quarta-feira, 15 de abril de 2009

Imperecível «Sedução» de José Marmelo e Silva

São raras as narrativas que resistem à poalha do tempo. Esculpida há 50 anos com fogo sobre a pedra, reeditada em 2007 pela Campo das Letras, Sedução de José Marmelo e Silva (1911-1991), comprova o seu imperecível fulgor. O seu autor, incompreendido no seu tempo, viria a ser condecorado em 1988 pelo presidente da República com o grau de Comendador da Ordem de Mérito. E é o mérito literário que nos avassala na leitura de cada página da sua escrita.

Sedução é publicada em 1937, seguindo-se Depoimento (1939), O Sonho e a Aventura (1943), Adolescente (1948), Adolescente Agrilhoado, 1.ª edição acrescentada (1958). Em 1968 publica O Ser e o Ter seguido de Anquilose, e em 1983 Desnudez Uivante. Além deste Sedução, acabou de chegar às livrarias Adolescente Agrilhoado – do qual darei, aqui, conta – também pela Campo das Letras que tem, ainda, editada a Obra Completa de José Marmelo e Silva, com o título Não aceitei a Ortodoxia. Um compêndio de fascínio, garanto!

Considerada «Obra-prima», por Baptista Bastos, narração da «força do desejo», por Urbano Tavares Rodrigues, um «livro de combate, um livro indisciplinador», segundo José Saramago, «Sedução» define, descarnando, a obsessão sexual, alcançando, arrojada e ironicamente, a repressão de uma sociedade machista e hipocritamente asséptica. Deixarmo-nos seduzir pela obra de José Marmelo e Silva começando pelo seu título de estreia é permitirmo-nos o espanto e a felicidade desmedida de uma leitura excepcional.

«Há no amor ignorâncias subterrâneas. Há muito que aprender no livro do Eros», lê-se neste Sedução, onde irrompe, sarcasticamente e com ironia inaudita, a questão ainda actual, que espanta ainda mais pela época em que foi escrita: a dos homens presos na sexualidade machista e as mulheres presas na repressão sexual de uma sociedade comandada pelos homens.

Eduardo, o magistral narrador da história, e Noémia são dois irmãos, ela mais velha dez anos, filhos de um homem com quem a mãe casara contra vontade e que morreu louco depois de delapidar o património da família. Noémia ficara solteira, consequência de ter sido abandonada pelo noivo, a mãe vivia numa «apatia quase santa, quase seráfica» e cabia a Noémia – que deixara a aldeia junto à Serra para exercer advocacia em Coimbra, e que, amiúde os visitava – os comandos económicos da família. Eduardo, o homem da casa, nunca aceitara este domínio feminino da irmã – tendo-o como «o jugo de Noémia» – que apresenta como sendo «mirrada, abstinente, horrivelmente feia», com «tíbias tortas, descarnadas» e «mesmo algum bigode…uma carcaça a andar».

Definindo-se como «um inadaptado, um malandrão», Eduardo, que tem pretensões de escrever um «livro irónico», que já tinha o título «Almas sem vida, vidas sem Alma», ocupa-se «numa lojazinha de fazendas» na aldeia e com o orgulho dos seus vinte e quatro anos refinados no machismo, crente da sua infalibilidade com as mulheres, como o próprio declara: «prezo-me duma problemática amorosa calculada, e é o que importa (…) além disso, Eduardo é moreno e musculado (estou a vê-lo separado de mim mesmo); palpita uma sensualidade poderosa e máscula em sua boca e em seus olhos. E não há horas do diabo em que estas singelas coisas complicam tanto as mulheres? Seria irrisório! Estar uma rapariga em minha casa e não a fazer gostar de mim!».

Na sua «seriedade de homem», Eduardo tem o seu «mundo de raparigas meigas e bonitas»: «como Laide, Berta, Helena, Julinha, Leonor ou outras, – que eu sempre amei e continuo a amar de harmonia com seus dotes, visto que sou justo. A todas distribuo a minha ternura, a todas acaricio, se mo permitem, – de todas gosto humanamente. Hipócrita seria eu, se afirmasse que me sinto menos homem diante de qualquer uma, exclusive.». A Marta, que se queixa de serem as mulheres vítimas da falta de escrúpulos dos homens – jovem que acompanha Noémia numas férias à aldeia –, Eduardo responde: «Você não admite que o aperfeiçoamento humano precise… como direi? de quem se sacrifique?».

Mas o império de Eduardo ruiria durante aquela visita da irmã. Esperava-o um «ardiloso ataque de bruxaria» perpetrado por Noémia que criava uma cumplicidade com as mulheres de Eduardo, contra o despotismo masculino, e, num ápice, todas elas passam a renegá-lo.

Entre o desejo e o escrúpulo

«Haveria um segredo no sexo de Noémia» para atrair assim as outras? Que Sedução seria a de Noémia que lhe roubava o reino? Ferido no seu mais fundo orgulho, Eduardo mostra a torção do Eu, num duelo interior entre o desejo, a tentação e o escrúpulo, entre a raiva violenta contra a irmã – «Megera! Coruja!» – e a vontade de lhe pedir desculpa pelos seus julgamentos: «Eu era o tirano, o egoísta, e julguei-a a ela por mim»; «pela primeira vez se apoderou de mim o terror, o medo poderoso; medo de mim, medo do homem mau atento à vingança, que todos trazemos connosco, corporizado ou em embrião, e se enrodilha nos subterrâneos do ser.».

Confrontado por outro homem sobre a homossexualidade da irmã, que lhe diz que ela em Coimbra tem «as que quer» e que ainda lhe há-de roubar as que ele tem por mania de se gabar, sente repulsa pelo homem e ao mesmo tempo por si: «amarfanhado, mesquinho, despersonificado, encarnava aquela figura viscosa que pela manhã eu tinha surpreendido em mim, num desvão tenebroso».

Todavia, estropiado no seu machismo, com o sexo senhor dele, «carne mordida das mil fúrias açuladas», quis vingar a tirania de Noémia. Enlouquecido, revista o quarto da irmã à procura de explicações para o seu inexplicável desvario, que se soma à visão de um quadro lésbico, com a irmã rodeada pelas carícias das outras mulheres, as que foram suas, todas numa entrega fiel. Um quadro real ou fruto do seu delírio?

Comummente considerado o «libertador do amor», José Marmelo e Silva derruba, em apenas 158 páginas deste Sedução, todas as grades do desejo e dos preconceitos sexuais. Escrita no tempo das trevas moralistas do salazarismo, a obra continua a atingir mentalidades e condutas munidas com as respectivas máscaras da hipocrisia.

Sedução, José Marmelo e Silva, 7ª edição; Editorial Campo das Letras, Porto, 2007

© Teresa Sá Couto

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