sábado, 3 de março de 2012

Ano Comum, Joaquim Pessoa

(Texto que serviu de base à Apresentação Pública, de 10 de Novembro último, em Lisboa, editado no sítio da Orgia Literária).

Ano Comum, de Joaquim Pessoa, não é um livro de poesia, embora contenha alguns textos em verso, muitos em prosa poética, e seja a poesia a raiz de todos eles; não é um Diário, não obstante a disposição diarística dos textos assumidos por um Eu que, fragmentariamente, se vai construindo num puzzle de interioridade. Como o título denuncia, Ano Comum é um tempo de encontro de um Eu que se confunde com um nós e se dirige a um tu, com palavras carregadas de vozes, sendo as suas 386 páginas brancas o lugar nítido onde a invenção acontece.

A matéria temática, o carácter dialógico, as estratégias da enunciação, a nitidez vocabular, que confere profundidade aos textos, são as chaves de Ano Comum.
«Subscrevo a chuva e as bibliotecas. Adoro o cheiro da terra e dos livros.», lê-se no Dia 333, onde se assume a «relação relação íntima e espiritual» entre «o cheiro da terra molhada» e a palavra, e se evidencia o caminho de quem vê e sente nas mãos a luz do real envolvente; falo da matéria vivencial depurada e transfigurada pela imaginação artística, de quem interpreta a realidade, quer compreender as coisas e, por esse entendimento, encontrar o seu lugar no mundo.

Na construção do caminho de luz, coopera a característica dialogal: a voz é objecto da escrita de um duplo do Eu, a voz do leitor implicado tacitamente no texto por quem segue na vida sentindo e interpretando o átomo que lhe pertence e que é o mesmo que pertence ao outro, desvendando a voz oculta, a lava subterrânea, procurando sempre «várias maneiras de chegar ao mar». Desde sempre, na obra de Joaquim Pessoa, a palavra diz mais do que diz, porque é a palavra de todos.
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Esta característica dialogal da obra de Joaquim Pessoa entronca, estimulando e recebendo estímulo, noutra grande característica: movimento de procura da unidade, movimento que desagua em Ano Comum com 365 textos, correspondentes ao número de dias de um ano, e o título a declarar a unidade. Este movimento encontra-se na tessitura semântica, para prazer do texto, como queria Roland Barthes, na sintaxe simples e expurgada, onde o sensível se cruza com a fraternidade e onde, conceptualmente, o futuro habita, na variedade formal de textos, nas cadências vibrantes para sedução da leitura.
Sabendo-se que a luz do conhecimento só se alcança com amor, este tema executa-se, então, nesse grande movimento em direcção à unidade: «a casa do amor é uma lavandaria onde tornamos mais claros os olhos», lê-se no Dia 78, dito com toda a plenitude no Dia 51:

Invento hoje para ti este falso poema de amor egípcio: “A tua casa é o meu coração e o teu perfume enche de nostalgia as minhas noites. Pelos meus braços vens caminhando nua, com a doçura da gazela e a brevidade suicida das flores do hibisco. O meu coração dá abrigo a um grande amor, como a palmeira protege as tâmaras dos ventos do deserto ou a romã se transforma em cofre para guardar os seus rubis. Não há armadilhas montadas no percurso que te leva à minha cama, e nada será perturbado pelo júbilo de beijar todas as sílabas que a tua boca pronuncia. És em mim. Estás em mim. Há-de o meu coração ficar em ruínas e, assim mesmo, defenderá o teu corpo, a tua vontade, e o teu sorriso que tem a envergonhada cor da flor do lótus. Há-de o meu coração calar-se, mas esse silêncio não impedirá a promessa de uma eterna noite de amor."

Doutra parte, a interpelação desassossegada do mundo levada a cabo pelo Eu que irmana o leitor no seu olhar e na questionação das derivas que condicionam o homem na sua existência, instiga a escrita humanista e reivindicatória em torno de ideais de liberdade, fraternidade, solidariedade, que desafia à tomada de consciência, semente da actuação – com ressonâncias do poeta chileno de O Canto Geral, Pablo Neruda.

«Tens de levantar a cabeça do microscópio. Já chega de observar uma realidade minúscula que a simples utilização dos olhos não reconhece», lê-se no Dia 86 numa reacção contra os horizontes fechados e o consequente conformismo submisso.
Para que os olhos se impregnem de realidade, solta-se a palavra que denuncia a opressão – e é voz de oprimidos –, que reage contra a miséria, o «triunfo da mediocridade», a injustiça, o oportunismo, a hipocrisia, enformando textos lúcidos, crus, sarcásticos, irónicos, sonoros, como o do Dia 295:

No meu país de pachecos safam-se os parentes, os papalvos, os palermas. Perfilam-se os padres, perde-se o pudor, prefere-se o penacho, pede-se paciência, pinta-se o pior, publica-se o pastel, pertence-se à pandilha, perfila-se o partido, promove-se o pelintra. Perguntas-me: porquê? Porque no meu país de prados, pachecos e outros piolhos públicos, se permite toda a patetice, se promulga toda a pulhice, e se perdoa toda a porcaria. E pronto. Procuram pisar-te. Neste portugal dos pequeninos pagas portagem para tudo. Se pias, proíbem-te. Se não pagas, penhoram-te. Ah, pois!.

É, ainda, e sempre, a palavra de revolta, um canto de propagação da esperança e, neste sentido, um canto de amor: «Enquanto o melro cantar, tu sonharás. Os grandes pensamentos não estão ensopados de sangue nem se acomodam nas pilhas de dinheiro. A primeira palavra da noite é “dia” e a vigília é um preço justo pelo vento. […]», lê-se no Dia 99.
 
No alvoroço criativo do vento, o Eu dialoga com outros autores, que ele nomeia directamente nos textos, incorpora-os no seu mundo, procurando-se a si mesmo e desvelando-se nessa procura: «Como Walt Whitman, acredito que regressarei à Terra dentro de cinco mil anos. Ou talvez menos. Não receio afirmar isto. Ou será que as coisas que dizemos hoje nos podem perseguir amanhã? […] Como Éluard, quero entregar o meu coração ao vazio e o vazio à minha vida. E aprender como se sobe caindo, para morrer cheio de vida e partilhar essa vida com a morte […]» (Dia 54); «Montale diz que se tornou igual a um absorto pescador de enguias da ribeira. Eu sinto-me igual a Montale. Alguns milhares de pessoas sentem-se iguais a mim» (Dia 327); «Também eu amo os ácidos, os gumes e os ângulos agudos. Também eu caminho sangrando, ferido pela minha própria ironia, com a face de Deus perdoando as minhas lágrimas. Leio devagar as tuas palavras sem poder sequer aspirar à solidão.», lê-se no Dia 185, numa clara intimidade com Cesário Verde.
 
Concluindo, com retorno ao título, em Ano Comum, o Tempo é cifra aglutinadora – por isso recusa a «plataforma de um ano bissexto» – de vivências íntimas, desafios, desejos, ganhos, extravios e sonhos, num projecto vocabular comprometido com o futuro ou dito assim, no Dia 291: «Sou o teu coração e por isso te guio nesta floresta de palavras. O que nunca te disse não importa agora, está fora do meu manual de estratégia. Sim, porque só um coração possui uma estratégia do impossível e a memória agradecida de um mendigo. Vamos. O amor é uma grande viagem.» .

© Teresa Sá Couto

Ver o Posfácio a Ano Comum, AQUI

1 comentário:

Lícia Dalcin disse...

Não sei de nada. Ninguém o sabe. O nada. O mistério sim, sabe. De tudo. De nada. Eu, não. Por isso, delicio-me nas ânsias que procuro em palavras as quais lutam em autêntico desespero para assumir a própria falha. Aventurar-se em dizer é permanecer na escravidão da palavra - parca em si só. Por que se vive de resolver isso? De tentar desesperadamente resolver isso? Embaralha-se tudo novamente, corta-se. Depois, a espera e o mistério que se faz; insanamente e insistentemente se faz pela brutalidade de mãos talhadas em carne.
Em tempo: maravilha!