sábado, 4 de julho de 2009

Novo poema de José Agostinho Baptista

José Agostinho Baptista lança hoje, na sua ilha, na Madeira, o novíssimo livro O Pai, a Mãe e o Silêncio dos Irmãos, um longo poema em prosa poética, com a chancela da Assírio&Alvím que tem editados os títulos do poeta.

Na capa, uma pintura de Ilda David'; no interior, um compêndio de desmesurada beleza, onde se reconhece o percurso poético de José Agostinho Baptista, que tenho vindo a acompanhar, desde há muitos anos.

Sem mais ruídos, deixem-se extractos da pureza vocabular e insular de língua portuguesa:
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«(…) Quando me ofereceste a cria do cisne, compreendi. Sem uma palavra, a olhar para o chão, timidamente, estendeste para mim a sua pequena forma, macia e quente. Na concha das minhas mãos, senti bater um minúsculo coração. Soube, de imediato, que o lugar do medo se ocultava debaixo daquela penugem onde despontavam as primeiras penas. (…)
Levaste a flauta aos lábios e sopraste longamente. Não era uma canção. Talvez o uivo do lobo, talvez o vento, numa harmonia despedaçada. Voltei a sentir outro calafrio e, silenciosas, duas lágrimas desceram, de cada lado, dos dois cantos que há em cada lado de duas ínfimas salinas. Parei, voltei-me para o horizonte e aí procurei, na face cobreada do poente, uma resposta, um sinal comovido da sua lonjura. Mas nada encontrei. Era apenas a tarde descendo algures, para o mar, para a linha que o céu faz com o mar. Era o tempo que passava.
Afastei-me, com a cria do cisne palpitando no peito, e durante horas procurei a sua morada. Perto do anoitecer, junto aos arbustos, descobri um ninho, e percebi, com uma alegria que desconhecia, que era a sua primeira casa. Aconcheguei-o, suavemente, como aconchego as lãs no Inverno da minha enxerga. Nunca mais saberia dele mas, um dia, ao ouvir o seu canto, não teria dúvidas. (…)» (p.44)
***
«Esquecerei tudo o que ouvi. Recusarei oferendas. Deitar-me-ei, nesta enxerga fria. Usarei, dia após dia, até ao fim dos meus dias, estes cubos vermelhos, pendentes, porque têm a cor do sangue do meu amado. Ao tocar-lhes, é como se tocasse uma chama e um incêndio, como se os meus lábios unissem as margens de uma ferida mortal.

Somos prisioneiros, pertencemos a um lugar. Não há outro. Como o caule à raiz, o fruto à árvore, pertencemos àquilo que tocamos, sem saber porquê. E andamos à volta, porque somos isso, uma nave que se move sobre um eixo indiferente e acelera a sua marcha à medida que os anos passam e as lápides se aproximam. Acendem-se as lâmpadas, nesse terraço que imagino, mas um labirinto selvagem permanece no coração, nas suas passagens secretas, cujos portões encerram, num estranho castelo de nuvens e vapor, a nossa inamovível solidão. Se quisermos, podemos partir para as estrelas fabulosas de uma noite austral. Se quisermos, podemos plantar ao amanhecer um jardim de plantas luminosas e muito brancas, podemos vaguear perdidamente, lembrar, esquecer, recomeçar tudo o que interrompemos da última vez.

Podemos tudo e não podemos nada. Somos tudo e não somos nada, marinheiros sem porto, cais sem navios, no litoral das casas. E as casas, como ganchos de um cabo de aço, longo e inquebrável, atam-nos, de pés e mãos, a um quarto, a um degrau, a uma cancela que abrimos e trancamos, noite após noite, ano após ano, distraidamente, numa inércia ancestral e cega. (...)
».
pp. 183, 184, 185

© Teresa Sá Couto

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