de realização, é a proposta do extraordinário livro «Macau: Poder e Saber – séculos XVI e XVII», de Luís Filipe Barreto, editado pela Editorial Presença.

Com o objectivo de traçar a história dos poderes e saberes de Macau nos séculos XVI e XVII, o historiador procura a História em quatro vertentes, como o afirma no prólogo: a «história interna de portugueses casados e miscigenados, de chineses de Macau e da restante China, de portugueses e outros europeus asiatizados»; a «história de parcerias em constante renovação entre grupos de chineses, portugueses e de outros asiáticos e ocidentais, de comunidades marítimas e mercantis nos Litorais da China e nos Mares do Sul»; a «história de redes e rotas, que trocam produtos e ideias, que ligam, á escala planetária, diferentes litorais, mercados e centros económicos e culturais» e, finalmente, a «história do primeiro século de vida social e intercultural de uma comunidade e território bem como das condições e dos antecedentes que a viram e fizeram nascer.».

Apoiado rigorosamente em fontes históricas chamadas sempre para o texto robustecendo-o e dando-lhe o colorido da época, «testando hipóteses e descobrindo problemáticas e documentos», Luís Filipe Barreto segue uma metodologia crítica e analítica que assenta em duas partes ou, como referido, dois livros: no primeiro abordam-se os Poderes económicos, sociais e políticos «que tecem a realidade de Macau», e o segundo livro colige criticamente textos e ideias sobre e produzidos em Macau, elaborados à época e que retratam o impacto intelectual do território nos anos quinhentos e seiscentos.

A aventura portuguesa nas portas da China

Se Macau nasceu em 1555 fruto de uma parceria sino-luso-nipónica que fez do território o «intermediário hegemónico do grande comércio internacional da prata e da seda», lembra-nos o historiador que a grande novidade asiática surgia em 1506 no Planisfério Anónimo Português, uma carta do mundo que representava a grande ousadia lusa e onde se registavam todas as novidades chegadas a Lisboa, e que contendo a mais antiga referência à terra de chins evidencia Malaca como uma porta da China e a sua posição frente à China Ming: «na legenda junto a Malaca diz: …Malaca. Em esta cidade há todas as mercadorias que vêm a Calecute. Ou seja, cravo e benjoim e linaloés e sândalo, estoraque e ruibarbo e marfim e pedras preciosas de muita valia e pérolas, e almíscar e porcelanas finas e outras muitas mercadorias; todas a mor parte, vem de fora, contra a terra de chins…».

Presentes em Malaca desde 1509, os portugueses aproveitaram a abertura do comércio marítimo para estabelecer um comércio profícuo com mercadores chineses. Refere o texto que é graças a um punhado de pioneiros, do seu trabalho de recolha de informações sobre o «Sueste Asiático insular e as linhas marítimas para o mares da China», que desfilam nas páginas deste livro, que a Coroa portuguesa resolve dar novos passos e envia embaixadas com o propósito de se «fazer uma fortaleza na China e a fazer a carga das mercadorias da dita China».

Porém, lê-se, «abertos os caminhos do mar», abriram-se «os caminhos das hostilidades» e as tentativas diplomáticas entre a China Ming e Portugal terminavam em «guerra total», em 1521. Em 1527 documentos indiciam o retomar de «laços marítimo-mercantis entre mercadores privados chineses e portugueses pois «estavam os chins desejosos de nós outros da pimenta e pau preto e puncho e incenço macho e marfim». Por outro lado, defende-se, «os grandes investidores e armadores privados chineses e japoneses foram obrigados a concluir que os investimentos corriam menos riscos em associação com os portugueses».

Para o estabelecimento de laços contribuíram as elites miscigenadas de Cochim, Goa e Malaca, apanágio dos portugueses e da sua capacidade de se misturarem com os outros povos. Começava então a surgir a formação da poderosa «parceria, informal e privada sino-luso-nipónica» que dominou o comércio no mundo. Refere-se que, também a posição oficial chinesa se alterara: considerava-se que «a potencial ameaça e perigosidade dos portugueses reside nos canhões e nas velas, isto é, no poder marítimo. Colocá-las em terra, é dominá-las: “...têm os chins os portugueses em pouco por dizer que não sabem pelejar em terra que são como peixes que como os tiram da água do mar logo morrem…”».

Também o poder Chinês vê nos portugueses um «intermediário imprescindível» e «tornam-se agora parte da solução do problema financeiro chinês», além de contar com a temível artilharia naval portuguesa para a defesa marítima de Cantão. Esta confluência de interesses, e a consequente pacificação do comércio, fez de Macau o consórcio de realização plena e o ancoradouro mais famoso do seiscentismo.

Também o credo lançado é uma importante marca de identidade da «cidade do nome de Deus, situada na ilha de Amacao, pertencente à China»: o cristianismo semeado pelos missionários jesuítas - chegam a ter poder e influência política e mercantil - fica enraizado no «húmus social», e é fundamental na construção dos laços.

São 410 páginas de uma viagem imperdível ao fascínio, que Luís Filipe Barreto oferece à História e Cultura Portuguesas.

Macau: Poder e Saber – séculos XVI e XVII, Luís Filipe Barreto; Editorial Presença, Lisboa 2006


© Teresa Sá Couto

Sem comentários: