terça-feira, 14 de abril de 2009

A lógica do esplendor - O Senhor Valéry de Gonçalo M. Tavares



É franzino, de baixa estatura, solitário, distraído, desconcertante, perfeccionista, inapto na sua lógica de Ser, mas metódico na aprendizagem. Eis o Senhor Valéry, o primeiro do Bairro dos Senhores criado por Gonçalo M. Tavares em 2002, com duas das suas 25 micro histórias, porém, desta vez, com nova roupagem ilustrativa de Rachel Caiano, e fica o leitor esmagado com a beleza desta reaparição.

«Os Amigos» e «Os dois Lados» (este seleccionado em 2008 pela Internationale Jugendbibliothek para a Feira do Livro Infantil de Bolonha) são os títulos dos dois livros que nos mostram que a inteligência e a criatividade humanas podem ser avassaladoras. O quotidiano do Senhor Valéry é preenchido com exercícios que procuram solucionar problemas existenciais, comezinhos, alguns, e até ridículos, mas todos com forte compromisso filosófico. «Todas as ideias se ligam por corredores que existem», escreveu Gonçalo M. Tavares. E todas as descobertas são possíveis nestes livros inesgotáveis vocacionados para crianças inteligentes e adultos inteligentes.

Em «Os Amigos», o Senhor Valéry tenta resolver o problema da sua baixa estatura que o impede de chegar às outras pessoas. Na busca de um raciocínio válido que lhe pudesse dar o conhecimento para arranjar amigos, o Senhor Valéry apresenta-nos soluções burlescas, mas espantosamente puras na sua essência.

Era pequenino, «mas dava muitos saltos» e, por isso, explicava que era «igual às pessoas altas só que por menos tempo». Porém, «se as pessoas altas saltassem, ele nunca as alcançaria na vertical», e, persistente na sua aprendizagem, abandona o exercício e enceta novas experimentações: primeiro um banco, depois um banco com rodas e pensa até «congelar um salto». Porém, «nenhuma destas ideias era confortável ou possível, e por isso o Senhor Valéry decidiu ser alto na cabeça». Assim, «Concentrando-se, o Senhor Valéry conseguia mesmo ver a imagem do topo do cabelo de pessoas que eram bem mais altas que ele», mas com a visão de cima «tinha dificuldade em se lembrar da cara das pessoas com quem se cruzava» e, «com a altura, o Senhor Valéry perdeu amigos.».

Rachel Caiano, que já ilustrou os outros livros do Bairro dos Senhores, irrompe agora com esplendor (exemplos do interior dos dois livros na montagem), toma conta das páginas onde dançam as palavras mágicas e certeiras de Gonçalo M. Tavares.

Em «Os Dois Lados», o Senhor Valéry tem outro problema para resolver: como estar sempre do lado certo do mundo? O dilema do Senhor Valéry pedia um exercício mental com regras, e os passos da procura desse saber mostram-nos o absurdo de um sistema mental, tocando-nos na consciência dos absurdos que, nalguma altura, erigimos. Rachel Caiano pinta soberanamente nas páginas o labirinto daquela lógica, dá-nos argumentos que nos incitam a procurar o nosso próprio conhecimento.

Desenvolvendo a Teoria de que o mundo tem dois lados, «o direito e o esquerdo», o Senhor Valéry põe em prática uma disciplinada e rigorosa metodologia: divide a sua casa em duas partes e «só tocava nas coisas que estavam à sua esquerda com a mão esquerda» e «nas coisas que estavam à sua direita com a mão direita» e, para nunca se enganar, no rigor de utilizar sempre «a mão certa», mesmo quando estivesse de costas, pintou «todo o lado esquerdo da casa, incluindo os seus objectos, de azul» e o outro lado de vermelho. Porém, para nunca se enganar, o Senhor Valéry tinha um outro grande truque: a mão esquerda pintada de azul e a mão direita de vermelho.

Os Dois Lados e Os Amigos, Gonçalo M. Tavares (texto), Rachel Caiano (ilustrações); Editorial Caminho, Lisboa, 2007

© Teresa Sá Couto

4 comentários:

Rui disse...

Passo muitas vezes pelo sítio onde o GMT mora. Só isso explica as vezes em que nos cruzamos. Fosse eu outro e já lhe tinha dito algo desconcertante, como só eu sou capaz, assim do tipo, "porreiro, pá". Mas mais do que ser capaz de dizer coisas desconcertantes, sou incapaz de me meter com ele. E lá nos vamos cruzando, amiúde, ele para ali, eu para acolá.
Ainda não li o Senhor Valery, tenho primeiro que digerir Jerusalém.

Teresa disse...

«Jerusalém» foi o primeiro livro do GMT sobre o qual escrevi, e o Rui deu-me a ideia de procurar aquele texto e colocá-lo aqui. Consegui escrever só dois meses depois de acabar a leitura. Fiquei esmagada com aquela narrativa ou, como diz, andei a digeri-la. Talvez por me ter revolvido a carne, foi, dos «Livros pretos», o que mais gostei.

Theresa Castello Branco disse...

A lógica do esplendor. Vão as crianças gostar deste livro ? E com este título? E a que idades se destina? Dos 8 aos 10? Daí para cima? Se há um género literário em que o autor tem de ter o seu leitor em mente, é o dos livros para criança. um abraço Theresa CºBº

Teresa disse...

Esse título, Theresa, é do meu artigo que abarca dois livros com os títulos «Os Amigos» e «Os dois Lados» :))))

Com efeito, estas narrativas que, segundo a editora, são dirigidas a um público infanto-juvenil, fogem ao tradicional livro infantil; são um estímulo à imaginação e ao ensino da Lógica, no caso, acompanhado de um vigoroso poder estético. Concordo com a caracterização de serem livros para todas as idades.