sábado, 9 de janeiro de 2010

A liberdade de escolher a morte


Haverá maior liberdade do que a de quem escolhe quando e como morrer? E não será exactamente a execução “ousada” desta liberdade, que nos impossibilita o entendimento sobre o suicídio? Como é o sol para aqueles que, no seu silêncio, transportam o projecto de se matarem? O que leva alguém a atentar contra si, a, pela sua mão, eliminar-se? Que direito temos nós de condenar a morte livre?

Atentar contra si – discurso sobre a morte voluntária de Jean Améry (pseudónimo de Hans Mayer), publicado em 1976 e editado recentemente pela Assírio&Alvim, é um extraordinário ensaio sobre o assunto, e um registo biográfico, porquanto o autor suicidar-se-ia dois anos depois, sendo este o seu último trabalho. Não carrega a apologia da «morte voluntária», apresenta-nos, sim, uma reflexão sobre a «insolúvel contrariedade da condition suicidaire para dar testemunho dela», um testemunho «além da psicologia e da sociologia», a perspectiva da morte voluntária de dentro, a partir dos suicidas e não de fora, da «óptica dos vivos ou dos sobreviventes».

Pedro Panarra, responsável pela tradução, posfácio e notas, diz que Améry «descobre o suicídio como acto paradoxal, mas não absurdo; paradoxal pois contrário à lógica da vida, mas não um sem-sentido.». Mais, refere o tradutor, «no embate com a morte voluntária, o encontro do paradoxo permite-lhe tentar a conquista do lugar que é o de todos os suicidas, seja qual for a sua situação particular.». Não se pense que o suicida não tem medo, escreve Améry: ele teme «o nada», teme também «a sociedade que o condena e que desencadeia uma acção para o salvar (ele é parte de uma minoria e por isso também um escravo colonial da vida)». No limiar da morte voluntária, no «momento do salto», há «as dores da separação» do corpo, esse que foi sempre o Outro, o descurado, diz Améry, e, «no momento antes do salto tomamos consciência do nosso corpo com uma intimidade até então nunca atingida. Em todo este processo é a cabeça que desempenha um papel fundamental»; o que atenta contra si, para se desfazer de si, «enceta com o seu corpo, com a sua cabeça, com o seu Eu, o grande diálogo, de uma forma que até nunca acontecera».

 «Finalmente pertenço-me»: eis a mensagem do suicida, mesmo sabendo que não colherá os frutos da sua resolução, cônscio de que aquela mensagem não chegará ao destino, por não haver destino. «A experiência da liberdade é esmagadora», diz Améry, acrescentando: «o domínio da liberdade não é livre, mas o caminho é um verdadeiro caminho na direcção da liberdade. Enfrentamo-lo para pôr fim à tortura e enquanto progredimos desistimos dos momentos de elevação, sempre a tristeza que acompanha a despedida, sempre o sentimento de ter lançado fora uma carga que era demasiado pesada. O que vier a acontecer passa somente a dizer respeito aos outros. Futuramente, eles farão de mim o que quiserem, votando-me ao esquecimento ou recuperando-me pela memória».


Temática profusamente tratada na literatura, a morte como libertação do inferno da existência e o suicídio como projecto surgem no romance Hans, do incontornável Hermann Hesse, no passo que transcrevo:

«Decidiu finalmente que seria ali que morreria. Voltou lá mais do que uma vez, deixava-se ficar sentado e sentia uma estranha alegria ao imaginar que não tardava muito que alguém ali o viesse encontrar já morto. O ramo ao qual prenderia a corda estava já escolhido e a força deste fora também já experimentada, não deveria surgir qualquer dificuldade. A pouco e pouco foi também sendo escrita uma pequena carta ao pai e uma outra, bastante maior, a Hermann Heilner, castas essas que deveriam depois ser encontradas junto do cadáver.
Os preparativos e a sensação de estar seguro do seu destino haviam exercido uma boa influencia sobre a sua disposição. Sentado sob o funesto ramo, horas houve em que do seu ânimo desapareceu por completo a tensão e quase foi inundado por uma alegre sensação de bem-estar. Também o pai reparou nas melhoras do seu humor e foi com uma irónica satisfação que Hans olhou a alegria deste em relação ao que via. A única razão da sua boa disposição era a certeza do fim que estava próximo. Nem ele mesmo sabia bem por que razão não se pendurara já há mais tempo naquele belo ramo. A decisão estava tomada, a ideia da morte estava perfeitamente assente, mas entretanto sentia-se bem e não desprezava a possibilidade que nesses últimos dias se lhe oferecia de gozar aquele belo sol e de se entregar aos seus sonhos solitários, um pouco como se costuma fazer antes de se iniciar uma grande viagem.». (Hermann Hesse, Hans, p.p. 147, 148; Difel, 2000)

* Ler texto de João Barrento na PHALA sobre esta obra de Améry.
 
 
© Teresa Sá Couto

11 comentários:

c.a. (n.c.) disse...

Um tema difícil. Escolhe-se a morte ou desiste-se da vida? É um acto da vontade livre ou um sintoma de grave doença? O meu instinto vai no sentido de concluir que uma consciência que se anula é, no mínimo, uma consciência em crise. Liberdade é outra coisa, parece-me. Ainda assim, e como sempre, gostei muito de ler. Obrigado, T.

Teresa disse...

Este post é apenas uma nota sobre o livro.
Aqui, nesta obra, defende-se que o sucídio é uma "afirmação de si, uma afirmação de um não querer activo; uma afirmação e um acto de libertação e não somente uma fuga". Acto sem-sentido, mas não absurdo, pois o que se mata procura pôr termo a uma situação de negação da vida, perda de dignidade, etc. Eu respeito os que o fazem e sei que a minha dor pelos que assim partem é uma questão unicamente minha que só eu posso resolver de mim para mim.

Teresa disse...

faltou o Abraço, C. :))))

TSC

c.a. (n.c.) disse...

Sim, sem dúvida, também há o que refere, as situações em que a morte significa libertação, porque a vida que se vive já não é vida. Por isso o tema é difícil.
Em qualquer caso, o respeito é sempre devido. O respeito é inerente à condição humana.
E claro que o post é apenas uma nota sobre o livro, aliás excelente, como sempre.

c.a. (n.c.) disse...

É verdade, T. , tem razão, esqueci-me daquele abraço! :-)))

Teresa disse...

sabe, o dado biográfico também vem subsidiar a reflexão sobre o assunto:um indivíduo lúcido que pôs termo à vida, num quarto de Hotel, com comprimidos, dois anos depois do Ensaio ser editado, e que já tinha tentado o suicídio antes.

Aconselho vivamente esta leitura.
Abraço
T.

c.a. (n.c.) disse...

E eu vou ler. Está prometido.
Abraço

Luís Sampaio disse...

Não tinha ouvido falar. Grande sugestão. Vou comprar, está claro!
Um abraço
LS

Maria Josefa Paias disse...

Teresa, este tenho que lê-lo e depressa, para conferir se há alguma proximidade com o que tenho reflectido sobre o assunto.
Beijinho.

Teresa disse...

um abraço, Luís
TSC

Teresa disse...

Faz muito bem, Maria Josefa. Vai ficar espantada com a forma "desempoeirada" com que o autor explana a questão.

Beijos
T.