quinta-feira, 28 de novembro de 2013

FLY: O enigma da voz

Há muito fora do mercado, porque esgotada, a obra Fly, de Joaquim Pessoa, está finalmente reeditada, altura em que se celebram 30 anos da sua publicação. Com a chancela da Edições Esgotadas, a presente edição, de luxo, com capa dura e sobrecapa, contém cinco trabalhos de ilustração de João Concha e Introdução Crítica minha.  É este texto que aqui disponibilizo.


(Fly, 2013, sobre a edição de 1983; seguem-se as três ilustrações do interior e a ilustração da contracapa)


Apresentação do FLY, de Joaquim Pessoa, no Barreiro. Na imagem, da esquerda para a direita, eu, Joaquim Pessoa, a vice-presidente da Câmara do Barreiro, Teresa Adão (directora da Edições Esgotadas) e Carlos Mendes.


O enigma da voz

É esbelta a sombra, belo o abismo:
Tem cuidado, meu filho, com certas asas
 que roçam O teu coração.

Antonio Gamoneda (1)


Há trinta anos, «Rã Evinha vinha de parir» o filho morto, e trazia a sua casa azul que se movia: evidenciava-se que a mãe inspiração dava à luz a memória com que se edifica a casa da poesia. Hoje, futuro daquele passado e presente do futuro, intersectamo-la no seu contínuo movimento para respirarmos e sentirmos com ela a dor de um dos partos mais belos da literatura portuguesa.

«Estranho Fly», «óptima definição metapoética da poesia, como discurso que parece querer dizer algo e afinal não diz mais do que a necessidade imperiosa de dizer», escreveu Roxana Eminescu, em 1986 (2), em recensão crítica. Editado em 1983, e com a 2.ª edição em 1985, pela Litexa Editora, Fly tem, todavia, a nascente do seu inquietante caudal simbólico em O Livro da Noite (Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores e da Secretaria de Estado da Cultura), editado pela Moraes Editores, em 1981.

O texto de Fly é percorrido por fios, linhas de água, braços de vento, rastos cósmicos num movimento incessante a dar unidade às suas três partes: o reconhecimento do rumor da voz, o trabalho da inspiração – «fêmea tecedeira, branca» – sobre a memória, e a passagem de testemunho. Fly é uma asa afiada que, como lâmina, corta o ar, submerge, transforma, reformula, muda, recupera o tempo da memória, «poro a poro» num «trabalho forçado do pensamento». Por isto, Fly é um «Lume escuro, corvo a corvo, esse livro terrível», é o lume de uma alegria escura, é um lugar íntimo do barro onde o «Boi-sol», «animal da ansiedade», rompe como uma centopeia e agoniza no «vespeiro de palavras», é a «Luz, luz e lâmina, a crina da névoa desce /aos ossos como o futuro, leitura vagarosa, /embrião de próximas estrelas. /Num cálice de nuvens a tempestade estala e atemoriza o coração. //É o touro, a máscara, a lentidão, o peso», assim referido em O Livro da Noite (3). Na prodigiosa capa de João Concha, autor de todas as ilustrações desta edição, e com as chaves do texto, é possível divisarmos o esplêndido Touro símbolo de Zeus, o ajuntador de nuvens essenciais da criação, ou surpreendermos a imponente constelação de Taurus com as suas híades e plêiades urdidoras das chuvas que tombam de nuvens onde adejam pássaros, e que a policromia do preto e branco nos sugestiona serem azuis.
Enquanto no espaço cósmico, Orion, o ufano caçador, desafia Taurus, no texto, a imaginação luta com a poalha branca da memória, «as palavras inúteis são a caça», e o «fogo» sobe cego para a «cara das estrelas».

No «objecto longo da memória», que é Fly, há um homem no umbral lutando com o «vazio atordoado» das mãos, portanto, um homem que transforma as mãos: o umbral a transpor simboliza a saída para a realização poética, para a luz; por sua vez, o vazio é um espaço de liberdade. Estão reunidas, pois, as condições para a fabricação do fogo, da palavra sanguínea «como escuro animal, das últimas sombras de um jardim interior.». Para nascer, o homem tem de romper o invólucro escuro, o «ovo de cansaço» onde se encontra, dobrado sobre si mesmo, ideia plasmada na primeira ilustração do interior, de arte maior. Diz María Zambrano que «nascer, no sentido primário e em todos os outros possíveis sentidos, é constituir-se na autonomia do próprio ser. Portanto, afrontar a luz e o que nela acontece: ver e ser visto para começar. A luz é o lugar da suprema exposição para o homem» (4). Porém, a claridade é uma «flor carnívora», e por isso a verdade virá encoberta por uma névoa espessa que envolve tudo, símbolo da espessura do silêncio poético, que puxa o leitor para o abismo do texto e da sua própria intranquilidade. Desta forma se veicula o enigma da palavra que tem de nascer, porquanto se esconde no mesmo instante que se revela; acresce, como referiu George Bataille, que «não poderíamos imaginar contradição mais obscura, com melhores características para assegurar a desordem dos pensamentos.» (5). A ideia de obscuridade relaciona-se também com a de impossibilidade de realização, e ambas estão patentes no enigma do poço de Bernardo Soares: «Nós nunca nos realizamos. Somos dois abismos – um poço fitando o céu» (6). Contudo, a imaginação é um caminho da água, consequentemente, uma rebeldia, um instinto contra a morte; William Blake escreveu que a Imaginação «é a própria Existência Humana» (7) e, em Fly, o «sangue todo» empenha-se no nascimento da voz, nascimento que exige desnudamento e dor:

Saborear-te os nervos, poço a poço,
ó pedra das moléculas perfeitas; comer
os versos e os ossos, pouco a pouco, Fly, e ler
a carne tenra da flor da amendoeira; in-
comodar-te; e renascer de ti – das
cinzas que deixou a tempestade – , ó luz
que dói de espasmos de ar, por sermos pobres
os dois, ó mãe, ó Fly, e um de nós
ter de parir, nu, no interior da voz.

Sendo a imaginação uma casa – a memória usa a imaginação para lembrar o que não sabe, para despir a dor e o delírio, para recompor o tempo e a distância – há que compreender a casa, os seus corredores fundos, escusos e escuros, há que enfrentar o medo: «para romper a solidão, atrever-se-iam os cardos» em «metros de penetração na morte», «profundidade (da ferida) que nada esclarece mas tudo pressagia», diz-nos texto em busca da fundura insondável, «do fundo ilimitado que antecede a visão e a projecta», segundo Ramos Rosa (8).

Tratando do que se perdeu, a memória intensifica a noção de morte. Daí a centralidade da noite na revelação do ser e das suas impossibilidades: «O calor da noite desenterrava moedas, causava febre, quase fazia espuma na pele martirizada»; a noite desvenda o que a manhã oculta: «a noite moveu raízes de choro que a manhã escondeu» e «uma raiz é também um barco navegando em profundidade até tocar outros dias, outros deuses, outros nadas.»; a noite arrima «a palavra calada de um enforcado até acima, onde o sol não entende»; é na noite que «a água cantara, com voz de mulher» – que podemos ter como a imaginação, a inspiração, a poesia; é na solidão da noite que o vento, esse «aluvião turvo», volta para parir um filho morto. Também a associação «cinza fresca» é um princípio da memória em transformação: «Só o teu corpo me interroga /como cinza fresca». Em Fly diz-se claramente que o que exulta é o que fere, o que desafia, e não o que fascina, o que obedece.

De onde nos vem «este dom de morrer, esta potência /degoladora da dor»?, perguntou Gamoneda (9); «O medo solta /os cavalos do amor e as últimas pombas. /O azul é, decerto, a memória de outro céu profundo // Antes, muito antes do fogo, como arderam as lágrimas?», lê-se em O livro da Noite para em Fly se confirmar a transmutação da dor em prazer estético: «em todos os medos e em todos os tempos, Fly, atingiremos a luz, o orgasmo dos sinos.». Assim, em Fly «o tempo é herói» que enforma o informe acoitando-o no poema, o tempo é «mendigo, pó amarelo, depois chuva ou alecrim, mais tarde um fogo liso como um peixe», e o poema será um «pássaro verde» que poisa na folha branca e assobia «para dentro» ou será «água verde» de um pássaro azul que não sabe fugir do seu voo; uma necessidade também dita assim:

 […] e defendo-me
  da fome que em teu útero me aquece:
a memória dos ossos de onde venho
e que nas feridas do corpo se abastece.

Produto humano, a palavra surge como espelho onde se interroga o mistério de se Ser: «a tua nudez me desabrigou e me fez tiritar diante do meu corpo, como num espelho de água. Ouve-me agora quando ao falar de ti me reconheço». É este «vento de espelhos» que encontramos na segunda ilustração onde pulsa um coração negro e rutilante, embutido numa falésia, com amplas janelas espelhadas, coração que serve de miradouro ao homem.

Se a imaginação é uma casa, a pele da imaginação é o mapa da criação da palavra, um mapa prenhe de caminhos que se percorrem incessantemente, «uma carta na água», um «horóscopo do orvalho», rotas de uma peregrinação e, sobretudo, um mapa com o regresso do outro de nós: «[…] de qualquer modo irei/onde sei que não vou porque estou lá; /cansado de cansar-me ramo a ramo/ (na carne contrafeito, no tempo contradito), /[…] Gostando destes ninhos/onde as palavras pedem alimento».

Atentando no carácter labiríntico e disfuncional do texto, Roxana Eminescu escreveu, na recensão já aqui indicada, que «as palavras parecem soltas, as frases desligadas umas das outras, como um discurso psicopata, um discurso partido por dentro, que parece tornar-se poesia por acaso». Também a euforia e a disforia que presidem ao nascimento da voz dão ao texto o tom de loucura, como se a voz fosse originária de um sujeito demente ou possuído. Será o caso de privilégio divino dos poetas, como o enunciado por Platão: os poetas «não passam de intérpretes dos deuses, sendo possuídos pela divindade, de quem recebem a inspiração», pois o poeta é uma «coisa leve, alada, sagrada, e não pode criar antes de sentir a inspiração, de estar fora de si e de perder o uso da razão» (9) ; estar possuído e em delírio, «in louco, embriagado, allegro andante /cheio de sangue e chuva, neste quarto /que me azulou os olhos de castanho», palavras com que o sujeito poético se autocaracteriza.

Fly parte de substantivos genesíacos, como água e luz, adeja em sombra e vento, rodopia num jogo inventivo de contradições formantes do enigma, contradições que reflectem a errância humana e criadora e que consubstanciam a própria poesia. Em Fly, a imaginação tortura a água da memória e é dessa água torturada que nasce o grito silencioso do poema. É este grito essencial que nos é exposto, também, na terceira ilustração. Ainda, na ilustração da contracapa, a escada a ligar águas, as do esquecimento – onde estão as recordações –, e as da memória recuperada, as da morte e as da vida, com os degraus à espera que outros os subam em busca da sua própria interioridade, os degraus erguidos pelo texto: «na interpelação de nós outros saberão recomeçar».


Teresa Sá Couto
Lisboa, Outubro de 2013


Notas:
(1) Antonio Gamoneda, Oração Fria, Assírio&Alvim, p.145
(2) Roxana Eminescu, Colóquio Letras número 91, Maio 1986, p.93
(3) Joaquim Pessoa, O Livro da Noite, Moraes Editores, p.16
(4) María Zambrano, O Sonho Criador, Assírio&Alvim, p.p.110-111
(5) George Bataille, As Lágrimas de Eros, Sistema Solar, p.50
(6) Bernardo Soares, O Livro do Desassossego, Assírio&Alvim,p.48
(7) William Blake, Milton, Antígona, p.179
(8) António Ramos Rosa, A Impossibilidade da Construção, JL, 7 de Maio de 1991
(9) Antonio Gamoneda, ob.cit., p.31
(10) Platão, Íon, Inquérito, p.51

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