segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O amor é para os parvos , de Manuel Jorge Marmelo

Confessar ao amor tudo o que o amor tem direito depois dele ter partido é ter uma experiência pungente. Porém, só quando o amor alui é possível enfrentá-lo, dissecá-lo, estudá-lo, ajustar contas com ele; depois do amor, sabe-se que «O amor é aquilo: caminhar às cegas no arame estendido sobre o precipício».

Estancado o amor, o tempo é de aridez, mas também de conhecimento. Manuel Jorge Marmelo apresenta-nos essa reflexão num livro de coragem e mestria narrativa. Uma ficção que mostra a verdade daquele laço complexo que ata o ser humano à loucura, ao vazio da alma. Um livro com o leitor dentro dele, a reflectir em uníssono com o narrador e a dar aquiescência à conclusão – menos prosaica do que parece –, que lhe cede o título: O Amor é para os parvos. E todos o somos, pois é consequência de vivermos e amarmos.

O Amor é para os parvos foi editado no ano de 2000, pela extinta Campo das Letras, e é agora reeditado pela Quetzal, numa altura em que o autor lança, também, pela mesma editora, o novíssimo e arrebatador Uma Mentira Mil Vezes Repetida.

Em O amor é para os parvos, Manuel Jorge Marmelo confirmando-nos os seus dotes de ficcionista, e de pintor de almas, com palavras. Depois do amor perdido, em solidão, o narrador enceta uma viagem ao passado através de um longo monólogo ou um falso diálogo (e falso monólogo) dirigido à amada que partiu deixando-lhe uma fotografia desbotada em cima do seu lugar vazio na almofada da cama de ambos. Falso diálogo, porque o Tu, elemento central da acção, dela se encontra ausente; falso monólogo, porque a expressão escrita adquire tom narrativo e descritivo, criando a vivacidade do diálogo, mais propícia à expressão de sentimentos que se pretendem descritos em cima da hora e em presença da amada. Partindo da questão que dá forma a toda a narrativa  - Lembras? -, entrelaçam-se-lhe muitas outras questões num apelo constante à amada e ao entendimento de um amor perdido: Porquê?, Para quê?, Não percebes?, Entendes?, E tu?..., enformando o estilo coloquial que confere vibração à leitura, e para a qual concorrem outras técnicas, como a do narrador recuperar com as palavras os momentos da paixão que as dispensou, por bastar-lhe o «idioma topográfico da epiderme transpirada»:
«Dois corpos. Dois corpos não carecem de mais do que da fugidia linguagem dos sussurros, dos beijos que eriçam a pele, dos arquejos que preparam a doce deflagração de um amplexo», lê-se. Porém,o sujeito só sabe que o preço da entrega foi elevado, quando se despenha. Na solidão fria surgem as perguntas, as dúvidas, as contradições do amor: «mas o amor limita-se à conjugação de dois substantivos?».

A reflexão espraia-se pelas etapas e formas da consciência do amor que parece não se bastar à carne evanescente e, depois de duas bocas «estarem demasiado próximas para que qualquer vocábulo possa ser dito», importará mais: «não era já esse o amor que eu queria para nós. Havia de ser um amor pleno, de corpo presente, e, para tal, era preciso que visses tudo o que era essencial ver, que soubesses realmente quem eu sou e o que fica nos bastidores do meu recolhimento. Mostrei-te, por isso um poema. O poema que não achaste lindo e que te pôs no rosto um par de olhos escancarados.». O poema mostrava pedaços de alma, segredos. Falava, não sobre a ilusão do amor, mas sobre a vida real, sobre a morte: o apaziguamento do Eu que escolheu um local para se um dia se quisesse suicidar, um local bonito, onde a cidade desagua, onde a vida se liberta. Um segredo mal compreendido que lhe terá custado o amor? Também por esta vertente, o autor lança a reflexão que contrapõe o sublime do amor partilhado ao esvaziamento da vida corrente, e de que forma amor e vivência quotidiana podem coexistir.

As razões da memória

O timbre e o ritmo do destino seguem o tombo de todos os laços desfeitos; de trambolhão em trambolhão, vai-se desvelando a vida do narrador. A escrita resgata a memória da meninice, busca a identidade do sujeito  que é «todo coração.». Todavia, a memória da meninice é lisa, branca, um «mundo de leite, mas seco», um «absoluto nada» e reconstrói-se apenas pelo que o Eu ouviu contar. A repetição cadenciada dá o tom lancinante da frustração: «Apagou-se tudo. Tudo. Tenho tentado tanta vez recordar alguma coisa, mas não me lembro de nada. Nada.». A avalancha da memória deixa «sedimentos mais no sangue que na razão» e, às vezes, acorda de noite, «encharcado em suor, com um grito estrangulado na garganta, apavorado por um sonho que não sonhei, sem imagens, sem sons…um sonho vazio de tudo, excepto de pânico».
Filho de Alberto, pai que o abandonou em pequeno e mais tarde se suicidaria, e de Augusta, mulher demente que o tentou matar várias vezes – também ela crescera, como ele, «amputada desse membro invisível que é o amor de mãe» –, o narrador abre as janelas da sua «vida empoeirada», recupera os espectros do passado, e mostra-se à amada, incluindo-a, assim, na sua história de equívocos:
«Dou à memória uma razão para que exerça a sua condição de arquivo de existências, reconstituindo-te, recompondo-nos, voltando a colocar a cabeça em cima do teu corpo nu.».

A técnica de apelo a uma entidade ausente está também na convocação do leitor chamado a testemunhar o processo da escrita: «Está aí alguém? Nenhuma resposta. Silêncio, apenas. Não te vejo e, contudo, pressinto que estás aí….por isso escrevo. Escrevo e apago. Escrevo e apago. Escrevo e apago.». O leitor está presente e, atento, reflecte sobre se «O Amor é Para os Parvos»: basta imitar o narrador e questionar a própria memória: «Lembras?». As recordações virão em estrépito e as respostas serão, quiçá, demolidoras.

O Amor é para os Parvos, Manuel Jorge Marmelo, Quetzal, 2011


*outros textos meus sobre obras de Manuel Jorge Marmelo AQUI

© Teresa Sá Couto

1 comentário:

Lícia Dalcin disse...

Fantástico. Amor: sina, estupidez, ensaio da amargura - e amargura culposa. Nós no mundo a deixarmo-nos levar pela mão - antes fosse um amparo por mão de mãe a horas antigas de estar à mesa!