segunda-feira, 17 de agosto de 2009

123 anos com Cesário Verde

(Texto editado hoje no sitio da Orgia Literária)
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Cesário Verde arranca facilmente paixões a quem o lê e, sobretudo, a sensação persistente do muito que há por descobrir no olhar do poeta que assim clamava: «Ah! Ninguém entender que ao meu olhar / Tudo tem certo espírito secreto!». Trata-se de um olhar cheio de realidade que apreende uma Lisboa antropomórfica, dos sentidos apurados, da luz e da transfiguração que esculpem a poesia, da contundente crítica social, do pungente retrato da condição humana, que ele nos deixou, a título póstumo, num diamante poético magistralmente lapidado: O Livro de Cesário Verde.

Criticado e desprezado no seu tempo – pelo «sentimento dum ocidental» de estilo novo, à maneira de Baudelaire e dos parnasianos, que chocou a enquistada elite cultural do Portugal oitocentista –, Cesário disse: «Hei-de mostrar, tão triste e tenebroso, / Os pegos abismais da minha vida. (…) E eu hei-de, então, soltar uma risada…». E nós ouvimo-la, real, intensa e sonora através de uma poesia onde o prosaico e a reportagem artística se convertem em grande literatura.

José Joaquim Cesário Verde nasceu a 25 de Fevereiro de 1855, em Lisboa, e morreu precocemente a 19 de Julho de 1886. A tuberculose, vulgo tísica, que o vitimou, aparecia como o epílogo de uma geração que, assim, se esvaía: «E que fazer se a geração decai! / Se a seiva genealógica se gasta! / Tudo empobrece! Extingue-se uma casta! / Morre o filho primeiro do que o pai!».
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Neste contexto de morte que assolava o Portugal de oitocentos – a juntar epidemias de febre-amarela e Cólera –, a poesia de Cesário aparece como baluarte de resistência às trevas, um grito de sobrevivência num projecto intemporal: «Se eu não morresse, nunca! E eternamente / Buscasse e conseguisse a perfeição das coisas…». Iria encontrar a perfeição na poesia de palavras «salubres e sinceras», com que transfigurou a realidade imperfeita. Poeta Realista, Cesário deambulou no real urbano, na cidade de Lisboa, captando-lhe retalhos de vida; Impressionista, fez do cosmopolitismo doentio quadros pintados «com letras e sinais», luz e sombra, cheiros e sons: «Eu tudo encontro alegremente exacto, / Lavo, refresco, limpo os meus sentidos / E tangem-me, excitados, sacudidos, / O tacto, a vista, o ouvido, o gosto, o olfacto.».

Considerado o representante do Realismo Poético português, por retirar “toda a palha” à observação fiel, o seu exercício sobre o concreto é, no entanto, apimentado pela ironia e pela crítica sagaz e acutilante de quem tinha «riquezas químicas no sangue» e se revoltava com o que olhava. O «aconchego», a «vida fácil» dos burgueses e a «nódoa negra e fúnebre do clero» foram alvos da sua repulsa e, portanto, sujeitos à aclaração ou caso de «Manias!» de um poeta atento e crítico para quem «O mundo é velha cena ensanguentada, / Coberta de remendos, picaresca; / A vida é chula farsa assobiada, / Ou selvagem tragédia romanesca.». Em vivas «Horas mortas», denuncia um presente de vida falida, de frustração, de decadência colectiva, de um Portugal morto-vivo: «Mas se vivemos, os emparedados, / Sem árvores, no vale escuro das muralhas!… / Julgo avistar, na treva, as folhas das navalhas / E os gritos de socorro ouvir, estrangulados.». São os «nebulosos corredores» da sua magistral poesia que capta, como nenhuma, a desagregação existencial: «E, enorme, nesta massa irregular / De prédios sepulcrais, com dimensões de montes, / A Dor humana busca os amplos horizontes, / E tem marés, de fel, como um sinistro mar!».

Nascido em berço burguês, via, no entanto, nas classes mais desfavorecidas a razão de Portugal, a vida da cidade, a energia portentosa dos seus versos. O trabalho dedicado dos humildes é recriado poeticamente em «Cheiro salutar e honesto ao pão no forno», e as mulheres irrompem com um poder quase místico: «Vêm sacudindo as ancas opulentas! / Seus troncos varonis recordam-me pilastras; / E algumas, à cabeça, embalam nas canastras / Os filhos que depois naufragam nas tormentas.»

No poema «Cristalizações», Cesário denuncia a opressão das classes trabalhadoras: «Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas! / Que vida tão custosa! Que diabo!». Segundo o poeta, esta é uma realidade imutável, um desígnio delatado assim: «Povo! No pano cru rasgado das camisas / Uma bandeira penso que transluz! / Com ela sofres, bebes, agonizas. / Listrões de vinho lançam-lhe divisas / E os suspensórios traçam-lhe uma cruz!».

A mulher e a sexualidade

Figura central na poesia de Cesário, a mulher é muito mais do que a catalogada em “Mulher Anjo” e “Mulher Demónio”, como é ensinado na Escola portuguesa. O autor de «Ó áridas Messalinas» apresenta a mulher numa negociação da masculinidade como uma posição sexual, ela vem preencher o lugar do Outro, o lugar de inscrição da sexualidade do poeta. Por outro lado, a existência de mulheres de traços masculinos (como as hercúleas varinas de «O sentimento dum Ocidental» ou a vendeira de «Num Bairro Moderno») surgem com poder mítico a sublinhar o drama da identificação do corpo com um género sexual.

Abordando as temáticas da sexualidade e do papel da mulher na poesia cesárica – a cândida e virginal, mas também a lúbrica, a sensual, a libidinosa, as mulheres desprezíveis, mas atraentes –, Hélder Macedo (num artigo de 16 páginas, editado no livro Cesário Verde – Visões de Artista, da Campo das Letras, que reuniu as comunicações do colóquio dos 150 anos do nascimento do poeta) apresenta-nos leituras, desvela-nos significações metafóricas, surpreende-nos com o arroubo secreto dos textos.

Por exemplo, enquadrando as metáforas de “barco” ou barca – que significam a fálica sexualidade masculina – e “mar” – que transporta a «húmida sexualidade feminina», o ensaísta apresenta-nos uma leitura do soneto «Heroísmos», título «algo irónico» que «revela as ambivalências do jovem Cesário em relação às mulheres sexualmente vorazes que simultaneamente temia, desejava e desprezava, num encadeamento de emoções mal resolvidas e de comportamentos contraditórios que culmina na horrenda imagem de uma ejaculação profanadora no último verso». Transcrevemos um excerto desse poema:
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Eu temo muito o mar, o mar enorme,
Solene, enraivecido, turbulento,
Erguido em vagalhões, rugindo ao vento,
O mar sublime, o mar que nunca dorme
(…)
Contudo, num barquinho transparente,
No seu dorso feroz vou blasonar,
Tufada a vela e n’água quase assente,


E ouvindo muito perto o seu bramar,
Eu rindo, sem cuidados, simplesmente,
Escarro, com desdém, no grande mar!

O Livro de Cesário Verde foi editado meses após a sua morte, em Abril de 1887, pelo amigo Silva Pinto, que incluiu na antologia apenas vinte e dois poemas, quando são conhecidos mais de quarenta. Cesário é o nosso eterno poeta; revisitá-lo não é uma obrigatoriedade, é uma necessidade que nos tange os sentidos.
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© Teresa Sá Couto

6 comentários:

Carlos Ramos disse...

Interesantissimo este primeiro plano das literaturas,caminhos bifurcados, muitas vozes, dá gosto navegar. Os meus sinceros parabens e que continues sempre.

Teresa disse...

Muito obrigada, Carlos, pela sua visita e pelas suas palavras.

Um abraço
TSC

Benjamina disse...

Olá Teresa
Desde o tempo do liceu que Cesário Verde me caiu no "goto", e que tenho o seu "O Livro de Cesário Verde".
Pena ter morrido tão novo.
Um abraço

Teresa disse...

e a maior honra que se lhe pode fazer é a sua poesia integrar, há várias gerações, os currículos do ensino secundário.

Beijinhos, Benjamina

T.

Lícia Dalcin disse...

Por ele (e somente por ele) procurava. E encontrei este canto delicioso do mar da literatura! E demos graças perenes à palavra! Quis Cesário, mas encontrei o demais nos dizeres! Maravilha, pois deles (dos dizeres) também tenho sido escrava.

Teresa disse...

Obrigada pela visita e pelas palavras generosas, Lícia.
Um abraço
TSC